Amigos de infância foram mortos pela PM enquanto conversavam na rua, denunciam famílias

Leonel Santos, 36 anos, e Jefferson Miranda, 37, foram feridos com tiros de fuzil por policiais em Santos (SP) durante Operação Escudo. Parentes relatam descaso e demora no socorro às vítimas: “supliquei pela vida do meu filho”, diz mãe

Leonel Andrade dos Santos (dir) e Jefferson Ramos Miranda (esq) foram mortos com tiros de fuzil | Foto: Arquivo pessoal

Na última sexta-feira (9/2), Leonel Andrade Santos, 36 anos, e Jefferson Ramos Miranda, 37, se trombaram em uma das ruas do Morro São Bento, em Santos, litoral paulista, numa cena que já era habitual. Amigos de infância, a dupla se encontrava com frequência e, quando não de forma presencial, mantinham contato por ligações e chamadas de vídeo. “Eles sempre foram muito grudados”, conta uma familiar de Leonel. Contudo, o encontro rotineiro terminou com os dois baleados e mortos por policiais militares em mais uma ação da Operação Escudo. As famílias das vítimas denunciam que, após atirarem, os PMs debocharam da preocupação com o socorro médico. “Eu gritava, implorava, me ajoelhei no chão. Pelo amor de Deus. Eles olhavam para mim e faziam a cara de risos, tiravam uma onda da gente”, conta a mãe de Jefferson, Katia Regina Matos, 54 anos.

“Eles viam a minha dor. Teve um [policial] que eu ajoelhei na perna dele e ele ficou com a arma apontada na minha cara. A minha filha gritava ‘Vai matar ela também? Vai dar um tiro nela também?’ Eu supliquei pela vida do meu filho”, completa.

A cuidadora lembra que pediu para Jefferson não sair de casa naquela noite. “Não vai não, filho, está cheio de polícia, pelo amor de Deus”, disse ela. “Não tem porque eu não sair, não sou traficante”, teria rebatido ele. 

Jefferson seguiu o trajeto que contou com três paradas. A primeira na casa de uma tia, depois até a residência de uma amiga e na sequência em uma pizzaria. Foi na volta do estabelecimento que ele e Leonel se cruzaram. 

Uma familiar de Leonel, que pediu para não ser identificada por meio de represálias, conta ter ouvido tiros e ter saído à procura dele pelo morro. A motivação era a mesma de Kátia: o medo gerado pela presença da polícia na comunidade.

Há um temor desde que a Operação Escudo foi retomada na região pelo histórico de violência e mortes. Em 2023, quando a ação foi deflagrada após a morte do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), Patrick Bastos Reis, 30 anos, ao menos 28 pessoas foram mortas. Desta vez, o número já chega a 21 em menos de um mês de atuação das tropas, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). 

As ações na Baixada Santista se intensificaram após as mortes do soldado Marcelo Augusto da Silva, 28 anos, do 38º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), em Cubatão, no dia 26 de janeiro, e do soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, da Rota, em 2 de fevereiro, na cidade de Santos.

Especialistas configuram a Operação Escudo como uma resposta de vingança chancelada pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). No ano passado, denúncias de execução e violência foram feitas por diversas entidades, inclusive no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Antes dele sair, eu ainda falei: ‘não vai na rua, não está propício’. Eles [policiais] estão chegando e atirando, não estão nem perguntando”, conta uma familiar de Leonel. 

Pai de três filhos, o mais novo com três anos, Leonel tinha uma deficiência na perna direita, o que o fazia depender de muletas para se locomover. Segundo o boletim de ocorrência, policiais do 4º Batalhão de Choque teriam visto a dupla que, conforme o relato policial, estaria armada e carregando consigo uma mochila e uma sacola.

Ao perceber a presença dos agentes, eles teriam atirado e sofrido um revide. O sargento Valci José Gouveia de Jesus contou que atirou três vezes e o cabo Rahoney de Paula Vieira sete. Ambos portavam fuzis. 

Os policiais contaram ter encontrado em uma varredura no local um revólver calibre .38 com numeração raspada (com cinco projéteis intactos e um deflagrado); uma pistola semi-automática .45 (com oito projéteis intactos), porções de cocaína, maconha e haxixe; R$ 210, dois radiotransmissores e papéis supostamente com a contabilidade do tráfico de drogas. A versão não é aceita pelas famílias de Leonel e Jefferson.

“Ele mal consegue segurar a muletinha dele. Não tem, em hipótese nenhuma, como ele trocar tiros, como eles disseram”, contesta a familiar de Leonel. A mãe de Jefferson diz que o filho, já rendido, repetiu que morava na comunidade. “Eu sou morador, sou morador”, teria dito.

Um vídeo divulgado nas redes sociais registrou o momento em que Leonel foi socorrido e levado até uma ambulância do Corpo de Bombeiros Militar. Na imagem, é possível ver uma multidão envolta no carro enquanto bombeiros e integrantes do Comando e Operações Especiais (COE) impedem a aproximação. Também é possível ouvir Kátia gritar “mataram meu filho”.

“Se ele estava com drogas, por que não levaram para a cadeia? É o direito deles prender, mas não matar. Meu filho não era traficante, ele era usuário”, diz Kátia. “Eles estão dizendo que ele trocou tiro… Mentira, mentira. Isso está doendo demais”, completa.

Leonel e Jefferson foram encaminhados para a Santa Casa de Santos, onde as mortes foram confirmadas. O relatório médico aponta que eles foram atingidos com tiros na região abdominal.

Em razão da deficiência motora, Leonel recebia o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante pagamento de um salário mínimo por mês (R$ 1.412, nos valores atuais). Idosos e pessoas com deficiência com renda mensal menor do que 1/4 do salário mínimo são aptos a receber o BPC.

Morador do Morro São Bento desde a infância, Leonel é lembrado como uma pessoa calma e generosa. Por 12 anos, ele esteve preso por tráfico de drogas, situação que o fez ficar distante dos primeiros anos de vida dos filhos mais novos. 

Desde que cumpriu a pena, ele não tinha mais envolvimento com tráfico, conta a família. A motivação era o desejo de acompanhar a infância do filho mais novo, que nasceu um mês após ele ser liberto.“Ele sempre morou aqui e era amigo de todo mundo. Ele conversava com todos. Era uma pessoa muito boa”, conta a familiar.

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Jefferson deixa um filho de 18 anos. A mãe conta que ele morava sozinho em uma casa simples na comunidade. A residência, que ainda não tinha mobília completa, iria ser equipada com uma geladeira daqui a uns dias.

“Eu quero justiça. Se meu filho fosse traficante, que colocasse na cadeia. Que provem para mim que ele era traficante”, diz Kátia.

O que diz a SSP-SP

Em nota enviada à Ponte, a SSP-SP apresentou a versão dos policiais. Segundo a assessoria, com a dupla teriam sido apreendidas armas, drogas e anotações supostamente do tráfico. O caso é apurado pela 3ª Delegacia de Homicídios do Departamento Estadual de Investigações Criminais de Santos. 

No texto, a SSP-SP se refere ao caso como uma morte na Operação Verão. A ação, conforme a própria secretaria, tem como objetivo reforçar o policiamento em 16 municípios do litoral sul e norte de São Paulo durante os meses de dezembro, janeiro e fevereiro. 

Contudo, a região também é alvo da Operação Escudo, anunciada pelo governo do Estado em janeiro após mortes de policiais casos de violência contra outros agentes. 

Veja nota na íntegra

Dois homens de 37 e 36 anos morreram na noite desta sexta-feira (9), no Morro do São Bento, em Santos. Os policiais militares atuavam durante a Operação Verão quando viram indivíduos armados, carregando uma mochila e uma sacola. Ao perceber a presença policial, os homens atiraram contra os agentes, que intervieram. Os suspeitos foram baleados e socorridos na Santa Casa local, onde morreram. Com eles, foram apreendidos um revólver, uma pistola semi-automática, entorpecentes, uma quantia em dinheiro, além de dois rádios transmissores, um celular e papéis com a contabilidade do tráfico. As armas dos policiais foram encaminhadas para perícia e todas as circunstâncias dos fatos serão apuradas.

O policiamento preventivo e ostensivo na Baixada Santista foi reforçado para proteger a população e as ações para combater o crime organizado seguem em curso na região. Até esta quarta-feira (14), 21 suspeitos que iniciaram confrontos contra as forças de segurança morreram. Do início da Operação Verão, 604 pessoas foram detidas, sendo 217 procurados, além de 113,2 quilos de drogas apreendidas; 58 veículos recuperados e 68 armas ilegais apreendidas. Todos os casos são rigorosamente investigados pela 3ª Delegacia de Homicídios da Deic de Santos, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário.

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