Para que adesão seja efetiva, Estado precisa considerar as dinâmicas das quebradas e, ao contrário de violar, promover a vida
Jardim Tropical é um bairro da periferia da Grande Vitória, no Espírito Santo. Mas as casas interligadas, os “puxadinhos” e o asfalto precário fazem com que a localidade guarde semelhança com milhares de outros comunidades populares pelo Brasil. Pela descrição, guardando as especificidades, poderia ser Brasilândia, em São Paulo. Poderia ser a Maré, no Rio de Janeiro, poderia ser Benedito Bentes, em Maceió. Poderia ser Terra Firme, em Belém.
Em Jardim Tropical, a circulação é intensa. No pequeno centro comercial, as lojas seguem abertas, algumas à meia porta. Na praça, crianças e adolescentes jogam bola e soltam pipa. O uso de máscara por algumas das pessoas que caminhavam nas ruas era o único indício de que o Brasil está vivendo uma epidemia de alta letalidade. A resposta de uma das moradoras sobre o perigo da propagação da doença foi cortante: “Está nas mãos de Deus. Eu não tenho medo. Para Deus, nada é impossível”
A intensa movimentação no Jardim Tropical demonstra que as medidas de isolamento social falharam. Assim como o bairro da periferia da Grande Vitória, as notícias que chegam de outras quebradas é que a quarentena também tem baixa adesão.
Os motivos para a resistência ao isolamento social nas periferias são muitos. O primeiro e mais grave deles é a urgente necessidade de as pessoas trabalharem. Isso é óbvio e cruel. As atitudes do presidente ao minimizar a pandemia só pioram o quadro de desigualdade.
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Agindo como uma criança pirracenta ao descumprir as orientações da Organização Mundial de Saúde, Bolsonaro passa sinais contraditórios à população. Criando um falso dilema entre a escolha pela infecção e o desemprego, o chefe do Executivo se exime de sua responsabilidade em garantir tanto a saúde, quanto o sustento do seu povo em situações de emergência. Sua estratégia é que 70% dos brasileiros se contaminem para criar a suposta imunidade. Se morrerem pessoas no processo, “e daí? ”, ele lamenta.
O que o presidente parece não lamentar é a estimativa de que a maioria dessas mortes seja a dos mais pobres. Os dados apontam que a Covid-19 é mais agressiva nos bairros populares, gerando uma taxa de letalidade expressivamente mais alta do que nos espaços das camadas médias e altas. Na cidade de São Paulo, a chance de morrer em decorrência do coronavírus na Brasilândia é dez vezes maior do que no rico bairro dos Jardins.
Mas além da irresponsabilidade do presidente, há outros fatores que devem ser levados em consideração quando se analisa a baixa adesão das periferias às medidas de isolamento social. Um desses fatores está nas relações com o Estado. A coerção estatal nos espaços populares não é tácita. É efetiva. É uma relação de ausências e presenças como definem as antropólogas Veena Das e Deborah Poole. Nesse movimento de ausências e de presenças, a atuação do estatal ora é bélica, por meio da violência por policial, ora é ausente, como demonstram os precários índices de IDH das localidades mais pobres.
Essa relação pendular possibilitou nos territórios marginais relações sinuosas e escorregadia com o Estado. As “leis da favela” não são as mesmas das leis oficiais das camadas médias. O resultado é que os fluxos de poder dos espaços populares se legitimam em relações mais complexas e próprias.
Diante dessa conotação específica de autoridade estabelecida em décadas, não serão propagandas com artista ricos e brancos que, de dentro de seus confortáveis lares tentam convencer as pessoas a ficarem em casa, que vão estimular o isolamento social nas quebradas.
Ali o papo é outro.
Primeiro é preciso reconhecer que é o sentido de aglomeração nos bairros populares é distinto. Como não se aglomerar em casas de mínimos cômodos e interligadas? As favelas são densas. Nesses espaços de densidade, as sociabilidades são exercidas nas ruas, nas portas das casas, nas praças, nos becos.
Existe também um fator mais cruel. Morte e doença fazem parte da experiência periférica. Dengue, zika, tuberculose são enfermidades que estão longe de serem estranhas para os moradores, que convivem há anos com a insalubridade e com a dificuldade de obtenção de atendimento médico.
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Ao lado das políticas públicas precárias, a vida nas periferias é bélica. O número de mortes violentas são a prova inclemente desse fato. Só no Espírito Santo, estado com pouco mais de quatro milhões de habitantes, foram mais de 300 homicídios só nos três primeiros meses do ano.
Nessa vida bélica, há uma associação que parece contraditória, mas é, de fato, completar: a relação com crença. O cotidiano das periferias é encantado. O sobrenatural habita os contextos populares. Nesses espaços, ouvir que a saúde e a doença estão nas mãos de Deus não assusta. Faz sentido.
Para evitar o cenário de tragédia, são exigidas políticas que respeitem a especificidades dos bairros populares. Em primeiro lugar, são necessários centros de testagens localizados para evitar a subnotificação. Em segundo lugar, as medidas de isolamento social devem ser aplicadas levando-se em conta as próprias dinâmicas de circulação das periferias, marcadas pelo relevante, e nem sempre pacífico, papel das relações de vizinhança. Para serem efetivas, as medidas devem ser dialógicas ao considerar as lideranças locais, e, nesses casos, incluem-se as centenas de igrejas.
Na luta pela adesão dos moradores das periferias, os espaços de devoção devem ser vistos como aliado. Com um cotidiano marcado por diversas manifestações das religiosidades, a crença, como dito, possui autoridade. Onde a saúde também “está nas mãos de Deus”, os líderes das numerosas denominações que povoam os bairros populares devem ser chamados para o diálogo com os poderes públicos.
No momento de emergência sanitária como o que vivemos hoje, é hora de o Estado olhar para a periferia com respeito. Ao compreender as dinâmicas das quebradas e se abrir ao diálogo, as ações estatais podem ganhar adesão e o Estado assumir seu papel, não como violador, mas como promotor de políticas que garantam a saúde e a vida, não apenas no Morumbi, mas também em Paraisópolis, Jardim Tropical e tantos outros bairros, que compõem as periferias brasileiras.