Emerson da Silva Muniz fugiu de abordagem por não ter habilitação e temer perder a moto, seu instrumento de trabalho; PM fala em sacola de drogas e testemunha nega
Desde o dia 19 de junho o motoboy Emerson da Silva Muniz Cavalcante, 20 anos, está preso no Centro de Detenção Provisória de São José dos Campos, por tráfico de drogas, crime ocorrido em Jacareí, cidade no interior de São Paulo. PMs afirmam ter encontrado 346 gramas de maconha em uma sacola que ele carregava, mesmo que uma testemunha negue ter visto qualquer sacola com o motoboy.
Negro, Emerson estava em sua moto naquela noite, quando viu motocicletas da PM e decidiu fugir. Ele teve medo, pois não possui habilitação para dirigir, mesmo trabalhando como entregador. Além disso, sua moto estava com os documentos atrasados. Por ter tido outro veículo apreendido no começo do mês, preferiu fugir do que correr o risco de perder outra moto.
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Durante cerca de 50 minutos, Emerson tentou despistar os policiais, como consta em boletim de ocorrência. Em determinado momento, quando chegou no bairro Jardim Santo Antônio da Boa Vista, abandonou o veículo ao ouvir tiros, segundo contam seus familiares.
O motoboy decidiu correr e entrar em uma casa. Pulou quintais das residências vizinhas para tentar fugir, mas foi pego pelos PMs. Nesse momento é que os PMs alegam que encontram uma sacola com 346 gramas de maconha.
De acordo com o boletim de ocorrência, feito na delegacia de Jacareí, os PMs dizem ter encontrado a sacola com 19 papelotes grandes e 31 pequenos de maconha e mais R$ 10 ao revistar Emerson. Não detalham em que local estava a sacola, se no bolso, nas mãos, na moto ou se o jovem tentou jogá-la fora durante a fuga.
Sob a condição de não ser identificada, uma testemunha nega a versão apresentada pelos policiais militares à Polícia Civil. Em conversa com a Ponte, um morador do bairro em que o motoboy foi preso afirma não ter visto nenhuma sacola com ele ou com os policiais durante a prisão.
“Na hora que iluminaram a casa ele tirou a camiseta. Desceu da casa, os policiais o trouxeram para o outro lado da rua. Não tinha nada como sacola, nada de característica de que ele estava com droga”, destaca.
A pessoa afirma que a ação durou pelo menos 30 minutos depois de Emerson já ter sido pego pelos policiais. “Não falaram nada de droga para ninguém. Os policias estavam conversando entre eles. Só isso. Afastaram a população, não deixaram ninguém ficar perto”, diz.
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Os policiais levaram Emerson para a delegacia. Lá, conta Erica Rodrigues da Silva, namorada do motoboy, em um primeiro momento não se falou em tráfico de drogas. O advogado Everton Silva, que defende o motoboy, entrou no local uma vez e, quando voltou, não falou sobre essa acusação. Minutos depois, entrou novamente no DP e, ao sair, informou à família sobre a tal sacola com maconha.
“Ficaram meia hora com ele dentro da viatura. Não apresentaram maconha. Ele entrou, o advogado foi junto e não falaram em droga”, diz. “Só depois apresentaram a maconha. O Emerson disse que não tinha nada. Nem o celular apreenderam, ele estava sem nada na mão”, frisa.
A versão da testemunha não consta em boletim de ocorrência nem no processo da prisão. A delegada Ziqueide Vita da Silva prendeu Emerson em flagrante por tráfico de drogas.
Não houve audiência de custódia por conta da pandemia de coronavírus, o que ocorre há três meses para evitar contaminações. Em sua alegação, o Ministério Público entendeu pela conversão da prisão em flagrante em preventiva (sem prazo para acabar, somente após julgamento com base em riscos que o suspeito traz à apuração). A Justiça decidiu, no dia 20 de junho, acatar o pedido e, do DP, o motoboy foi para o CDP de São José dos Campos.
A defesa de Emerson pediu sua soltura com base na pandemia de coronavírus e pelo fato do crime ao qual ele responde ter supostamente sido cometido sem grave ameaça. Cita a recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça, que defende medidas alternativas penais ao cárcere e tem sido evocado durante a pandemia por causa dos grupos de risco para a doença.
Segundo o advogado de Emerson, a prisão preventiva deveria ser cumprida na modalidade domiciliar, já que não há risco de ele fugir, pois tem residência fixa. Além disso, o defensor destaca que o rapaz não representa qualquer ameaça a testemunhas no processo.
“O acusado não está ameaçando testemunhas, adulterando provas, ou coisa parecida. Há policiais militares como testemunhas do fato. Portanto, não correm o risco de se sentirem ameaçados”, sustenta o advogado.
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Para o defensor Marcelo Alves, que também integra a defesa de Emerson, o jovem tomou uma “decisão errada e está disposto a pagar pelo erro [o de fugir da abordagem], porém, não assumirá algo que não fez [a suspeita de tráfico de drogas]”, afirma à Ponte. “Na verdade, trata-se um jovem negro de poucos recursos financeiros, que viu na profissão de motoboy a possibilidade de sustentar sua família de forma digna. A defesa irá lutar com Emerson e sua família até o fim para provar sua inocência quanto a acusação de tráfico de drogas.”, pontua.
Segundo Carlos Henrique Fontanelli Pereira, 6º promotor de Justiça de Jacareí, a prisão preventiva de Emerson é necessária para garantir a “ordem pública”, pois “se trata do grave crime de tráfico de drogas que vem destruindo as famílias brasileiras”.
O promotor prossegue dizendo que as ações de tráfico estão “retirando os jovens do bom caminho, além de fomentar vários outros delitos como roubo e furto cometidos, muitas vezes, para custear a compra de entorpecentes”.
A Justiça ficou do lado do MP ao analisar os pontos de vista de defesa e acusação. Para o juiz Carlos Gutemberg de Santis Cunha, a pandemia “não demonstra motivo suficiente” para concessão de outra medida que não seja a prisão.
“Ressalte-se que, de fato, mesmo com o surto grave de Covid-19, o indiciado se encontrava circulando livremente pelas ruas, inclusive resistindo à obedecer o ordem de parada dos agente policiais efetuando diversas manobras perigosas no caminho, demonstrando descaso com transeuntes”, defende o magistrado.
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Ele também destacou que Emerson tem 23 anos de idade e, portanto, não pertence ao grupo de risco para o coronavírus, o que faz com que não seja “cabível o argumento de que a prisão geraria risco em decorrência de ‘aglomeração’ presente no sistema prisional”. Cunha, porém, erra a idade de Emerson, que tem 20 anos.
“O encarceramento é imperativo para a garantia da ordem pública e a conveniência da instrução criminal”, pontua. No entanto, o juiz não elenca em sua argumentação que Emerson é réu primário, mas reforça o risco de ele reincidir no tráfico de drogas.
“Não é um caso isolado”, diz ativista
A decisão gerou revolta em moradores de Jacareí. Cerca de 200 pessoas se mobilizaram e fizeram uma carreata de moto para cobrar respostas do Estado e pedir a liberdade do motoboy. Eles protestaram no domingo (21/6) em frente à delegacia em que ele foi preso. Uma das colaborações para a mobilização veio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que também acompanha a família.
“O que pintaram dele… ele não é. Infelizmente [está preso]. Ele é um jovem como qualquer outro. Trabalha para levar comida para o povo que está em casa, se arrisca para isso”, diz Ivoneide Quiteria Severina da Silva, mãe de Emerson, durante o ato. Em resposta, PMs abordaram diversos motoqueiros que estavam na manifestação.
Segundo Dany Kriola, representante do coletivo de Mulheres Nandi e articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio em Jacareí, a ação não é isolada. “Emerson não é o primeiro e não será o último. São vários casos de abusos policiais, não só de motoboys, mas de toda a juventude preta. Há abuso nos enquadros, agressões, muitas mulheres de periferia falam da violência absurda dentro dos bairros”, analisa.
A moradora de Jacareí considera necessária uma união popular para responder os “abusos da polícia”. “Só queremos nos defender. O povo periférico está sofrendo desde a invasão desse país. A violência, o abuso, fazem o jovem preto acreditar que ele não tem outro caminho a não ser a cadeia”, pontua.
O advogado criminalista e mestre em Direito Penal pela PUC-SP André Lozano Andrade, integrante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), vê dois problemas no caso de Emerson: as provas que ligam o jovem à droga e a conversão da prisão em flagrante em preventiva.
Em um primeiro momento, segundo ele, o flagrante ocorreu corretamente, já que o rapaz fugiu da abordagem. No entanto, discorda do entendimento de que somente a fala dos policiais ligando a droga à pessoa seja suficiente para determinar o flagrante.
“Sabemos que a polícia brasileira usa kit flagrante, sabemos que é super comum eles forjarem o crime de tráfico pela facilidade que é”, afirma. “Infelizmente, apesar de todo mundo saber, inclusive juízes, que alguns policiais são desonestos, o direito penal permite esse absurdo”.
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Contudo, Lozano é incisivo ao classificar a prisão preventiva de Emerson com o”absolutamente ilegal”. Segundo o especialista, o juiz Carlos Gutemberg de Santis Cunha usou argumentos genéricos para converter a prisão.
“Os argumentos se amoldam a qualquer decisão. O rapaz é réu primário, não tem nada que indica que ele apresenta risco de reincidência. Como diz isso? A meu ver é incabível”, avalia, dizendo que o magistrado poderia ser enquadrado na lei de abuso de autoridade. No entanto, é reticente quanto a isso. “Se tivéssemos um MP mais atuante e que não fosse conivente com abusos policiais e de autoridades públicas, esse juiz seria denunciado pela nova lei”, afirma.
O advogado criminalista ainda ressalta a importância da testemunha da prisão depor, pois sua versão não consta no processo. “Seria importante essa testemunha aparecer. Sem isso, ele poderá ser condenado. E, se essa testemunha não falar, prevalecerá a palavra dos policiais”, afirma.
Flavio Campos, advogado criminalista e integrante da Educafro, identifica os mesmos problemas. Ao considerar a prisão em flagrante dentro dos dispositivos legais, vê peso de antecipar a condenação na prisão preventiva.
“Ainda que tenha narrativa fantasiosa, tem narrativa dos fatos. Tem o laudo da droga. Mas estava de moto. Onde levou a droga? Não menciona. E é muita coisa”, questiona. Segundo ele, isto deveria ter sido questionado pelo juiz, o que não aconteceu.
Campos considera que o juiz “ignorou qualquer possibilidade de defesa” do motoboy. E vai além: “Provas questionáveis e, dada nossa conjuntura política e de acirramento social entre polícia e a juventude negra, esse é um caso típico de racismo institucional, onde o policial se utiliza do seu poder por vingança”, afirma.
Outro lado
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre a prisão de Emerson e aguarda um posicionamento. Em nota, a pasta explicou que Emerson “não respeitou sinais de parada, quase atropelou pedestres sendo, inclusive, solicitado que o helicóptero Águia acompanhasse a fuga”.
“Ao ser abordado na Avenida Rômulo Rossi, foi encontrado em sua posse 50 papelotes de maconha. A autoridade responsável representou pela prisão preventiva do homem, que foi acatada pela Justiça, e que dará prosseguimento ao caso”, afirma a SSP.
A reportagem também pediu nota ao MP-SP e ao TJ sobre o pedido de prisão e a decisão favorável, respectivamente. O MP não respondeu, enquanto o TJ afirmou que magistrados são impedidos de dar entrevistas sobre casos em andamento.