Moradores da comunidade, na zona sul de São Paulo, relatam que abordagens violentas se tornaram comuns após morte de sargento, em 2 de novembro
Quando um policial militar sofre alguma violência na região de Paraisópolis, comunidade localizada na zona sul da cidade de São Paulo, um alerta se espalha entre os moradores. Já sabem como será a rotina nos dias seguintes: operações da polícia, invasão de casas, esculachos em abordagens, medo constante e uma histeria coletiva com o que pode acontecer. Assim têm sido os dias desde 2 de novembro, após a morte de um sargento da PM, conforme relatos dos moradores à Ponte.
Na noite de 1º de novembro, o sargento Ronald Ruas Silva, 52 anos, morreu após ser baleado em uma troca de tiros na avenida Professor Alcebíades Delamare, segundo a versão oficial. Daí por diante, a comunidade convive com medo. As falas deixam claro que não é preciso acontecer a morte de um policial para a região ficar “moiada”, termo usado para definir situações de tensão e perigo em determinadas áreas. Mas, quando acontece, “o barato fica louco”, descrevem.
Um vídeo obtido pela Ponte mostra quatro PMs agindo violentamente para abordar uma pessoa, ao ponto de precisar ser contido por seus colegas.
A vida não para em meio às operações, no entanto é totalmente modificada. Quando há bloqueio da PM é necessário adaptar o cotidiano de trabalho, os estudos, a ida aos comércios locais ou a simples permanência em suas casas. Às vezes, as pessoas nem sequer podem fazer o caminho de sempre para chegar a suas casas e precisam dar voltas imensas porque há polícia na comunidade.
No tiroteio em que Ruas foi morto, um morador também foi baleado e não resistiu aos ferimentos. Ele teria envolvimento com o tráfico de drogas, segundo moradores. Desde esse dia, os dias são “moiados” para essas pessoas. Há dez dias, a polícia está constantemente na quebrada e de forma mais ostensiva do que o normal. A primeira ação da polícia aconteceu na própria tarde do sábado em que o PM Ruas faleceu. Ele foi resgatado e recebeu atendimento médico, mas morreu naquela manhã. Em resposta, a Tropa de Choque esteve em Paraisópolis para demonstrar controle e atuar de forma truculenta, conforme quem vive em Paraisópolis descreve.
Clima similar, mas de tensão maior, aconteceu em agosto de 2018, quando a policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27 anos, foi sequestrada e morta após discussão em um bar de Paraisópolis. A região ficou tomada de policiais após o desaparecimento da policial, em 2 de agosto, e até mesmo após o encontro de seu corpo, cinco dias depois. Segundo o MPE (Ministério Público Estadual) de São Paulo, ao menos seis pessoas vinculadas ao PCC (Primeiro Comando da Capital) participaram do sequestro, tortura e morte da PM.
Um mês depois do assassinato de Juliane, Paraisópolis ainda sofria o revide do braço armado do Estado. Um morador da comunidade conta que estava em um bar isolado, que fica no segundo andar de um prédio, quando dois PMs da Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas) entraram no local. “Eles perguntaram se as pessoas tinham passagem e, dos dez, dois tinham. Mandaram todos para a parede e o comandante deles tava olhando de um lado para o outro, vendo como nos punir. De quê, eu não sei”, relembra o homem. “Até que ele mandou um dos guardas fechar a única janela e disparar spray de pimenta antes de fechar o bar e sair fora. Nossa sorte foi que o policial ficou assustado e não fez, deixando o comandante puto”, continua.
O histórico de violações não é recente, vem de ao menos uma década. Há relatos de operações similares por parte da PM desde 2009, quando as tropas permaneceram na região por mais de dois meses. À época, a PM realizou quase 52 mil abordagens aos moradores de Paraisópolis, que naquele período possuía população total de 60 mil. Mais de 400 PMs, 100 viaturas, helicóptero, 20 cavalos e 4 cachorros atuaram na chamada Operação Saturação. Os relatos vão desde ameaças de morte até violência gratuita por parte dos policiais.
Mesma situação ocorrida três anos depois, quando um bar foi destruído e saqueado por PMs, como denunciaram as pessoas que viram a ação no Palmeirinha, campo de futebol society localizado no começo da comunidade. Novamente, policiais invadiram casas sem autorização judicial e pressionavam os moradores em busca de flagrantes. Parte dos agentes do estado não possuíam identificação, o que se repetiu neste ano. “Nenhum tinha nome, nada. Eles chegam, abordam, ameaçam e se sentem seguros em fazer isso. Bomba é normal, principalmente na hora de dispersar baile Funk”, conta outra moradora.
Pelo temor, ‘polícia perde legitimidade’
Para Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), respostas truculentas por parte da Polícia Militar paulista acontecem e é comum extrapolar limites. “Infelizmente, não tem muita novidade. É o padrão das ações da polícia depois que um policial morre. Em geral, fica na vizinhança pressionando porque querem pegar o cara, se vingar da morte do colega. O problema é quando se cruza a fronteira de violar os direitos das pessoas que moram naquele local, criminalizando o território, a pobreza, por conta de um conflito com que a maior parte dos moradores não tem nenhuma relação”, explica.
Ações de “vingança” aleatória contra comunidades pobres se repetem no estado de São Paulo. Em maio de 2006, o revide a ataques do PCC gerou uma matança em todo o estado, com 505 pessoas mortas como revide ao assassinato de 59 agentes de segurança. A maior chacina já ocorrida nas ruas de São Paulo, que deixou 23 mortos em Osasco (Grande SP), em 2015, ocorreu como uma ação de revide por parte de PMs e de um guarda civil, revoltados com a morte de dois colegas ocorridas dias antes.
Samira alerta para os problemas causados pelos atos de vingança da PM. “Estas ações mandam recados e tem uma consequência que não é trivial: a falta de confiança no estado e nas instituições. Quando a PM é percebida como violenta não dá as respostas necessárias para os problemas do dia a dia, mas o crime o faz, como administrar uma série de conflitos. Cada vez mais o Estado perde sua legitimidade como instância mediadora”, explica.
A credibilidade é perdida justamente pelo fato de a polícia sustentar sua atuação através da força. “Quando você percebe a polícia como um ator violento, que faz valer sua vontade em cima da violência, para muitos policiais isso pode parecer respeito, mas não é. Há o temor e, pelo temor, o morador não vai procurar a polícia quando precisar”, diz a especialista.
A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), e a PM, comandada pelo coronel Marcelo Vieira Salles, sobre as mortes do PM e do moradores de Paraisópolis, além das ações feitas na região depois do dia 2. Pasta e corporação enviaram a mesma nota, dizendo que o sargento morreu na noite de sexta-feira após trocar tiro com um suspeito.
“Na ocasião, ele e sua equipe abordavam dois suspeitos quando um terceiro indivíduo disparou contra os policiais, dando início a um confronto. O criminoso armado e o sargento foram atingidos, socorridos, mas não resistiram. Dois criminosos fugiram e uma arma de fogo foi apreendida”, sustenta SSP e PM. O DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) e a Polícia Militar investigam o caso.
Sobra as ações realizadas na comunidade após as duas mortes, a explicação é de que a “PM faz rondas diárias na região da ocorrência para aumentar a sensação de segurança da população e como medida de prevenção às práticas criminosas”, no entanto, nenhuma das duas responde a respeito das denúncias de moradores sobre possíveis abusos cometidos por policiais. “A Corregedoria da Polícia Militar está à disposição para receber denúncias em caso de atuação imprópria dos policiais militares”, afirmam.