PMs da Rota são acusados de executar roupeiro e forjar confronto na Operação Verão

TJ-SP tornou réus tenente e cabo pela morte de Allan de Morais, de 36 anos, em Santos, no litoral paulista, durante ação em fevereiro que deixou 56 mortos. Para MP, policiais plantaram arma e tentaram dificultar registros

O roupeiro Allan de Morais deixou filhos e esposa aos 36 anos | Foto: arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) tornou réus dois policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força de elite da Polícia Militar paulista, pela morte do roupeiro Allan de Morais Santos, de 36 anos, no dia 10 de fevereiro em Santos (SP). É a primeira acusação contra agentes que atuaram na Operação Verão — que deixou mais de 56 mortos na Baixada Santista.

O juiz Alexandre Betini determinou que o tenente Diogo Souza Maia e o cabo Glauco Costa sejam afastados do trabalho das ruas e permaneçam em trabalho administrativo ao acolher — parcialmente — o pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). O MP havia requisitado o afastamento integral dos dois das funções de polícia durante o processo.

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De acordo com a denúncia, a dupla executou a vítima, simulou um confronto, plantou armas e tentou dificultar o registro das ações pelas suas câmeras corporais portáteis (COP). No caso do tenente, o equipamento que ele usava estava com a bateria descarregada. A Ponte teve acesso ao documento que foi revelado pela Globonews nesta terça-feira (26).

À reportagem, a assistente jurídica e esposa de Allan, Luciana de Castro, 32, disse estar aliviada. Ela conta que o companheiro era auxiliar de roupeiro no Jabaquara Atlético Clube, em Santos, e retornava para casa após um dia de trabalho quando foi assassinado. “Graças a Deus a justiça vai ser feita”, disse ela, emocionada. “Embora eles não consigam trazer meu marido nunca mais, já me sinto um pouco aliviada para que outras famílias não passem o que eu passei.”

“Eles [os policiais da Rota] destruíram minha família, destruíram minha vida e é difícil recomeçar”, disse a viúva. “Como eles conseguem dormir depois do mal que fizeram?”

Gravação de câmera corporal anexada na denúncia do MP-SP mostra tenente Diogo Maia ao lado da janela do carro de Allan Morais, já baleado, com as mãos em seu interior para, dizem os promotores, forjar o confronto

Vítima não tinha condições de atirar

A versão dos policiais é de que eles receberam uma denúncia de que um homem apelidado de “Príncipe”, que seria integrante da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), estaria transportando um carregamento de armas.

Segundo os agentes, por volta das 17h38, a viatura emparelhou o veículo pela esquerda enquanto outra o cercou pela frente na Avenida Martins Fontes. O tenente Diogo Maia desembarcou da viatura que estava emparelhando e mandou o condutor, Allan, descer. O homem teria então empunhado uma pistola, o que fez o tenente dar quatro tiros de fuzil. Depois, o jipe teria acelerado contra a viatura da frente, momento em que o cabo Glauco Costa deu mais quatro tiros de pistola.

Os policiais atribuíram uma pistola prata à vítima e disseram que um fuzil foi encontrado no porta-malas do jipe. Allan teria sido levado já sem vida ao hospital. Todos os PMs que estavam na viatura que emparelhou o jipe tinham as câmeras corporais descarregadas.

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Os promotores Marcio Leandro Figueroa, Raissa Nunes de Barros Maximiliano, Daniel Magalhães Albuquerque Silva, Francine Pereira Sanches e Fábio Perez Fernandez verificaram as câmeras corporais de 30 policiais que participaram da ocorrência pois, sustentam, toda a equipe se comportou de maneira a dificultar os registros — seja tapando deliberadamente os equipamentos com as mãos, seja guardando na viatura ou no bolso ou se posicionando de forma a evitar a gravação contínua. Ou seja, a equipe teria se virado, andado para outras direções e evitado se aproximar dos colegas.

O tenente Diogo Maia, que alvejou a vítima primeiro, estava com a câmera corporal desligada. O MP-SP argumenta que Allan não teria como ter atirado nem acelerado contra a viatura da frente pois já tinha sido atingido a curta distância pelos disparos do tenente e sofrido fraturas nos ossos do rosto, clavícula e braços, o que impossibilitaria qualquer tipo de movimentação.

A câmera corporal de outro PM mostrou que o tenente “se colocou ao lado da janela do carro da vítima, com um dos braços mexendo no interior do veículo” e forjou o confronto com mais dois disparos, já que Allan estaria sem movimentos. Os estampidos dos dois tiros só foram captados por causa das câmeras corporais que outros policiais mais afastados estavam usando.

‘Encenação’

Depois, dizem os promotores, o cabo Glauco “inclinou seu peito para o chão, de forma que a sua COP não filmasse o que se passava no interior do veículo”. Por causa disso, não há registro de como a pistola prata atribuída a Allan foi encontrada nem a “encenação anterior” dos dois tiros.

Eles afirmam que policiais colocaram uma cápsula dentro do assoalho do jipe para dar veracidade à narrativa de confronto, pois um policial que dava apoio à ocorrência, e usava COP, fez uma primeira revista do veículo e não havia detectado a presença da cápsula. Laudos da perícia indicaram que houve apenas disparos de fora para dentro do jipe. Para os procuradores, o fuzil supostamente encontrado no jipe também foi plantado, já que o cabo Glauco tinha feito uma primeira revista no porta-malas, quatro minutos após Allan ser baleado, e não localizou nada de ilícito.

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“Nessa ocasião, para que a COP não gravasse a inexistência do fuzil no porta-malas, Glauco Costa, ao fazer a revista, deixou a porta traseira do carro fechada para que fosse filmada apenas a lataria do carro”, descrevem. Só depois de 14 minutos, numa segunda revista feita por Glauco, o fuzil aparece.

“Restou demonstrado, por conseguinte, que os acusados simularam um confronto realizando disparos depois de a vítima estar incapacitada, esconderam o suposto encontro da pistola, bem como colocaram, depois, uma cápsula deflagrada no interior do veículo, tudo com o objetivo de transparecer que o ofendido portava uma arma de fogo e que atirou contra eles”, escreveram os promotores. Por isso, denunciaram Diogo e Glauco por homicídio qualificado com agravante de recurso que dificultou a defesa da vítima. Esse tipo de agravante aumenta a pena do crime, que pode variar de 12 a 30 anos de prisão.

Os promotores sugerem que o uso indevido das câmeras corporais pelos demais policiais devem ser apurados no âmbito da Justiça Militar, porque não seriam da competência da Justiça Comum e pediram arquivamento da acusação de homicídio contra os policiais Alex Costa e Richard Teixeira, por entenderem que eles não tiveram participação na ação.

Operações de vingança

A chamada Operação Verão costuma ocorrer entre dezembro e fevereiro de todos os anos devido ao aumento de fluxo de pessoas na Baixada Santista durante o período de férias. Este ano, após os assassinatos de três policiais militares — especialmente depois que o soldado Samuel Wesley Cosmo, da Rota, foi morto durante um patrulhamento no dia 2 de fevereiro, em Santos — uma ação que seria de represália teria sido organizada pela PM. Dividida em três fases, foi prorrogada até 1º abril.

Como Ponte revelou, esse batalhão fez em dois meses 19 vítimas, o equivalente à metade do que matou (38) no ano inteiro de 2023, com base no levantamento do Ministério Público de São Paulo. Para se ter uma ideia, em janeiro, a Rota matou uma pessoa em Santos. Mas no dia seguinte ao assassinato de Cosmo, os policiais mataram cinco pessoas, sendo quatro delas em Santos e uma em São Vicente.

Foram 17 vítimas da Rota na Baixada até 19 de fevereiro. Já em março, foram mais duas. Como a Ponte mostrou, a letalidade policial na Baixada Santista cresceu 394% no primeiro trimestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. 

Ao todo, a secretaria contabilizou 56 mortos na Operação Verão. A Ponte ouviu familiares que contaram as histórias de parte dessas vítimas nessa região: Hildebrando Simão Neto, 24, e Davi Gonçalves Júnior, 20, que tiveram a casa invadida por PMs quando esperavam o café; José Marques Nunes da Silva, 45, que foi abordado quando voltava para casa após um dia de trabalho como catador de latinhas;  Leonel Santos, 36, e Jefferson Miranda, 37, que eram amigos de infância e foram baleados após se encontraram na rua depois que Leonel tinha ido a uma pizzaria; o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, que foi morto dentro de casa, que teria sido lavada diante de PMs antes de a perícia chegar.

‘Não tô nem aí’

Neste ano, uma comitiva liderada pela Ouvidoria das Polícias com 13 entidades de direitos humanos fez duas visitas, a primeira em 11 de fevereiro, em comunidades de Santos e de São Vicente, e a segunda em 3 de março, nas duas cidades e também em Cubatão, e conduziu uma audiência pública na capital paulista. Além das denúncias reveladas pela Ponte, o grupo ouviu relatos de invasão de casas, ameaças contra crianças, abordagens violentas, agressões, desfazimento de cena de crime, além de entrevistar dois feridos e familiares de 12 pessoas que foram mortas.

Ainda assim, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) menosprezou as denúncias e defendeu as operações. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, declarou.

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O mesmo modus operandi aconteceu na Operação Escudo, deflagrada em 28 de julho de 2023, um dia após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, também da Rota. Ele foi baleado em serviço no Guarujá. No dia 28, os policiais desse batalhão mataram três pessoas. No dia seguinte, mais três. Outras duas nos dias 30 e 31 de julho. As duas são consideradas operações de vingança por moradores, ativistas, pesquisadores e entidades de direitos humanos.

No caso da Escudo, o TJ-SP arquivou 27 das 23 investigações a pedido do MPSP, sendo que apenas oito PMs são réus por quatro mortes.

O que diz o governo

Procurada, a Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, enviou a seguinte nota:

A Polícia Militar esclarece que a ocorrência foi investigada por meio de IPM, que foi encaminhado à Justiça. Os policiais envolvidos na ocorrência permanecem afastados do serviço operacional até o final do processo. Todos os casos de Morte em Decorrência de Intervenção Policial são rigorosamente investigados pelas forças de segurança, com acompanhamento das respectivas Corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário.

A Ponte não conseguiu localizar defensores dos policiais militares acusados.

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