Ministério Público Federal responsabilizou seis pessoas, quatro delas militares, pelo assassinato do jornalista em 1975; juiz usou Lei de Anistia para negar denúncia
A Justiça Federal de São Paulo rejeitou denúncia feita pelo MPF (Ministério Público Federal) que acusava seis pessoas pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, durante a ditadura militar (1964-1985).
O juiz Alessandro Diaferia, da 1ª Vara Criminal Federal de São Paulo, considerou que o crime se enquadra na Lei de Anistia, assinada em 1979. O texto perdoava os que “cometeram crimes políticos ou, conexo com estes, crimes eleitorais”.
Em nota, o Instituto Herzog, criado para preservar a memória do jornalista e para a constante luta pela democracia, considerou “lamentável” a decisão.
“O Instituto Vladimir Herzog segue incansável na luta pela reinterpretação da Lei da Anistia pressionando para que o Brasil siga os acordos internacionais que ratificou e assinou voluntariamente para que que todos que cometeram crimes de lesa humanidade nos porões da ditadura sejam julgados e responsabilizados”, declarou.
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A Lei da Anistia também inclui quem teve os direitos políticos suspensos e as pessoas que trabalharam pelo governo ditatorial, caso dos militares do Doi-Codi (Destacamento de Operações e Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), onde os presos pelo regime eram levados e torturados.
“Nesse passo, deve ser dito que a anistia é uma das formas de extinção da punibilidade que se caracteriza pelo esquecimento jurídico do ilícito, concedida pelo Congresso Nacional, por meio de lei, não suscetível de revogação, e que possui como decorrência a extinção de todos os efeitos penais dos fatos, remanescendo apenas eventuais obrigações de natureza cível”, argumenta o magistrado.
A lei é considerada constitucional e passou por uma revisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2010. Assim, Diaferia avaliou que “é de rigor o reconhecimento da extinção da punibilidade dos acusados para os delitos narrados no presente feito”.
Em julho do ano passado, depois que Bolsonaro zombou publicamente da dor da família do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, filho de Fernando Augusto de Santa cruz, morto pelo regime militar, a Ponte fez uma reportagem em que defensores de direitos humanos e ex-presos políticos explicaram as deturpações sofridas pela lei, que, em sua origem, tinha um bom princípio.
“A lei anistia as pessoas que lutaram contra a ditadura. Não está escrito nessa lei que foi proibido punir os torturadores. Isso foi interpretado, posteriormente, por políticos, pelos próprios militares, ao entender que os torturadores também estariam anistiados”, destacou, à época, Amelinha Teles, 74 anos, militante e vítima da ditadura.
Herzog era diretor da TV Cultura quando foi levado, durante a ditadura militar, ao DOI-Codi de São Paulo, onde foi preso, torturado e morto. Na época, o governo ditatorial alegou que Vladimir Herzog cometeu suicídio no do Doi-Codi. A farsa ficaria conhecida em imagem amplamente divulgada pelo regime.
O MPF aponta que os ataques durante a ditadura “eram particularmente dirigido contra os opositores do regime, entre eles a vítima, e matou oficialmente 219 pessoas”.
Segundo o órgão, Audir Santos Maciel, José Barros Paes, Altair Casadei, Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Durval Ayrton Moura de Araújo atuaram para encobrir o crime cometido pela ditadura.
Audir comandava o Doi-Codi, José e Altair chefiavam o setor local do Exército, os médicos Harry e Arildo escreveram o atestado de óbito falso de Herzog e Durval integrava o Ministério Público Militar.
Segundo a denúncia, José Barros Paes, ex-chefe de comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, e Audir Santos Maciel, então comandante do DOI-Codi, são acusados de homicídio qualificado e são os responsáveis diretos pelo assassinato de Herzog.
Eles também foram denunciados por fraude processual, ao lado de Altair Casadei, ex-agente da unidade, uma vez que o trio alterou a cena do crime e posicionou o corpo do jornalista para que a versão oficial forjada, de que Herzog havia cometido suicídio por enforcamento, tivesse credibilidade.
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Harry Shibata e Arildo de Toledo, médicos legistas, foram denunciados por falsidade ideológica, já que assinaram os laudos necroscópicos do IML (Instituto Médico Legal) que atestaram o suicídio. Os médicos omitiram as marcas no corpo do jornalista, que evidenciavam a prática de tortura.
Por fim, Durval Moura Araújo, promotor de Justiça Militar aposentado, foi denunciado por colaborar na versão oficial, ou seja, por prevaricação. Foi Araújo quem atuou para que testemunhas fossem desconsideradas ou intimidadas ao longo do inquérito policial militar referente ao caso, que acabou arquivado em março de 1976 sem apontar as verdadeiras circunstâncias do crime.
Impunidade continua
Em 2018, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Brasil por crime de lesa-humanidade por não investigar, julgar ou punir os responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog, do dia 25 de outubro de 1975.
Segundo o juiz Alessandro Diaferia, responsável pela decisão que rejeitou a denúncia, o entendimento do STF prevalece ao do tribunal internacional. “Neste sentido, considerando que este Juízo submetesse às decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal, caberia apenas a este, caso entendesse pertinente, rever suas próprias decisões”.
A família de Herzog havia comemorado a decisão do tribunal internacional, agora invalidade pela Justiça Federal. “Essa sentença representa uma luta que vai além dos tempos atuais e de meu pai. É de todos os familiares que foram vítimas deste período e que a Lei da Anistia segue impedindo de investigar”, afirmou Ivo Herzog, à época.
Filho mais velho de Vladimir e Clarice Herzog, Ivo tinha 9 anos quando seu pai foi preso, torturado e morto. “Eu espero que o Ministério Público arque com as investigações, que as histórias e verdades sejam levadas à Justiça e que os assassinos paguem pelo o que cometeram”.
O Instituto Vladimir Herzog classificou que a denúncia do MPF colocava “um ponto final nestes 45 anos de impunidade, que deixou um legado no imaginário coletivo que se traduz na tolerância à violência do Estado e, muitas vezes, no reconhecimento da legitimidade do uso desproporcional da força”.
Correção: a discussão no STF sobre a anistia se deu em 2010 e não em 2019, como anteriormente informávamos.