Relatora especial sobre racismo Ashwini K.P. destacou violência de estado contra a população negra como um dos principais problemas associados ao racismo sistemático no Brasil
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, Ashwini K.P., destacou, em coletiva de imprensa on-line realizada nesta sexta-feira (16/8), que a violência de Estado praticado pelas polícias brasileiras tem relação direta com o racismo.
“Mulheres perdem seus filhos na mão brutal da polícia”, afirmou a relatora durante a coletiva. “Há uma necessidade de apoio psicológico e material, mas há uma demanda em abordar a questão raiz desses problemas”, afirmou.
Leia também: ‘Nenhuma morte de civil pode ser dano colateral’, diz especialista da ONU sobre Operação Escudo
Para Ashwini, a ação policial nas favelas e periferias expõe especialmente crianças e mulheres. “O uso de câmeras corporais é um passo na direção correta, mas muito mais deve ser feito, e deve ser adotado por todas essas polícias”, destacou.
A coletiva de imprensa encerrou a agenda da relatora no Brasil, que visitou Brasília (DF), Salvador (BA), São Luís (MA), São Paulo (SP), Florianópolis (SC) e Rio de Janeiro (RJ). Nessas cidades, Ashwini se reuniu com autoridades e lideranças civis de grupos minoritários, como quilombolas e indígenas.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, a letalidade policial é a causa de cerca de uma a cada sete mortes violentas intencionais de adolescentes no país. Além disso, um estudo da Unicef mostrou que a polícia brasileira matou crianças como nunca em 2023.
Medidas insuficientes
O governo brasileiro tem dado passos importantes para combater o racismo, mas as ações ainda são insuficientes, analisa a relatora. “Racismo sistêmico demanda respostas sistêmicas.O Brasil tem que ter uma abordagem sistêmica para combatê-lo, garantindo políticas para os grupos que mais sofrem com esse problema”, disse.
Ashwini destacou o reconhecimento do aspecto sistêmico do racismo no Brasil pelo governo federal. Ela também elogiou a institucionalização de medidas de combate à discriminação, como criminalização do racismo, criação do Ministério da Igualdade Racial e a existência de políticas afirmativas, como as cotas.
A especialista citou ainda o Plano Juventude Negra Viva, que visa reduzir as vulnerabilidades que afetam a juventude negra brasileira, especialmente a violência letal, e o Pena Justa, iniciativa do Judiciário brasileiro para combater o encarceramento em massa.
A especialista também apontou ameaças à sobrevivência de grupos minoritários no país. “Gostaria de elogiar o Brasil pelos seus programas de ações afirmativas, mas muito me preocupa ações legislativas que podem impactar esses avanços”, disse, referindo-se ao Marco Temporal (PL 4566/23) e ao PL do Aborto (1904/24).
A PL do Aborto equipara a pena do aborto feito após 22 semanas de gestação a de um homicídio simples – isto é, de 6 a 20 anos. E, segundo o Marco Temporal, os indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.
Durante a coletiva, a especialista abordou temas como falta de dados desagregados sobre grupos minoritários, sobretudo sobre a comunidade índigena Romani, violência contra as mulheres e a população LGBTQIA+, principalmente negras, e invasão a terras indígenas e quilombolas, como no Alto do Tororó, em Salvador, na Bahia.
“Gostaria de parabenizar o fato que há um programa para proteção de defensores dos direitos humanos e que o governo tem feito esforços, porém me preocupa as informações que recebi que o programa faltam recursos e tem dificuldades. Também me preocupa a situação das mulheres de grupos raciais e étnicos, que enfrentam intersecção de racismo, machismo e classicismo”, disse a relatora.
A intolerância religiosa no Brasil também deve estar presente no relatório da especialista. Ashwini apontou uma discriminação dirigida sobretudo para os adeptos de religiões de matriz africana, e lembrou do caso em que um motorista de aplicativo se recusou a transportar uma família com trajes do candomblé.
Para a relatora, “o Estado habilita atos de tal forma” e, apesar do governo reconhecer o racismo sistêmico e religioso, é preciso uma legislação para combater o problema
Na visita ao estado de Santa Catarina, a relatora especial para a ONU identificou um aumento de células neonazistas. Segundo ela, há uma falta de dados precisos, especialmente sobre discursos de ódio contra grupos minoritários, o que dificulta o combate ao problema.
Além disso, ainda que exista o Disque 100, para denunciar violações de direitos humanos, “a falta de investimento nisso acaba mandando uma mensagem de impunidade, e que o racismo não será condenado”, analisou Ashwini. “O Brasil tem que fazer esforços mais qualificados para combater essas ideologias”.
A relatora para a ONU também abordou o tema das redes sociais e a disseminação de informações que negam o caráter sistêmico do racismo no Brasil. Ela apontou uma maior frequência de ataques direcionados a mulheres politicamente ativas e racializadas. A recomendação da especialista para o Brasil é adotar um diálogo sério com as plataformas de mídias sociais.
Ashwini lembrou de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018, e destacou que se preocupa com as eleições municipais que começam hoje em todo o país.
“Muito me preocupa a baixa representatividade de grupos marginalizados, como povos indígenas, quilombolas e povos romanis, em grupos de tomadas de decisão, no funcionalismo público, e nas universidades”. Nesse sentido, Ashwini afirma que o racismo sistêmico no Brasil é geracional: o brasileiro não branco, não católico, acaba sujeito a estereótipos negativos.
Para a relatora da ONU, apesar de as autoridades estaduais e federais brasileiras reconhecerem o racismo sistêmico, é preciso um plano mais ágil para combate.
Como atua Ashwini K.P.
Ashwini K.P. foi nomeada como a 6ª Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata em outubro de 2022.
A especialista realizou uma visita oficial ao Brasil entre os dias 5 e 16 de agosto de 2024 com o objetivo de avaliar as principais tendências, questões e estruturas legislativas, políticas e institucionais em vigor no país.
Em junho de 2025, a relatora especial irá apresentar um relatório resumindo sua visita e fazendo recomendações ao Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU.