Policiais dizem ter ouvido tiros, mas que jovem, morto na zona sul de SP nesta quinta (11), estaria com arma de brinquedo. “A polícia executa sem dar chance. Ele tinha 16 anos, não merecia uma chance?”, questiona mãe
O estudante Richard Rodrigues Crude, 16 anos, amava motos desde pequeno. Quando ganhava carrinhos ou bicicletas, desmontava tudo e tentava montar de novo, sem sucesso. Na infância ele queria ser jogador de futebol, de preferência no seu time do coração, o Corinthians, mas a mãe sentia que ele trabalharia com mecânica.
Com um sorriso no rosto, mas o peito apertado, a auxiliar administrativa Cristiane Rodrigues de Andrade, 32 anos, lembra dessa e de outras histórias do filho do meio, a quem tinha enterrado poucas horas antes de receber a Ponte na casa da avó de Richard, no Jardim São Savério, zona sul da cidade de São Paulo, na tarde deste sábado (13/3).
“Ele era uma pessoa muito amorosa, nunca foi um adolescente rebelde. Bem mais tranquilo em relação a minha filha mais velha”, sorri Cristiane comparando os filhos, como toda mãe faz.
“Ele tinha parado de estudar em 2019, ia voltar em 2020, mas a pandemia os afastou da escola. Ele era sossegado, gostava de ficar em casa com os amigos. Sempre foi na dele. Nem música alta ele gostava de ouvir, sempre foi mais zen”.
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A última vez que Cristiane viu o filho com vida foi na quarta-feira (10/3). Naquela noite, ele dormiria na casa de um amigo. Na manhã da quinta (11/3), Cristiane acordou com uma ligação avisando que o filho havia sido morto pela PM. “Demorei duas horas para localizar o corpo dele. Eu liguei para o resgate, para a polícia e não tinha ocorrência nenhuma. Fui de hospital em hospital até ter a informação de que ele estava no Heliópolis”.
A ligação era da consultora Jessica Rodrigues de Andrade, 30 anos, tia de Richard, primeira pessoa da família a chegar na rua Antonio Auge Garcia, cerca de 600 metros de distância da casa da avó de Richard. “Eu cheguei no local era 8h. Tinham quatro viaturas e uns quatro policiais sem farda que não se identificaram”, conta.
A ação da PM em que Richard foi morto aconteceu na quinta-feira (11/3) às 6h da manhã. Quando a tia chegou no local, o corpo do sobrinho não estava mais lá. Mas ela viu policiais tentando obter imagens das câmeras de segurança.
“Eles estavam interrogando os policiais militares que fizeram a abordagem e entrando nas casas para pegar as câmeras, sem mandado nenhum. O interesse deles era o mesmo que o nosso: as imagens. Para eles seria uma ocultação de provas e para nós a prova mais importante”, denuncia Jessica.
“Quando fomos falar com esse morador, ele disse que as câmeras do comércio dele não gravam. Ele pode ter uma câmera só para intimidar ou os policiais intimidaram eles. Assim que levaram ele, os policiais começaram a recolher os cartuchos. O sangue no chão mostra que o tiro foi feito de muito perto”, detalha a tia.
Do outro lado da zona sul da cidade, Cristiane tentava liberar o corpo do filho, mas a burocracia atrapalhava. Do Hospital Heliópolis, onde a morte do filho foi confirmada, ela teve que ir para casa buscar os documentos e, antes de ir para o IML, precisou ir até o DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), no centro da cidade, onde o caso foi registrado, para ter acesso ao boletim de ocorrência.
“Fiquei três horas no DHPP sem informação nenhuma, ninguém perguntou o motivo de eu estar lá. Só me identificaram como a mãe do meliante. Fiquei três horas exposta vendo todo mundo depor. Quando encerraram e se retiraram sem me dar satisfação, aí eu abordei um dos policias pedindo o BO”.
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Enquanto esperava, o boletim de ocorrência era registrado como roubo e morte decorrente de intervenção policial. A Ponte teve acesso ao documento, mas nele não há o nome de nenhum delegado. No documento, que começou a ser escrito às 11h10 daquele dia, os PMs afirmaram que estavam em breve perseguição de um roubo com duas pessoas armadas e teria ocorrido uma troca de tiros. Richard foi atingido na cabeça e socorrido para o Hospital Heliópolis, onde morreu.
De acordo com o relato do PM Ednilson da Silva Freitas, ele estava encerrando seu turno acompanhado pelos soldados Gabriel Gois Costa, 22 anos, e Rafael de Almeida da Silva, 31 anos, em uma viatura e Willian Claudino dos Santos, 26 anos, e Kelvin Rocha Gonçalves Gil, 24 anos em outra, todos policiais militares da 4ª Companhia do 46º Batalhão da PM na capital, quando foram informados de uma motocicleta roubada.
O PM Ednilson ainda afirmou que o garupa teria pulado da moto em movimento e o soldado Gois continuou acompanhando a moto, ouvindo dois disparos da direção em que o garupa havia pulado na rua François Bunel. Depois, ainda de acordo como relato do PM Ednilson, o soldado Willian teria avistado a moto com uma pessoa se aproximando que, de acordo com o PM Willian, teria colocado a mão na cintura “dando a entender que iria sacar uma arma”.
Por isso o PM disparou contra Richard, que teria tentado fugir, mas na primeira lombada da rua Antonio Auge Garcia ele teria caído. O soldado Gois, sem desembarcar da viatura, teria visto Richard levar a mão na cintura novamente, e disparou mais vezes contra o jovem, que caiu no chão. O PM Ednilson completou que foi encontrada uma arma de brinquedo com Richard.
Segundo o boletim de ocorrência, na primeira rua foram encontrados três estojos de munição calibre .40 e na segunda rua cinco estojos de munição .40 e um projétil de munição .40. As armas dos policiais militares Gabriel Gois Costa e Willian Claudino dos Santos foram apreendidas pela perícia da Polícia Civil.
Para o delegado, diante dos fatos apurados até aquele momento de elaboração do boletim de ocorrência, “não se verifica aparente ilegalidade na conduta dos policiais militares” que atiraram contra Richard por “aparente legítima defesa”.
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A família de Richard contesta essa versão. “Eu tenho a versão do boletim e a versão que os moradores nos contaram”, diz Cristiane, mãe de Richard. “Moradores nos procuraram para nos contar o que aconteceu. Eles nos disseram que meu filho estava em fuga e se desequilibrou e caiu, mas que ele se rendeu assim que caiu. Ele foi morto com as mãos para trás”, denuncia.
No DHPP a mãe conseguiu pegar o capacete que o filho usava e constatou três perfurações de tiros. “Uma veio de cima. Mesmo com três tiros na cabeça e um no peito, removeram ele. Disseram que ele tinha vida, mas eu acho impossível. Para mim, eles removeram para montar a versão deles”, aponta Cristiane.
Para a mãe, a versão de que Richard oferecia algum risco para os PMs não faz sentido. “Como você explica que uma pessoa tava oferecendo risco e você atira pela parte de cima do capacete? Os policias alegam que ele estava em fuga e que atirou. Como ele ia oferecer risco para os policias se ele estava sozinho na moto? É inviável. Ele tinha 16 anos, estava em uma moto de porte grande e não ia conseguir atirar contra quatro policiais”.
À Ponte, Cristiane faz questão de dizer a todo momento que não entende o motivo da crueldade dos policiais militares. “Por que não deram um tiro no pneu, no pé? A função da polícia é prender e depois apurava se ele era culpado. Mas a polícia executa sem procurar saber e sem dar chance. Meu filho tinha 16 anos, ele não merecia uma chance?”, questiona.
“Pessoas de classe média alta têm outra chance, não tem esse tipo de ação policial. Eles podem reconstruir a vida. Meu filho não teve esse direito. Os policiais militares falaram no DHPP que, por ser menor de idade, ele não ficaria preso, que não ia adiantar. Eu trabalho, sustento os meus três filhos e escuto um policial dizer que a solução era matar, foi isso que ele quis dizer”.
Cristiane completa que é muito difícil para mães de jovens periféricos, mortos pela PM, lidar com o ódio nas redes sociais. “Se estava fazendo coisa errada, ele tinha que ter uma chance e um pouco de empatia. A gente tem que ler que é mais um CPF cancelado, que foi tarde. Temos que nos deparar com esse tipo de comentário. Faltou preparo dos policiais, que deveriam proteger e zelar pela vida, mas o que eles fazem aqui no bairro é o contrário”.
“O policial não pode atirar na cabeça. Richard vai ser visto como mais um CPF cancelado, mas tem pouquíssimo tempo que ele tem CPF, não deveria ter sido cancelado. Os policiais matam injustamente, se você mora na periferia seu tempo de vida é mais curto, principalmente se você for homem, jovem e negro”, completa Jessica, tia do adolescente.
Jessica pontua que é prática da Polícia Militar agir assim no bairro. Ela lembra da execução de Rogério Ferreira da Silva Júnior, morto pela PM no dia que completou 19 anos. “Quem vive na periferia sabe que aqui acontece isso, mas a diferença é que aqui existe pena de morte, aqui existe opressão”.
“O Richard era branco, mas eu tenho um sobrinho negro que tenho medo, toda vez que ele sai eu falo para ele levar o documento. Sempre vão falar que ele estava armado”, lamenta a tia.
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Como tia e como ser humano, continua Jessica, o sentimento é de luta por justiça. “Que eles paguem pelo que fizeram. A nossa pena é a falta eterna dele, se ele ia se formar, do que ele ia trabalhar, se ele ia ter família, se ele ia ter barba, se ele ainda ia gostar de carro. Ele só precisava de incentivo e chance. É uma dor que só quem passa entende, mas eu sei que a justiça dos homens pode falhar, mas a de Deus vem”.
A mãe de Richard completa que só a justiça poderá amenizar a sua dor. “Eu venho sofrendo muito desde de quinta-feira. Precisei ir no hospital reconhecer meu filho, precisei ir no IML liberar meu filho, precisei enterrar meu filho. Eu dei a vida para ele, não queria enterrar meu filho agora”, aponta Cristiane.
“Eu tenho um boletim de ocorrência e não me conformo com o que tem nele. Meu filho não pode ser tratado como o pior bandido do mundo. Eu preciso que as pessoas saibam a versão dele. Não quero que a morte dele, além de cruel, fique com essa versão”, finaliza.
Na quinta-feira (11/3), moradores do Jardim São Savério realizaram um ato contra a morte de Richard. Durante o protesto um ônibus foi incendiado na Avenida do Cursino.
O caso é acompanhado pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, articulação de movimentos e pessoas que luta contra a violência de Estado nas periferias, desde as primeiras horas da morte de Richard.
Outro lado
Em nota enviada à reportagem, a Secretaria da Segurança Pública informou que o caso é investigado por meio de inquérito policial pelo DHPP. “A equipe realiza diligências e aguarda os resultados dos laudos periciais, que estão em andamento. A Polícia Militar também instaurou IPM para apurar todas as circunstâncias da ocorrência”.
A reportagem também enviou as seguintes perguntas para a SSP e para a PM, além de solicitar entrevista com todos os policiais militares envolvidos na morte de Richard:
1) Quem é o delegado que assinou o boletim de ocorrência número 115/2021 registrado no DHPP? Por que o nome do delegado não consta no documento entregue à família?
2) Os tiros efetuados em Richard, como demonstra o capacete que o adolescente usava, foram dados por trás e por cima. Esse é o procedimento da PM em ações?
3) Se Richard estava com uma arma de brinquedo, como foi descrito no BO, porque os policiais disseram que houve troca de tiros?
4) Qual risco Richard, sozinho em uma moto, poderia causar aos quatro PMs para que ele fosse executado com quatro tiros, sendo três na cabeça?
5) Em casos como esses, não bastaria um tiro no pneu da moto ou no pé do adolescente?
6) A mãe do adolescente afirma que, na delegacia, ouviu de um dos PMs que não prendeu o jovem porque ele voltaria a roubar. Esse é o procedimento da PM?
7) Por que os objetos do jovem foram encaminhados diretamente para o DHPP e por que a mãe não recuperou o celular dele?
8) No sábado quando a reportagem esteve no local diversas viaturas da PM circularam no bairro. É procedimento padrão ou isso está sendo feito para impedir que os moradores relatem o que aconteceu na madrugada em que Richard foi morto?
9) A tia do adolescente afirma que policiais sem farda (ela não sabe precisar se eram policiais civis ou militares) entraram nas casas na rua onde Richard foi morto atrás de imagens e que, depois disso, os moradores estão com medo de contar o que viram. Como a SSP e a PM enxergam o fato?
ERRATA: Reportagem atualizada às 13h do dia 23/3 para correção da data de morte de Richard na linha-fina
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