Após cinco anos, Justiça arquiva inquérito sobre PM que matou jovem desarmado com tiro no peito

    Rafael Aparecido tinha 23 anos quando foi morto após um enquadro contra o irmão dele na zona leste da cidade de São Paulo, em 2019; para ativista, ‘Polícia Civil e Ministério Público são avalistas da letalidade policial’

    Rafael Aparecido tinha 23 anos | Foto: Arquivo pessoal

    O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu, a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), arquivar a investigação sobre a morte de Rafael Aparecido Almeida de Souza, 23 anos. Ele foi baleado no peito por policiais militares após um enquadro contra o irmão dele, em 5 de maio de 2019, no bairro de São Mateus, na zona leste da cidade de São Paulo.

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    Embora testemunhas afirmem que Rafael foi baleado por policiais quando estava indefeso, tanto o Judiciário como o Ministério Público consideraram que o caso se resumia à palavra de um contra a palavra de outro, já que os PMs alegaram que a vítima teria tentado pegar uma arma deles.

    O juiz Antonio Carlos Pontes de Souza, da 1ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, ordenou o arquivamento em 13 de maio, atendendo a um pedido do promotor Felipe Eduardo Levit Zilberman, para quem tanto a versão das testemunhas quanto a dos policiais eram possíveis. Em seu pedido, o promotor argumentou que a investigação da Polícia Civil não conseguiu chegar à “verdade dos fatos” e que, portanto, os policiais não poderiam ser acusados de crime.

    Zilberman sustentou que a reconstituição do caso, feita pela Polícia Técnico-Científica, apontou que tanto o relato das testemunhas como a alegação dos policiais se encaixavam na dinâmica dos fatos e que a investigação não conseguiu precisar a distância do tiro que atingiu Rafael, nem localizar imagens de câmeras de segurança.

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    Para o advogado Ariel de Castro Alves, presidente de honra do grupo Tortura Nunca Mais e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, que acompanhou o caso na época, o sistema de justiça dá maior credibilidade à versão da polícia, o que gera uma “licença para matar” com “conivência” do poder público. “Esse caso demonstra que os casos de letalidade policial demoram para ser investigados, resultam em impunidade e que a Polícia Civil e o Ministério Público em muitas situações são avalistas da violência e da letalidade policial”, critica.

    A situação que culminou na morte de Rafael começou com um enquadro sem justificativa feito pelos soldados da PM Charles Henrique Godoi Pereira e Bruno Costa Siciliano em uma travessa da Avenida Aricanduva. Os PMs disseram que resolveram abordar dois rapazes porque eles teriam mostrado “nervosismo” e que a região seria um “conhecido local de venda de drogas”, apesar de nada ter sido localizado com eles.

    Cinco testemunhas, sendo quatro delas parentes da vítima, disseram que Rafael estava a aproximadamente 30 metros dos policiais e tinha feito um sinal de “venham para cá” para o irmão e um amigo, que tinham sido abordados pelos soldados. Em determinado momento, segundo elas, o PM Charles teria dito “quem manda aqui é nós” e disparado contra a vítima.

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    Já os policiais alegam que foram hostilizados durante a abordagem e que Rafael, que estaria a no máximo um metro de distância, tentou tirar a arma de Charles. Em seguida, “ocorreu um disparo”. Os depoimentos de Charles no inquérito ora dão a entender que o tiro foi acidental, ora que o PM disparou de propósito para se “desvencilhar” da vítima.

    Os soldados afirmaram que não conseguiram prestar socorro porque a viatura teria sido alvo de pedras jogadas pela população em um “tumulto generalizado”. Já os parentes de Rafael declararam que isso não aconteceu e que eles preferiram levá-lo por conta própria até o hospital, onde ele morreu.

    Na época, a morte de Rafael motivou um protesto no bairro e a Ponte revelou um vídeo em que a polícia aparece jogando uma bomba de gás dentro de uma casa na mesma rua em que aconteceu o crime. “Eles saíram jogando bomba pela rua. Dentro dessa casa tinha uma criança, uma menininha. Eu que socorri, levei pro hospital, ela chegou vomitando no hospital”, disse à reportagem o tio da vítima em 2019.

    Essa não é a conduta correta para uso de armas menos letais, já que bombas de gás só podem ser lançadas em local aberto, com rota de fuga, pelo risco de asfixia.

    O vídeo divulgado pela reportagem foi anexado ao inquérito, mas não há menção de a Polícia Civil ter investigado essa ação dos policiais.

    No relatório da Corregedoria da PM, assinado dois meses após o crime, o tenente Victor Vide D’Oliveira Viessa, responsável pela apuração administrativa, considerou que “o disparo efetuado pelo Sd [soldado] PM Godoi foi necessário a preservar sua integridade física, bem como a do Sd PM Siciliano — que realizava busca pessoal em indivíduos de atitude suspeita — visto que, diante de um possível sucesso de Rafael — em desarmar o policial militar — poderia gerar um desfecho ainda pior naquele cenário que já se apresentava hostil à presença e ação policial preventiva ali desencadeada”.

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    A conclusão foi ratificada pelo comandante interino major Renato Zanetti Galerani, do 38º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), ao qual pertenciam os soldados que mataram Rafael.

    Na época, o irmão de Rafael, Bruno Aparecido Almeida de Souza, relatou à Ponte que testemunhou o crime. Ele contou que uma semana antes os dois tinham iniciado um negócio de uma fábrica de roche, uma espécie de suporte para a essência do narguilé. “Nós éramos irmãos lado a lado. A gente ficava o tempo todo junto. Ele era o melhor irmão do mundo, um homem família, não saía de casa, não era de balada. Não brigava com ninguém, mal abria a boca, só dava risada das nossas palhaçadas”, lamentou. Rafael também deixou um filho, que tinha dois meses quando tudo aconteceu.

    O que dizem as autoridades

    A reportagem solicitou entrevista com os policiais via Secretaria da Segurança Pública, além de questionar sobre a investigação do caso e a falta de apuração sobre o vídeo revelado na época. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu até a publicação.

    Também pedimos entrevista com o promotor Felipe Zilberman e fizemos os mesmos questionamentos. A assessoria disse que “o MPSP se manifesta nos autos”.

    Procurada, a assessoria do Tribunal de Justiça disse, em nota, que “os magistrados não podem se manifestar sobre os autos, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura (Loman)”.

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