Em meio a polêmicas por comemoração da ditadura militar pelo Governo Federal, a Polícia Militar de SP segue carregando símbolos do autoritarismo
O novo ministro da Defesa, o general Walter Souza Braga Netto começou seu primeiro dia de trabalho defendendo a ditadura militar na nota “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964”, publicada nesta terça-feira (30/3). Para ele, “devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos” de 31 de março de 1964, data do golpe militar que derrubou o governo de João Goulart e deu início aos 21 anos de ditadura.
Também neste mês, a celebração do golpe militar de 1964 pelo Governo Federal foi permitida por quatro votos a um pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. O recurso da Advocacia-Geral da União defendia o direito do governo de fazer atividades em homenagem ao golpe cometido por agentes do Estado em 1º de março de 1964.
Enquanto as manifestações do governo federal e de seus apoiadores seguem provocando polêmicas no meio jurídico, a ditadura militar é exaltada de forma escancarada pela Polícia Militar de São Paulo no brasão do uniforme da corporação ano após ano, desde 1981 e no site da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo que se refere ao golpe como “revolução de março” de 1964.
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O símbolo composto de um escudo com 18 estrelas prateadas representa “marcos históricos” da corporação que matou 5.123 pessoas somente em 2020 e 46% das crianças e jovens mortos na cidade de São Paulo nos últimos cinco anos, segundo dados de um relatório produzido pelo Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).
As estrelas e os marcos históricos
Criado em 1958 pelo então governador Jânio Quadros, o brasão tinha inicialmente 16 estrelas. Foi no governo de Paulo Maluf, em 1981, que um decreto incluiu outras duas estrelas em homenagem à 2ª Guerra Mundial e à “revolução de março” de 1964, termo usado pelos simpatizantes da ditadura para tratar do golpe que derrubou João Goulart.
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Além das estrelas, o símbolo é formado pela figura de um bandeirante e de um soldado da época da criação da PM, empunhando um fuzil com baioneta. Já os marcos históricos para a instituição fazem referência a fatos históricos do país em que a PM paulista teve alguma ação de destaque, como a participação na Guerra dos Farrapos, em 1838, marcada pela 2ª estrela, a campanha realizada contra a Revolta de Canudos, na Bahia, em 1897, registrada na 8ª estrela, a repressão à Greve Geral de 1917, ostentada na 10ª estrela e a participação na Revolução Constitucionalista de 1932, marcada pela 15ª estrela.
Além destes marcos, a 1ª estrela remete a data de 15 de dezembro de 1831, quando houve a criação da Milícia Bandeirante, que viria a se tornar a Polícia Militar. A 3ª estrela revela o embate com os indígenas de Campos dos Palmas, no sul do Paraná, em 1839. A 4ª estrela demarca a chamada Revolução Liberal de Sorocaba, ocorrida em 1842. A 5ª estrela evoca a participação da polícia paulista na Guerra do Paraguai, ocorrida de 1865 a 1870, todas na época monárquica.
Na República, quando a Força Paulista se organiza e se militariza cada vez mais, outras atuações passam a fazer parte do brasão. Entre elas, a repressão à Revolução Federalista, em 1893, incluída na 6ª estrela. Além da Questão dos Protocolos, em 1896, na qual as tropas de Cavalaria e Infantaria intervieram no conflito entre representantes da colônia italiana e estudantes nacionalistas de São Paulo, conferindo a 7ª estrela.
Com o processo de militarização evoluído, as estrelas seguintes remetem à repressão à Revolta da Chibata liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910, e a manutenção da ordem das revoltas da Sedição do Mato Grosso e aos “18 do Forte de Copacabana”, em 1922.
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Em 1924, a tropa militar oprimiu rebeldes que participaram da Revolta Paulista, que viu a capital paulista cercada por trincheiras e bombardeada. Em 1926, as forças combateram a Coluna Prestes, no Ceará. Em 1930 ocorre o fim da República Velha no Brasil, marcado pela tomada do poder por Getúlio Vargas, motivo que angariou mais uma estrela para as forças policiais paulistas.
Completam a lista a repressão à Intentona Comunista de 1935 e o apoio ao golpe que instituiu o Estado Novo em 1937, além de uma estrela dedicada ao contingente enviado à Itália durante a 2ª Guerra Mundial.
Por fim, a 18ª estrela marca os anos de repressão e de supressão de direitos da ditadura civil-militar. O site da Secretaria da Segurança Púlbica conta uma versão romantizada do ocorrido na época: “Em 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio da Silva Quadros renunciou a seu mandato. Em 31 de março de 1964 iniciou-se a Revolução, desencadeada para combater a política sindicalista de João Goulart. Força Pública e Guarda Civil puseram-se solidárias às autoridades e ao povo”, diz um trecho da linha do tempo da corporação.
Polícia para as elites
Almir Felitte, advogado e mestrando da Universidade de São Paulo (USP) em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito, aponta como os fatos históricos mostram uma característica política da PM na sociedade. “São 18 fatos históricos envolvendo a PM, mas nenhum deles tem algo a ver com a segurança pública de fato. São atos de combate a revoltas, de repressão a greves e movimentos populares e de participação em golpes de Estado. Enfim, fatos históricos que escancaram o caráter político da PM paulista”.
O advogado complementa que boa parte das polícias militarizadas brasileiras surgiram por volta de 1830, um período cheio de revoltas que tinham o objetivo de acabar com a ordem imperial e escravista vigente. “Não à toa, esses novos corpos militares seriam usados, essencialmente, para combater movimentos abolicionistas, republicanos e separatistas, além de quilombos. Não é só no brasão paulista, em livros e sites oficiais das atuais PMs se vê muita exaltação à participação de cada corporação na repressão a esses movimentos”.
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No mesmo sentido, a socióloga, da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Veronica Tavares de Freitas argumenta que o símbolo ainda utilizado também demonstra um caráter racista da corporação. “É a lógica de uma polícia para as elites, contra as mobilizações populares e contra a possibilidade da luta por direitos no Brasil. Na guerra do Paraguai participou do genocídio da população negra. Em Campos dos Palmas, reprimiu os indígenas. Isso mostra o racismo da instituição também”.
Mesmo após a abolição da escravidão e a entrada do Brasil em uma ordem republicana e de trabalho livre, são as velhas oligarquias que continuam no poder. Com a urbanização, a industrialização, a imigração e a abolição, essas mesmas oligarquias logo elegem uma nova “classe perigosa”: a classe trabalhadora livre, como explica Almir. “É justamente no início do século XX, quando os primeiros movimentos de trabalhadores organizados começam a realizar as primeiras greves, que as PMs brasileiras passam por um processo de especialização e profissionalização ainda mais militarizado”.
O pesquisador afirma que documentos oficiais antigos de comunicação entre chefes de polícia e presidentes de estado (como então eram chamados os governadores) revelam discussões sobre a maior eficácia de cavalarias militarizadas para a contenção de greves, protestos e revoltas. “Mesmo na formação das polícias modernas, a preocupação com o controle social sobre as camadas populares continua. Essa figura ‘perigosa’, é claro, vai mudando com o tempo. No começo do século, era o ‘vadio’, o negro recém-liberto, o estrangeiro anarquista”.
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Com isso, uma polícia ostensiva de caráter civil tornou-se uma necessidade. A socióloga Veronica lembra que a ideia de um “soldado cidadão”, de Benjamin Constant ganhou força no século XX. “Benjamin Constant, um dos fundadores do pensamento militar, colocava a doutrina do soldado cidadão, que é uma lógica de que a população brasileira e a Sul-Americana de maneira geral fosse uma população débil, que não conseguia se auto governar e que, portanto, os militares precisavam tutelar a população”.
Esse pensamento autoritário, conservador, reacionário, de que o exército precisa tutelar a população, dá sentido aos golpes de Estado, com o objetivo de estabelecer a ordem. “Mas também a uma lógica de que os militares precisam estar no cotidiano do povo, tutelando a população civil”, pontua Veronica.
A PM e os resquícios do golpe militar
O último Decreto que alterou o brasão da PM paulista foi editado em 1981, anos finais da Ditadura, e chama o Golpe de “Revolução”. Atualmente a cada aniversário do golpe de 1964 vemos instituições militares realizando celebrações e publicando notas controversas, além de parte da população indo às ruas pedir a volta do regime.
Almir lembra que um dos lemas da ditadura militar era o uso da “da Doutrina de Segurança Nacional, falava-se no ‘perigo vermelho’”, ou seja, o suposto risco de uma ameaça comunista. Segundo ele, com o tempo o militarismo foi marcado pela “ideologia do inimigo e pelo distanciamento que produz entre o mundo militar e o mundo civil”, o que chegou ao ápice na ditadura militar, mas que perdura até os dias de hoje.
Essa tese acaba se encaixando nesse quadro onde uma boa parte da população deve ser vista como inimiga. “Por mais que a justificativa oficial seja a busca pela segurança das pessoas, e que esse discurso tenha grande adesão, a opção pelo militarismo sempre acaba resultando neste enquadramento das camadas populares como classes a serem combatidas, controladas e eliminadas”.
Os resquícios e heranças da lógica do inimigo perduram até hoje, no caso de conceitos como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), operações das Forças Armadas que ocorrem em casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem, que concedem provisoriamente aos militares o poder de atuar como polícia até o restabelecimento da normalidade.
“Nós temos, por exemplo, outra herança da ditadura, que é o uso da GLO. É uma lógica da militarização do cotidiano, absolutamente violenta e arbitrária, no sentido do uso excessivo da violência e da falta de acesso a direitos por parte da população”, lembra Verônica.
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A representante do Instituto Vladimir Herzog ainda entende que esses resquícios devem continuar se sustentando, enquanto não houver o reconhecimento da memória, verdade e justiça do que foram os crimes dos agentes estatais, durante a ditadura e durante outros períodos autoritários. “Vamos viver sob o risco de que novos momentos assim aconteçam, fora a questão da violência no cotidiano, com muitas marcas, inclusive com o uso da Lei de Segurança Nacional”.
Recentemente a Lei de Segurança Nacional tem sido utilizada para impedir manifestações contrárias ao presidente Jair Bolsonaro. O youtuber Felipe Neto e o advogado Marcelo Feller foram investigados a mando da família Bolsonaro por conta das críticas ao presidente.
A Lei é considerada um “entulho autoritário” para especialistas ouvidos em reportagem da Ponte e é mais uma rachadura aberta daquela época, como disse o pesquisador da USP. “Foram mantidos muitos resquícios da Ditadura e, agora, parece que a história está nos cobrando por isso”.
Lógica do medo
A dinâmica do combate a um inimigo somada à produção de ameaças à ordem pré-estabelecida seguem fazendo parte do cotidiano da população.
Na visão de Almir, hoje a criminalização das drogas tem sido usada para colocar populações inteiras de algumas regiões nessa caixinha das “classes perigosas”. “De um jeito ou de outro, o poder, com grande auxílio da mídia, sempre arranja um jeito de enquadrar as camadas mais populares dentro dessa ideia”.
Ainda que existam classes perigosas, a própria PM é temida pelos brasileiros, como indicou uma pesquisa do Datafolha divulgada em abril de 2019, onde 51% dos estrevistados dizem ter mais medo do que confiança na PM.
Para Almir, existe um novo risco antidemocrático no Brasil, colocado pelo atual governo, no qual as polícias militares se comportam como forças auxiliares. “A fala de bolsonaristas encorajando o amotinamento da PM na Bahia, após o triste caso envolvendo um policial em surto psicótico, e as confusões do motim ocorrido em Sobral (CE) em 2020 são só alguns indícios desse novo risco antidemocrático no Brasil. Não podemos subestimar estes novos fenômenos da política brasileira, ainda mais nesses tempos em que vivemos”.
Por esses riscos, a socióloga do Instituto Vladimir Herzog Veronica Tavares de Freitas acha extremamente importante que símbolos que exaltam a ditadura militar e outros eventos violentos da história sejam apagados. “Existe um projeto de lei da deputada estadual Erika Malunguinho (PSOL-SP), nº 404 de 2020 que justamente tem como foco mudar nomes de ruas e estátuas que homenageiam ditadores, torturadores e pessoas que escravizaram. Então existem iniciativas nesse sentido da disputa da memória. Além disso, entramos também como amicus curi recentemente, na ação movida pela deputada federal Natália Bonavides que proíbe a comemoração do golpe militar”.
Outro lado
Procuradas pela Ponte, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) e a Polícia Militar não responderam porque ainda utiliza o símbolo do brasão que destaca eventos históricos violentos da história da corporação.
Também não comentaram porque utilizam o termo “Revolução de Março” para tratar do golpe militar nos respectivos sites. Não disseram também se há previsão de não se utilizar mais o símbolo.
A Ponte solicitou uma entrevista com o Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Fernando Alencar Medeiros para falar sobre o tema, mas não houve resposta.