Tropa de policiais penais federais ensinou técnicas de tortura em presídios, denuncia Mecanismo

Órgão de combate à tortura pede fim de Força de Cooperação Penitenciária, do governo federal, e recomenda uso de câmeras nos uniformes de policiais penais em relatório apresentado nesta quarta (16) sobre inspeções em oito estados

Detentos em posição de “procedimento” durante inspeção do MNPCT na Penitenciária de Alcaçuz (RN), em 2022. | Foto: Relatório de inspeção no RN do MNPCT em 2022

Quando os detentos escutam os policiais penais gritando “procedimento”, todo mundo já sabe o que fazer e o que não fazer. Todos devem se sentar em fila no chão no fundo da cela, encaixando as pernas nas costas da pessoa à sua frente, e erguer os braços entrelaçando as mãos por cima da cabeça. Ninguém pode se mexer, gesticular, falar, olhar para lado ou cometer qualquer tipo de reação. Caso contrário, os policiais penais podem atirar bala de borracha, espirrar spray de pimenta, jogar gás lacrimogêneo, agredir com cassetete ou outros armamentos ou até quebrar dedos para castigar o preso.

Esse tipo de tortura é um dos ensinamentos da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), que é composta por policiais penais federais, aos policiais penais que atuam na Cadeia Pública Dinorá Simas Lima Deotado (Ceará Mirim) e na Penitenciária Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes (Alcaçuz), ambas no Rio Grande do Norte, conforme inspeções do Mecanismo Nacional de Proteção e Combate à Tortura (MNPCT) em 2022 que foram publicadas neste ano.

A FTIP mudou de nome para Força de Cooperação Penitenciária (Focopen) e é vinculada à atual Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, mas a sua forma de atuação deixou um legado nas unidades prisionais de Roraima, Amazonas, Pará, Ceará e Rio Grande do Sul que deve ser interrompido, segundo o MNPCT.

Na tarde desta quarta-feira (16/8), o Mecanismo divulgou, durante um seminário em Brasília que marca os 10 anos de criação do órgão, relatório que sistematiza 45 inspeções realizadas ao longo de 2022 em oito estados, sendo 28 em estabelecimentos penais (unidades prisionais, carceragens e delegacias); 11 em unidades socioeducativas (onde ficam internados adolescentes); duas em hospitais psiquiátricos; duas em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico; uma em comunidade terapêutica; e uma em instituição de longa permanência para idosos.

No documento, há 47 recomendações, sendo algumas delas a desativação da Focopen, a criação de protocolos de uso da força e uso de câmeras nos uniformes de policiais penais estaduais. Tudo isso condicionado à transferência de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), que é de responsabilidade do governo federal.

A Focopen foi criada em 2001 com o objetivo de “dar apoio de forma excepcional aos estados em situações de crise nos espaços de privação de liberdade” e atuar exclusivamente na guarda e vigilância dos presos por meio de um convênio com a União. De lá para cá, diversas normativas ampliaram o escopo de atuação dessa força, permitindo desde que governadores pedissem o emprego da tropa até a “execução e treinamentos de atividades de segurança e de serviços de inteligência no âmbito do sistema prisional”, conforme Portaria 065/2019, assinada pelo então ministro da Justiça do governo Bolsonaro e hoje senador Sergio Moro (Podemos-PR).

Neste ano, por exemplo, a Focopen foi empregada em março, por determinação do ministro da Justiça e da Segurança Pública Flavio Dino, por conta dos ataques no Rio Grande do Norte. O estado já tinha recebido essa tropa em 2017, quando o houve o massacre na Penitenciária de Alcaçuz. Após as 26 mortes, a unidade teve seu regime disciplinar ainda mais enrijecido, com subsequentes denúncias de tortura e maus tratos observados pelo Mecanismo no ano passado.

Isso fez com que a “excepcionalidade” desse lugar à prática cotidiana, o que Camila Antero, coordenadora geral do MNPCT, chama de “swatização” da tropa, em referência à unidade de polícia norte-americana Special Weapons and Tactics (SWAT), que foi criada nos anos 1960 para atuar em situações de crise, o equivalente às tropas de elite das polícias no Brasil.

“O método da SWAT foi sendo replicado inclusive em forças policiais que não têm essa atribuição de situações extremamente violentas e isso gera um recrudescimento de todas as tropas”, afirma. “Você acaba tendo pessoas extremamente militarizadas que às vezes vão responder com extrema violência a situações cotidianas. Isso faz com que a violência aumente e que os episódios de tortura aumentem, porque essas tropas são treinadas para agir em situações limite e não para agir de forma cotidiana, o que gera uma demanda por violência”, critica.

A Focopen acabou inspirando os estados a criarem suas próprias forças especiais de intervenção que seguem a mesma lógica, segundo a perita. “Nós temos observado que elas abrem a cadeia, que elas fecham a cadeia, que elas têm feito esse papel do policial penal comum, e muitas vezes nós encontramos um baixo efetivo de policiais penais comuns e um efetivo grande dessas tropas militarizadas”, denuncia. “O que nós temos com relação a essas tropas, de uma forma bem disseminada, é um desvio de finalidade e um recrudescimento da custódia,”

Além disso, Camila Antero destaca que os policiais penais e os grupamentos estaduais devem ter protocolos de atuação e de uso da força, algo que não foi encontrado durante as inspeções no Rio Grande do Norte, em Alagoas, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraná e Sergipe.

“O que acontece é que muitas vezes esses grupamentos não têm um estatuto administrativo diferenciado. Por exemplo, na Bahia você tem o Geop [Grupo Especializado em Operações Penitenciárias], que é uma tropa especial composta de policiais penais, mas você não tem nenhum documento da administração penitenciária do estado da Bahia dizendo ‘a Geop vai fazer isso’, ‘atribuições da Geop são essas’, o que gera uma arbitrariedade, porque não se tem as atribuições delimitadas”, explica.

No caso das unidades socioeducativas, o Mecanismo pede a proibição do uso de tropas ou grupamentos especializados por ir contra aos preceitos do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Um exemplo é o Gerenciamento e Contenção (GCon), grupo de funcionários públicos, chamados de monitores, que atua a pedido da direção das unidades no sistema socioeducativo de Alagoas.

Na inspeção na Unidade de Internação Masculina Extensão (Uime) A/B, localizada no Complexo Socioeducativo de Maceió (AL), os adolescentes relataram que esse grupamento costuma fazer a vistoria nos alojamentos, munidos de armas menos letais, para verificar se existe material não permitido no local. Aos peritos, disseram que são retirados de cueca, colocados sentados no chão da quadra sob o sol e ainda passam por revista vexatória ao terem que agachar nus três vezes. Além disso, denunciaram casos de agressões, como tapas e murros durante as revistas, e uso abusivo de spray de pimenta.

“No Brasil existe um fenômeno que a gente chama de ‘cadeização do sistema socioeducativo’, que é de trazer a cultura do sistema prisional para o socioeducativo”, critica Camila Antero. “O socioeducativo sequer poderia se assemelhar a uma prisão porque ele deve ser um espaço prevalentemente pedagógico.”

Ela aponta que esses espaços devem pensar na reinserção social dos adolescentes, uma vez que eles vão voltar para a sociedade após o cumprimento da medida socioeducativa. “Nós temos observado nas nossas inspeções, por exemplo, estruturas extremamente segregadas, portas de quarto como se fossem portas de cela, que são aquelas portas fechadas, muitas grades, uma rotina prevalentemente de isolar o adolescente e de tratá-lo como se ele fosse um criminoso da mais alta periculosidade”, critica. “E a medida socioeducativa não deve isolar o adolescente, deve proporcionar oportunidade profissional, oportunidade profissionalizante, oportunidade de continuar a sua escolarização, de reatar seus vínculos com a família ou de fortalecer seus vínculos com a família”.

O órgão também recomenda uma regulamentação do uso de armas menos letais e proibir o uso de alguns armamentos em unidades prisionais, como “cartuchos de impacto cinético com múltiplos projéteis, pela imprecisão e o risco de causar danos; bomba fumígena HC, pois possui comprovadamente riscos desconhecidos e em decorrência disso sua produção foi banida em outros países; granada de luz e som GL 305, pois a própria fabricante não recomenda para uso interno, devido ao risco de incêndio; espargidor [spray] de pimenta, pois seu uso é destinado à dispersão de multidões e seu uso em locais confinados sem possibilidade de fuga é potencialmente ilícito; bombas CS, pois esse armamento menos letal não é adequado para ambientes confinados e vem sendo usado de maneira irregular pelas forças de segurança.”

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Durante o período de transição do governo Jair Bolsonaro (PL) para a gestão Lula (PT), o MNPCT havia produzido um documento com propostas de políticas públicas voltadas ao sistema prisional no âmbito do grupo de trabalho (GT) do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. As medidas citadas nesta reportagem são mencionada no rol de sugestões.

Para a coordenadora geral do Mecanismo, abriu-se agora uma possibilidade de diálogo, o que não acontecia durante a administração de Bolsonaro, que tentou sucatear o órgão. “Comparado ao governo anterior vai ser sempre melhor, porque o governo anterior era um governo inimigo dos direitos humanos. Quantas vezes o próprio ex-presidente Bolsonaro se pronunciou abertamente a favor da tortura, homenageou torturador no Congresso Nacional? O que a gente espera é que, no mínimo, seja melhor que o governo anterior, mas o governo assumiu tem oito meses e nós estamos esperando políticas concretas”, pontua.

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