Levantamento da FGV divulgado com exclusividade pela Ponte revela que apenas um terço dos pedidos feitos por parentes receberam valores; chacina que deixou 111 mortos completa 30 anos em 2022
Julia* tinha oito anos quando seu pai, José*, de 29 anos, levou cinco tiros, dois deles no rosto, no dia 2 de outubro de 1992. A invasão da Polícia Militar do Estado de São Paulo no Pavilhão Nove da Casa de Detenção Provisória do Complexo Penitenciário do Carandiru deixou 111 vítimas assassinadas e completa 30 anos em 2022.
Em 1996, a menina, representada pela avó paterna, ingressou com um pedido de pensão alimentícia no valor de quatro salários mínimos a ser pago até 2013, quando José completaria 70 anos se estivesse vivo, além de indenização por dano moral no valor 500 salários mínimos e custas do funeral. Após uma decisão negativa, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) condenou o governo na segunda instância, mas reduziu o montante solicitado em 2002: a pensão foi de quatro para um salário mínimo até que Julia completasse 23 anos ou se casasse e a indenização ficou em 200 salários mínimos, além das custas de funeral, sem contar os juros que seriam somados. Em meio a recursos e imbróglios jurídicos para o cálculo do dinheiro, a criança foi crescendo. E esperando.
Em 2019, quando estava com 35 anos, Julia não quis mais esperar. Diarista e analfabeta, ela precisava do dinheiro e já tinham se passado 23 anos em meio à dor da perda do pai. Ela cedeu para uma empresa o direito de receber o que até 2018 equivalia a mais de R$ 356 mil em troca de uma quantia que não é informada no processo. A ação judicial ainda corre na Justiça e, quando for concluída, é essa empresa que deve receber os valores corrigidos da indenização e do equivalente à pensão.
A história dela não é um caso isolado. As famílias das vítimas que morreram no massacre esperam, em média, 22 anos e seis meses para os processos com pedidos de indenização e/ou pensão serem concluídos no TJ-SP, segundo levantamento inédito do Núcleo de Estudo sobre o Crime e a Pena da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (NECP-FGV) e antecipado com exclusividade pela Ponte nesta sexta-feira (23/9). Os achados da pesquisa serão divulgados em um seminário da faculdade na segunda-feira (26/9) (leia ao final do texto os detalhes).
A equipe identificou 75 ações judiciais movidas entre 1992 e 1997 e uma de 2017 por 154 familiares das vítimas assassinadas. Em 69 processos, o Tribunal de Justiça condenou o Estado a indenizá-los. No entanto, em apenas um terço (25) deles os parentes receberam totalmente o valor solicitado.
Para ações movidas por uma pessoa, os valores variaram entre R$ 5.167,24 e R$ 105.411,22, com uma média de R$ 55.660,00 por ação. Nos processos com mais de um autor, o valor mais baixo foi de R$ 5.430,60 e o mais alto de R$ 755.648,90, tendo a média das indenizações concedidas alcançado R$ 140.068,32.
Em 24 casos, as famílias não receberam ainda. Em sete, houve pagamento de um valor mínimo em que os juros e a correção monetária estão em discussão; em outros sete, foi feito o depósito do valor, mas não é possível saber se houve recebimento de fato. Em seis processos restantes, o Núcleo não conseguiu levantar informações.
Uma das coordenadoras do estudo, Maíra Rocha Machado indica, por exemplo, que as decisões começaram a se mostrar favoráveis aos familiares após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) ter publicado relatório em 2000 em que reconhece que houve um massacre no Pavilhão Nove.
“Nos anos 1990, a discussão que ainda existia é se houve ou não confronto e a primeira formulação oficial de massacre foi na OEA, com a sentença de 2000 em que isso aparece textualmente pela primeira vez”, explica. “Antes disso, era ‘rebelião’, ‘motim’, ‘a polícia invadiu com excesso’, mas nas decisões [judiciais] raramente aparece a palavra ‘massacre’.”
Além disso, a Comissão recomenda que o governo brasileiro tome uma série de medidas, que vão desde processar e julgar os policiais envolvidos a indenizar e reparar as vítimas e familiares, sendo que a reparação depende apenas violação cometida como prova.
Esse relatório, inclusive, é mencionado no acórdão (decisão de um grupo de magistrados) que acatou o pedido de indenização de três filhos de uma vítima que ingressaram com a ação em 2017, já adultos, na qual os desembargadores afastaram o argumento de o caso ter prescrito porque o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em 2016, a CIDH cobrou explicações sobre o não pagamento das indenizações.
“A família nem sabia que tinha direito, só depois souberam por uma tia deles que é cliente do escritório”, afirma a advogada Adriana Rodrigues Faria que entrou com o pedido representando os três filhos em 2017. Na época do massacre, eles tinham oito, cinco e três anos de idade.
“E como a investigação na esfera criminal ainda não tinha terminado, não tinha como dizer que o crime tinha prescrito. É dever do Estado zelar pela integridade física de uma pessoa que tinha cometido seus erros, estava preso e foi tirado do convívio da família e dos filhos ao ter sido executado em uma chacina com 111 vítimas”, declarou. “Um dos filhos vive nas ruas até hoje por conta dos traumas sem o pai.”
Juízo de valor
No caso dos valores, as pesquisadoras não localizaram motivação para que a maioria dos processos tenham começado com um pedido de pelo menos 100 salários mínimos para indenização, sem contar pensão e outras custas. Elas acreditam que, como a maioria dos processos foi iniciado na mesma época e pelo mesmo órgão (Procuradoria de Assistência Judiciária), o mesmo critério deve ter sido aplicado a todos os familiares. Contudo, como as ações acabam sendo encaminhadas para juízes diferentes, as decisões e os valores acabam sendo diversos.
“A gente percebeu que na primeira instância houve muitas decisões em que os pedidos foram considerados improcedentes, mas depois o tribunal reconhecia a responsabilidade do Estado”, complementa a pesquisadora Carolina Ferreira. Ou seja, os tribunais reconheciam que o preso é uma pessoa que estava em uma dependência pública e sob responsabilidade do governo paulista cuja obrigação é assegurar por sua vida e direitos.
“Nos acórdãos, a gente viu mais juízo de valor para definir os valores para as famílias do que para reconhecer a responsabilidade do Estado, com muitos argumentos que tentam reduzir o sofrimento das famílias para reduzir o valor do dano moral, e mesmo material, em que se falava ‘mas o preso cometia várias atividades ilícitas antes de ser preso, então não contribuía para o sustento financeiro da família’ ou ‘a família não visitava mais e não tinha mais vínculo próximo e não merece receber todo o valor pedido'”, explica Ferreira.
Na maioria dos casos (72), quem representa as famílias é a Defensoria Pública, como no caso de Julia, já que antes de sua criação, em 2006, quem fazia esse tipo de papel de defesa gratuita era a Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ). Os demais são movidos ou pelo Ministério Público Estadual ou por advogados particulares. Em quatro ações, as famílias cederam parcial ou totalmente o direito de receber os valores a terceiros, o que não é ilegal.
De acordo com o Núcleo, a demora se dá por diversos fatores: processos serem físicos, o que demanda a entrega para cada parte para acesso e para os tribunais; em ações que são movidas contra o Estado, a Procuradoria Geral, que o representa, tem o dobro de tempo para se manifestar do que um advogado particular; rotatividade de defensores atuando nos casos, já que a Defensoria tem poucos membros e muitas demandas; se a família ou o Estado entra com recurso diante de cada decisão e afins. Isso só na parte em que a discussão do processo é acolher ou não os pedidos das partes e definir um valor. “Tem casos que o Estado foi até o STF para recorrer”, aponta a pesquisadora Carolina Ferreira.
A outra demora se dá na segunda fase do processo: a fila dos precatórios, que é a fila de dívidas que o Estado tem para pagar quando o valor dos pedidos já foi definido e não tem mais como questioná-lo. “O tribunal informa o valor que o Estado está devendo para aquela pessoa. O Estado vai colocar numa lista gigante em que tem uma ordem de pagamentos, alguns casos têm prioridade como de pessoas que são idosas, são doentes, ou no caso de vítimas do Carandiru que são de pensões alimentícias, que têm uma preferência”, explica Carolina.
“O Estado vai depositar aquele valor numa conta específica daquele processo, que é do tribunal, então quando isso é feito, em tese, está quase tudo resolvido”, prossegue. “Mas não, porque, quando chega nessa etapa, o juiz vai perguntar para a Defensoria se ela ainda representa aquelas pessoas, se elas ainda estão vivas e, se não estiverem, tem que habilitar quem é herdeiro e ter as contas disponíveis para fazer esse levantamento”. Ela calcula que só essa etapa do depósito para regulamentar e apresentar tudo se passam de dois a três anos, isso se a pessoa conseguir sanar toda essa parte burocrática.
Morte sem reparação
As pesquisadoras da FGV ainda levantaram que familiares que eram os autores principais de 16 pedidos morreram no curso do processo. É o caso de André* e Maria*, que tinham, respectivamente 69 e 55 anos, quando o filho Lucas*, 27, foi morto no massacre. O jovem foi baleado com dois tiros pelas costas, um na cabeça e outro na nuca.
Em 1993, representados pelo Ministério Público, os pais da vítima entraram com um pedido de pensão mensal de 10 salários mínimos até a data em que o filho completaria 65 anos, indenização de danos morais de 1 mil salários mínimos a ser dividido pelo casal, além de custas hospitalares e do funeral.
Quase 10 anos depois, em 2004, o Tribunal de Justiça acolheu em parte os pedidos: acatou o valor da indenização de danos morais e reduziu o da pensão em dois terços de salário mínimo. Quando essa sentença foi proferida, André já tinha morrido dois anos antes, aos 79, após uma parada cardíaca.
Em meio a recursos, em 2010, na segunda instância, os desembargadores do TJ-SP decidiram negar a pensão e reduzir a indenização, fixando não mais em salários mínimos, mas em reais, de R$ 60 mil para ser dividido entre o casal, acrescida de 6% de juros a partir daquele momento.
Maria, contudo, faleceu seis meses antes, aos 73 anos, também por infarto. Com isso, foi preciso habilitar os nove irmãos de Lucas para serem confirmados como herdeiros do pagamento e cujos valores divididos foram depositados em 2020.
No entanto, o processo teve uma reviravolta em 2021, quando um homem que se disse filho não registrado de Lucas e criado pelos avós paternos enquanto o pai estava preso passou a reivindicar o direito de também receber o dinheiro. O processo ainda está correndo.
A pesquisadora Carolina Ferreira sinaliza que se o preso não tinha filhos nem companheira na época e ninguém entrou com ação, os herdeiros vão ser os pais e, se os pais morrerem, provavelmente os irmãos, sendo que o pagamento vai ter que ser dividido entre eles.
“Vimos casos de vítimas com seis, sete irmãos. E o que isso significa na prática: todo mundo tem que apresentar documentação regular, uma procuração para a Defensoria ou advogado particular autorizando entrar no processo, no futuro têm que ter uma conta bancária atualizada com os dados para informar. Então, um contato que a Defensoria teria que fazer só com duas pessoas fica muito mais difícil”, pondera.
E, em alguns casos, segundo ela, não foi possível saber nem a quantidade total de herdeiros porque o processo de inventário da família não foi concluído.
Outro ponto de dificuldade que o Núcleo elenca é que, quando diversos processos estavam na fase de levantar os valores dos precatórios, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar, em 2009, um novo índice de correção monetária e de juros de mora (por demora, por tempo) em casos movidos contra o Estado. Então, muitos desses processos ficaram parados e só foram retomados em 2017 e 2018 com a reformulação dos cálculos ou quando as famílias receberam um valor mínimo e deixaram para discutir os cálculos dos juros e da correção monetária depois.
No caso de André e Maria, houve na decisão de segunda instância a aplicação desse entendimento do STF e os desembargadores escolheram a quantia a ser paga em reais e não mais em salários mínimos, já que na época do pedido a moeda corrente nacional era o cruzeiro e demandava um cálculo mais complexo para ser atualizado.
No caso das pensões, ou as pessoas passaram a receber o dinheiro somado aos valores de indenização ou se tornavam pensionistas no rol de pagamentos da Fazenda Pública diante do extenso período que o processo correu.
Por isso, no caso que os três filhos de uma vítima moveram um pedido de indenização de R$ 150 mil, já adultos em 2017, a etapa dos precatórios começou no ano passado. Ou seja, quatro anos de tramitação só na primeira fase, em um tempo muito menor que os demais embora a ação não esteja totalmente concluída. Um processo digital, impetrado com uma advogada particular e com a questão dos juros e correções monetárias já resolvida.
Para as pesquisadoras, que conseguiram acesso parcial ou integral de 31 ações e persistem para conseguir das demais, o intuito de mergulhar nesses casos é uma forma de resgatar a memória das vítimas e acompanhar a maneira como o Estado tem as tratado.
“É importante que o TJ tenha reconhecido a imprescritibilidade da reparação porque se temos um processo aberto em 2017, outros de pessoas que nem sabemos podem ser abertos em 2022”, afirma Maíra Machado. “São pessoas que estamos buscando para provocar o Estado para que essas vítimas sejam indenizadas”.
Evento discute 30 anos do massacre
Os resultados da pesquisa serão divulgados no seminário Massacre do Carandiru 30 anos: pesquisar o direito na – e diante da – violência estatal, organizado pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena e pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP. O evento pode ser acompanhado de forma presencial ou online pelo canal no YouTube da FGV Direito. Para mais detalhes da programação e como se inscrever para participar, clique aqui.
*Os nomes foram trocados a pedido das pesquisadoras para não expor vítimas e familiares.