Calúnia de promotora contra Mães de Maio vira arma para defender PMs que matam

Vídeo em que promotora Ana Molinari relaciona mentirosamente grupo de direitos humanos com crime organizado foi usado por advogado de policiais no julgamento da chacina de Osasco, que completa 7 anos, e outros casos; MP ignora

A promotora Ana Maria Frigério Molinari, no vídeo em que mente sobre as Mães de Maio | Foto: Reprodução

Um vídeo de um julgamento de 2015, em que uma promotora espalha mentiras sobre o Movimento Independente Mães de Maio, se tornou uma arma usada na defesa de policiais militares que são levados a júri popular acusados de homicídio. Nele, Ana Maria Frigério Molinari, do Ministério Público Estadual de São Paulo, afirma que as mães são financiadas pelo crime organizado.

O caso mais recente ocorreu no julgamento do sargento André Chaves da Silva e do soldado Danilton Silveira da Silva, que foram absolvidos em 1º de agosto pelas mortes de dois jovens negros com 30 tiros. Na ocasião, o advogado João Carlos Campanini, que representava Chaves, mencionou o vídeo para questionar a legitimidade de entidades que denunciam a violência policial. “O PCC – Primeiro Comando da Capital – estava usando o grupo Mães de Maio”, declarou o advogado durante o julgamento.

“Os bandidos que morreram eram donos das biqueiras, dos pontos de droga, só que eles morreram. O PCC herdou as Mães de Maio e falou para aquelas senhoras: ‘O dinheiro que seu filho recebia do tráfico de drogas, eu vou continuar bancando a senhora e sua família, desde que, toda a vez que tiver ocorrência envolvendo Polícia Militar, vocês vão lá e botem a boca no trambone’. Isso vem desde 2006. Quem falou isso foi uma promotora de justiça”, alegou Campanini. Ele afirmou que, daquela vez, não iria mostrar o vídeo em que Ana Maria fez essa declaração, mas relatou que costuma exibi-lo nos júris em que atua.

E, de fato, exibe. No ano passado, Campanini veiculou o vídeo durante um dos cinco dias do novo julgamento que absolveu os acusados pela Chacina de Osasco, a maior do estado de São Paulo, que completa hoje sete anos.

Em 13 de agosto de 2015, um ataque a tiros matou 17 pessoas, nas cidades de Osasco e Barueri. O crime teria sido uma retaliação contra os moradores da periferia por causa dos assassinatos de um PM e um guarda civil metropolitano.

Advogado Campanini durante primeiro julgamento da Chacina de Osasco, em 2018 | Foto: Arthur Stabile/Ponte

No júri da chacina, o advogado, que defendia o ex-PM Victor Cristilder Silva Santos e o GCM Sérgio Manhanhã, mostrou o vídeo da promotora com a aparente intenção de relacionar Zilda Maria de Paula, líder do movimento Mães de Osasco e mãe de Fernando Lins de Paula, morto na chacina, com uma noção de que mães de filhos assassinados pela polícia que lutam por justiça não passam de criminosas. 

Procurado na época pela Ponte, ele disse que “não teve qualquer acusação contra o grupo de direitos humanos”. Nesta semana, a reportagem pediu nova entrevista com o advogado, por meio da assessoria do seu escritório, mas não teve retorno.

As Mães de Maio já receberam o Prêmio dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, e há nove anos foram homenageadas com uma lei estadual que transformou o dia 12/5 em Dia Mães de Maio.

Por causa do julgamento de Osasco, as Mães de Maio, a ONG Conectas Direitos Humanos e a Defensoria Pública enviaram, em março de 2021, um ofício ao procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, solicitando informações e providências sobre a disseminação e a utilização do material em processos judiciais. Desde então, não houve resposta. A reportagem também procurou a assessoria do Ministério Público Estadual de São Paulo, que não respondeu.

As mesmas entidades fizeram uma reclamação disciplinar ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), mas o procedimento foi arquivado em setembro do ano passado. Em maio, as entidades solicitaram uma reunião com o corregedor nacional Oswaldo D’Albuquerque, mas não tiveram resposta.

A Ponte procurou a assessoria do CNMP, que disse que só poderia responder na segunda-feira (15) por estar com ponto facultativo devido ao Dia do Advogado, em 11 de agosto. Na terça-feira (16), a assessoria respondeu que os embargos de declaração (pedido de esclarecimentos de uma decisão) têm previsão de serem julgados em 23 de agosto.

O que tem no vídeo

O vídeo de 2015 é um trecho de uma audiência de instrução realizada na 3ª Vara Criminal de Cubatão, no litoral de São Paulo. Foi registrado durante um processo que julgava três policiais militares acusados de sequestro, e não tinha qualquer relação com as Mães de Maio.

Mesmo assim, ao responder a perguntas do advogado dos policiais, Ana Maria Frigério Molinari, que hoje atua na 1ª Promotoria de Justiça de Praia Grande, passa a falar do movimento. Ela afirma que, quando atuava no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPSP, havia recebido a informação de que o grupo de direitos humanos seria formado por mães de traficantes, que, após a morte de seus filhos, em maio de 2006, teriam passado a gerenciar pontos de venda de drogas, com o apoio do PCC.

“Algumas dessas pessoas faleceram nos Crimes de Maio, e os direitos [de gerenciar biqueiras] são transmitidos aos familiares que, por vezes, gerenciam ou até mesmo arrendam os pontos de tráfico de drogas”, diz Ana Maria. Por isso, segundo a promotora, as Mães de Maio teriam adotado a prática de denunciar “policiais que efetivamente combatiam o tráfico de drogas”.

Até hoje, sete anos depois, a promotora nunca apresentou provas do que disse, nem realizou qualquer denúncia formal contra as mães. Também não recebeu qualquer sanção do Ministério Público por acusar sem provas uma entidade de direitos humanos.

Em 2015, a Ponte denunciou o vídeo em uma reportagem que foi censurada em fevereiro de 2016 por ordem da juíza Luciana Castello Chafick Miguel, da 3ª Vara da Comarca de Cubatão. Na ocasião, a magistrada decretou sigilo do processo envolvendo os três policiais para o qual Ana Maria deu seu depoimento e obrigou a Ponte a retirar do ar o vídeo. O processo continua em segredo de justiça, mas o vídeo pode ser encontrado facilmente no YouTube.

Até hoje as Mães de Maio cobram punição para a promotora. Quando os Crimes de Maio completaram 16 anos de impunidade, em maio deste ano, o movimento protestou em frente à sede do MPSP, no centro capital paulista.

A fundadora, Debora Maria da Silva, colocou uma caixa de papelão escrito “biqueira” e “lojinha” com papéis com nomes das vítimas e frases como “o vídeo do MP é racista”, “nossos mortos têm voz” e “abaixo aos arquivamentos”, sobre as investigações terem sido arquivadas. “É essa a nossa biqueira, promotora”, declarou a ativista. “A vida dos nossos filhos não têm negócio! Cadê o procurador-geral para entrar com uma ação? Enquanto não tiver justiça, não haverá paz! Enquanto esse vídeo não for retirado, não vai ter sossego, porque nós vamos cobrar. Se a gente fosse da biqueira, não estaria cobrando por justiça pelos nossos filhos.”

No sentido oposto de discursos como o da promotora Ana Maria e do advogado Campanini, uma ação civil pública apontou o estado de São Paulo como o responsável por todas as mortes dos crimes de maio de 2006 foi oficializada em 2019 pela Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual.

Debora Silva colocou uma caixa de papelão o nome de “biqueira” com papéis com os nomes das vítimas ao criticar vídeo em que promotora criminaliza movimento Mães de Maio, em 13 de maio, em frente à sede do MPSP | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Na petição, os promotores pediram à Justiça que condenasse o governo paulista a pedir desculpas publicamente por suas violações e a indenizar as famílias das 564 vítimas. Em novembro de 2019 o pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), com a justificativa de já de que os crimes prescreveram. Um recurso está atualmente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que ainda não foi julgado, e só nesta semana já foi tirado de pauta para apreciação dos ministros.

O papel do MP nos Crimes de Maio

No protesto de maio deste ano, as ativistas jogaram líquido vermelho em frente à fachada do órgão, que depois foi puxado por vassouras e escorreu pelo meio fio. Representava as 505 pessoas mortas e outras quatro desaparecidas durante ações de policiais e grupos de extermínio entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, na reação de vingança contra os ataques da facção criminosa Primeiro Comando do Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais.

O papel do MP desde os crimes tem sido muito questionado e cobrado pelas mães. Na época dos assassinatos, em 25 de maio de 2006, 79 promotores assinaram um ofício em que reconheciam “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada”.

Um promotor que se arrependeu da assinatura foi Eduardo Ferreira Valério, que em 2019 moveu a ação civil pública. Outro foi ex-promotor Roberto Tardelli que, em entrevista à Ponte em 2016, afirmou que seu gesto “foi um erro grave de avaliação que tivemos, dessa cultura do ódio”. Ele também diz que o mínimo que poderia dizer é que se arrependia “profunda e amargamente” de ter assinado o ofício.

No âmbito federal, nesta quarta-feira (10/8), o STJ decidiu pela federalização das investigações da chacina do Parque Bristol, em que cinco jovens foram mortos após serem baleados por homens encapuzados, na zona sul de São Paulo, em 14 de maio de 2006 — o massacre faz parte dos Crimes de Maio. A decisão vem seis anos depois que o então procurador-geral da República Rodrigo Janot entrou com um pedido para transferir a apuração do caso para a Polícia Federal, atendendo a uma solicitação feita em 2009, por familiares da vítimas, pela Defensoria Pública e a ONG Conectas Direitos Humanos.

Os ministros acolheram a tese das entidades de que as polícias paulistas, comandadas pelo então governador Geraldo Alckmim (PSDB), e o Ministério Público Estadual cometeram “falhas e omissões gravíssimas” em “todo o processo investigatório do crime”. À Ponte, o MPSP disse que vai recorrer dessa decisão. “Não há nenhum fato novo que justifique a federalização do caso”, disse em nota.

Por outro lado, no ano passado, o Ministério Público Federal arquivou a investigação de 12 assassinatos em maio de 2006, conhecido como crimes da Baixada Santista, ao alegar que o MPSP reabriu o inquérito. Entre as vítimas, está o filho de Debora, o gari Edson Rogério, morto aos 29 anos. Em junho deste ano, o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ministro Luiz Fux solicitou que os responsáveis pelos procedimentos instaurados no Ministério Público do Estado de São Paulo, no Poder Judiciário e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos fossem oficiados para prestar informações sobre o andamento e conclusão deles em até 30 dias.

Em 28 de junho, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, encaminhou relatório do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Núcleo de Santos apontando que ainda faltavam algumas diligências, como a localização de policiais militares para serem ouvidos. A Ponte procurou a assessoria do órgão desde quarta-feira (12) e ainda não teve um retorno.

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Para Débora, a falta de desfecho da apuração e a impunidade fazem os familiares adoecerem. “São 10 anos tanto das investigações do Gaeco e da exumação do corpo do Rogério, no dia 13 de julho de 2012. Uma das maiores torturas psicológicas que a Procuradoria do Estado fez com as mães.”

A federalização da investigação de todos os Crimes de Maio é uma bandeira antiga das Mães de Maio. O movimento já chegou a enviar uma carta em 2012 à ex-presidente Dilma Rousseff, que nunca deu uma resposta. Quando Raquel Dodge assumiu a Procuradoria Geral da República, sucedendo Rodrigo Janot em 2017, o movimento imaginou que ela pediria a federalização dos crimes, já que era uma recomendação que fazia parte do relatório São Paulo sob Achaque, que incluía Dodge entre as autoras. Apesar disso, a promotora concluiu o mandato e deixou o cargo de procuradora-geral em 2019 sem ter feito o pedido.

Reportagem atualizada às 10h35, de 15/8/2022, para incluir resposta do MPSP sobre a federalização da apuração da chacina do Parque Bristol.

Atualização às 12h11, de 17/8/2022, para incluir retorno do CNMP.

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