Especialistas ouvidos pela Ponte analisam estudo feito pela Unifesp, que traça perfil dos dependentes, causas para ida à região e até valor do consumo diário de R$ 192
Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (clique aqui e acesse o material disponibilizado), traçou o perfil de quem vive na região da Luz, chamada de Cracolândia, zona central da cidade de São Paulo, os motivos que o levaram à região, ao vício e até definiu o total que gastam diariamente com o consumo. Especialistas convidados pela Ponte a analisar o estudo alertam para a questão racial e a fragilidade em relação ao dado sobre o “mercado do crack”.
Em dezembro de 2019, os pesquisadores entrevistaram 240 pessoas e definiram as estatísticas da Cracolândia, com um perfil de quem vive na região: homem (68,7%), negro ou pardo (76,8%), com idade média de 35 anos, vindo da capital ou Grande São Paulo (50%). O estudo chega à população diária de 1.680 pessoas nas ruas da Luz.
Essas pessoas, seguindo o estudo, têm ensino fundamental incompleto (36,1%), são solteiras (77,6%), vivem sem renda ou benefícios dados pelo governo (57%) e estão sem emprego há mais de um ano (79,4%). Este último número sobe quando o período de análise é aumentado para cinco anos (52%).
Dos entrevistados, 58,8% citaram entre as motivações para viverem na região o fato de não terem moradia ou acesso à alimentação, o abandono de suas famílias, o luto que passaram por perdas, o fato de terem amigos ou familiares vivendo na região e também a ida para poupar seus familiares do vício que enfrentam.
Eles também elencaram a disponibilidade da droga (31,2%), a sensação de segurança entre os dependentes (20,4%), o preço da droga (16,4%), a liberdade para uso (14,8%), o serviço de saúde existente na área (7,6%) e a preferência de uso em grupo (6%). Não há estatística sobre idade do início do vício ou uso de drogas.
O estudo foi apresentado em um documento de Powerpoint e especialistas da área ouvidos pela Ponte consideraram que faltava um detalhamento para que fosse possível uma análise mais detida do levantamento. A reportagem solicitou um relatório mais detalhado à Unifesp, mas não obteve retorno.
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A vulnerabilidade social é um ponto destacado por Maurício Fiore, antropólogo e integrante da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Segundo ele, uma série de causas provocam a ida e permanência dessas pessoas na Cracolândia.
Ele explica que a situação das pessoas que usam crack é antes de tudo um problema social. “Há a pobreza da quebra de vínculos. Existem relatos disso, de traição, briga com pais… A questão sexual é relevante, porque tem muitas pessoas trans, pessoas que saem da periferia por estarem ameaçadas no local de origem. Tem a ver com vulnerabilidade”, argumentou à Ponte.
Segundo ele, a visão de que existe somente uma doença quando se trata do crack não se sustenta. Este apontamento é feito pela pesquisadora Clarice Madruga, responsável pela pesquisa, em entrevista à Folha de S.Paulo. “O que existe é uma doença que faz com que alguém inserido na sociedade caia na rua”, declarou.
Clarice, ainda em entrevista à Folha, vai além na explicação. “O frequentador [da Cracolândia] não é, em sua maioria, um ex-menino de rua que caiu ali”, citando a precocidade nas drogas e álcool como fatores para a dependência.
O antropólogo Fiore vê na pesquisa dados que apontam para o contrário. “Você encontra na Cracolândia um público mal escolarizado, pobre, negro e que vem das camadas mais vulneráveis da população. A sensação que deu é que são pessoas que decaíram exclusivamente pelo crack, como doença, sendo que os dados que apresentam não mostram isso”, emendou.
Ao mesmo tempo que mostra as causas da ida e permanência, o estudo aponta que 46,7% dos entrevistados já pararam ou diminuíram o uso por receber apoio de familiares e amigos ou pela conquista de um emprego/atividade remunerada. Antes de estarem na Cracolândia, 78% dos entrevistados viviam em suas próprias casas ou na de familiares.
Pessoas que atuam com a população de rua na região da Luz também questionam pontos do estudo feito pela Unifesp. Roberta Costa integra o coletivo Craco Resiste, que presta auxílio aos dependentes, e questiona o número total de habitantes do local apontados pela Uniad.
“Um problema metodológico que compromete os dados da pesquisa é que não foi feita a contagem da população noturna, completamente diferente da do dia. O fluxo pelo menos dobra de tamanho à noite”, explicou, destacando a questão racial, pouco abordada, segundo ela. “São 76,6% de pretos ou pardos. Dada a importância do debate racial, vejo falta de importância para esse dado. Falta seriedade à questão racial”.
O mesmo entende o psiquiatra Flávio Falcone, que atuou por anos em programas do governo municipal e estadual na região, e hoje realiza seu trabalho como palhaço com os dependentes. Falcone está atualmente desenvolvendo o documentário “Riso da Dor” sobre seu trabalho na Cracolândia. Segundo ele, a região é uma prova de como foi o dia seguinte à abolição da escravidão, ocorrida em 13 de maio de 1888.
“Os negros foram jogados para as praças sem roupa, sem casa e depois veio a lei da vadiagem e afins. A Cracolândia é o fantasma do dia seguinte da abolição, um problema estrutural da sociedade que não queremos olhar”, definiu o especialista, que critica a pouca visibilidade dada à questão racial. “[O vício em crack] É uma questão social, é óbvio”, prosseguiu.
Economia é baseada em ‘extrapolação espúria’
Enquanto elenca essa série de vulnerabilidades, a pesquisa indica que chegou a um valor médio gasto com crack pelos dependentes que frequentam a região diariamente: R$ 192,50. Esse dado tem como base entrevistas feitas com 30 pessoas abordadas de forma aleatória.
Pegando o valor como referência da totalidade de dependentes, os pesquisadores juntaram com o público que obtiveram como presentes todos os dias na Cracolândia, de 1.680 pessoas, e chegaram ao montante de R$ 9,7 milhões movimentados mensalmente na região.
Maurício Fiore explica que tal alternativa é usada em pesquisas, mas de forma cuidadosa. O método de extrapolação deve ser visto como o dado mais “sensível e questionável” da pesquisa. “A extrapolação foi espúria, não dá para chamar de mercado com sua mostra de 30 pessoas por conveniência e fazer uma conta dessa”, criticou.
Para ele, não dá para dizer que os entrevistados mentiram, mas os números precisar ter um asterisco. Ele exemplificou sua crítica ao pegar a média traçada para pessoas trans, com base em duas entrevistas, que renderam média de R$ 700 gastos por dia com crack.
“Levando o estudo em conta, elas [as duas trans entrevistadas] gastariam R$ 21 mil por mês. Teriam condição de fazer uso de heroína. Não é o perfil da região pelo tanto de dinheiro”, citou.
Segundo o psiquiatra Flávio Falcone, a questão dos R$ 10 milhões que renderiam por mês a Cracolândia, segundo o estudo, e os dados sobre roubos são exemplos de como a guerra de classes está inserida na região. “O roubo de celular, o meio mais comum de infração de usuários, é um sintoma dessa luta”, exemplificou.
A ativista Roberta Costa considera que o estudo mostra a falta de resultados trazido por uma megaoperação feita pela Prefeitura e pelo Governo do Estado de São Paulo em maio de 2017. A promessa era acabar com o crime organizado que atuava ali e com a própria definição de Cracolândia.
“[A operação] Ia acabar com a Cracolândia, com 800 servidores, helicóptero… Quanto custou tudo isso para não achar droga nenhuma, prender um monte de usuário, não os verdadeiros traficantes? A pesquisa mostra o quanto bizarra é a operação”, disse.
A Plataforma Brasileira de Política de Drogas emitiu nota cobrando “cuidado com os dados e com as pessoas”. Segundo a entidade, o foco dado por reportagem da Folha de São Paulo, destacando o mercado de droga apontado pela Unifesp, é “extremamente questionável em termos de confiabilidade”.
“A complexidade da economia do tráfico em cenas de uso de grandes cidades pode ser bem maior do que a simples multiplicação de números. Os números parecem mais querer gerar uma visibilidade midiática simplista do que, de fato, produzir conhecimento”, apontou nota, criticando o enfoque em assaltos como forma de se obter a droga.
“Ao atribuir a responsabilidade pela violência na região aos próprios moradores e moradoras, a responsabilidade do Estado na produção de desigualdades sociais é afastada e todas as questões estruturais são ignoradas, restando como única saída possível a intervenção das polícias”, sustentou a Plataforma.
Abstinência e comunidades terapêuticas
Outro ponto destacado por Roberta Costa é a fala sobre comunidades terapêuticas. Segundo ela, isso é visto quando 40% dos entrevistados falam que já estiveram em comunidades, outros 46% em hospitais e os tratamentos não encerraram o vício.”Quase 87% já esteve internado e fala que a comunidade não funcionou”, afirmou, citando que a pesquisa é feita “por um grupo que historicamente defende as comunidades terapêuticas” e a abstinência como única forma de combater as drogas.
O antropólogo Mauricio Fiore considera que esta visão de que o vício em crack é uma doença que retorna independentemente do tratamento faz sentido na visão de quem sustenta o tratamento justamente nas comunidades terapêuticas.
Para ele, esta é a opção menos efetiva para combater o vício. “Tem um discurso político que se aproveita de ideia de doença crônica para colocar internação como único caminho, afinal é um doente incurável”, disse. “O que muitas pessoas defendem é que as pessoas se perderam e estão se matando”, afirmou, elencando que a mortalidade do crack é maior por violência e doenças, como tuberculose e Aids, do que por overdose.
De acordo com Flávio Falcone, a escolha por não regulamentar o uso de entorpecentes, enquanto se mantém a guerra às drogas, mostra uma luta perdida. “É preciso rever a política de drogas, diminuir a violência e investir em pesquisa séria. A questão é sempre a mesma: racismo, guerra às drogas e proibicionismo”, afirmou.
Sobre a pesquisa, o psiquiatra aponta que o grupo relacionado à pesquisa da Uniad e da Unifesp é historicamente conservador e segue o discurso de manter a guerra às drogas e o proibicionismo. “Se testamos e não funcionou, como atitude de um verdadeiro cientista, tem que testar outra”, sustentou, dizendo que temos hoje em dia “a mesma pena seguinte ao dia da abolição”.
A Uniad tem entre seus pesquisadores o professor Ronaldo Laranjeira, diretor presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina. A Ponte solicitou à Unifesp por duas vezes entrevista com Laranjeira e não obteve respostas.
Em 2014, Laranjeira ocupava o cargo de coordenador da política anticrack da Secretaria de Estado de Saúde em 2014 e contratou a Associação para reformar e administrar uma unidade do programa Recomeço na Cracolândia. O prédio fica na rua Helvetia, número 55.
À época, o Ministério Público de São Paulo iniciou uma ação civil pública para investigar se havia conflito de interesses. Segundo o promotor da Saúde Pública Arthur Pinto Filho, o Tribunal de Justiça de São Paulo inocentou Laranjeira em agosto de 2019.
“Na decisão, o TJ considerou que era de fato antiético, mas que prestam um belo serviço”, explicou o promotor.
“É um prédio sem ninguém e dizem que atende 5 mil por dia, é uma loucura completa. Não atende 100 pessoas por dia ali. Pouca gente do fluxo entra no prédio e se coloca como se fosse o centro de tudo, equivoco completo”, aponta o promotor.
A reportagem solicitou à assessoria de imprensa da Unifesp, a Exlibris Comunicação Integrada, entrevista inicialmente com o doutor Laranjeira. A assessoria explicou que esperava retorno do professor e questionou se a entrevista poderia ser com a pesquisadora Clarice Madruga. Ao dar resposta positiva, a Ponte não obteve mais respostas sobre as entrevistas.