Debate entre os dois participantes do Big Brother Brasil reflete a abrangência e atualidade da discussão sobre violência policial e a interferência da grande mídia sobre a opinião da sociedade
Alguns chamam de versão histórica, outros de regressão histórica. Independentemente de sua opinião sobre os pontos positivos e negativos dessa edição do BBB, temos que admitir que foi a mais polêmica. Diversos diálogos travados entre os participantes viralizaram, seja pelo caráter político do debate ou pelo fato de vermos um participante exercer tortura psicológica sobre outro. Lucas Penteado foi o palco de alguns debates importantes e, por tudo o que viveu nessa edição do BBB, acabou por pedir para sair do programa. Mas, antes de vir pro abraço da geral, nosso mano de luta secundarista nos deixou um exemplo um debate em que Nego Di o hostiliza por defender direitos humanos e critica até mesmo a memória de Marielle Franco. Ocorre que a construção sobre a ideia de direitos humanos que a massa da população tem no Brasil é formada pela grande mídia, que não expressa a realidade sobre violência policial no Brasil.
Leia também: Sem direitos – A mãe de um jovem negro que não teve direito à vida
Entre os anos de 2017 e 2019, ao menos 2.215 crianças e adolescentes foram mortos em decorrência de intervenção policial no país. Desse número, o Estado do Rio de Janeiro responde por quase 40% (Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Choramos Agatha, João Pedro, Jenifer, Kauan, Ketellen, Marcus Vinicius, outres e outres e continuamos a chorar. Ainda assim tem preto que consegue dizer que o trampo de Marielle e a luta por direitos humanos são “defender vagabundo”, como se toda forma de militância se baseasse na defesa criminal e isso não é verdade.
Primeiro que defensor de vagabundo e de bandido é quem defende o uso de aproximadamente 15 milhões do dinheiro público para compra de chicletes e Leite Moça do Executivo Federal. Depois, o Nego Di ignora que um defensor de direitos humanos não se resume à rede de apoio de uma pessoa acusada pela justiça criminal. Ainda assim, pessoas pretas são as mais demandadas em questões de abuso policial. Matheus, 19 anos, morreu com um único tiro, à queima-roupa, enquanto estava parado em seu mototáxi em uma tarde de junho de 2019 e o policial que o matou segue na ativa, dando legitimidade para muitas outras mortes que já ocorreram e vão ocorrer. Aí pergunto: quem está defendendo vagabundo?
Leia também: Marielle, sobrenome favela
Existe uma narrativa sobre o que ocorre com os corpos pretos e precisamos entender como ela se opera para retirar nossos irmãos da ilusão do sistema. Os pretos que não apoiam uma agenda revolucionária não enxergam o cenário caótico que o capital nos impõe e estão idealizando um Brasil sem confronto de raça. Ocorre que o confronto de raças já existe, basta observarmos que a esmagadora maioria das crianças e adolescentes mortos pela polícia no período retratado são negras. A população carcerária brasileira é a terceira maior do mundo, com mais de 800 mil pessoas presas, das quais mais de 64% são negras, ao passo que na sociedade o grupo representa 54%. O jovem negro com idade entre 18 e 29 anos é o principal destinatário do sistema penal, compondo mais de 46% do sistema carcerário. A maior parte desses rapazes ainda não foram julgados, são primários e com bons antecedentes (Fonte: Infopen 2019). A socióloga Juliana Borges nos recorda que “o sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por esta estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial” (O que é encarceramento em massa, pg. 16). Em outras palavras, a justiça penal funciona como defesa e manutenção das desigualdades estruturais.
Importante entender que a máquina de moer preto, que é a polícia e o judiciário, busca legitimidade da sociedade para escapar da postura autoritária. A mídia tem relevante importância nisso. A construção do estereótipo de bandido que é feito sobre a imagem do homem negro é fundamental para legitimar as barbáries que são cometidas todos os dias no fórum criminal. A grande mídia convence a sociedade de que existe um risco iminente ao patrimônio que merece ser protegido a qualquer custo, até mesmo com uma vida, sem mencionar a ideia macabra por detrás da guerra às drogas, o maior banho de sangue da história da humanidade!
Quantos grandes jornais tiveram o desaparecimento das três crianças de Belfort Roxo em suas manchetes? Passou-se um mês e as crianças não são objeto de preocupação para a grande mídia, logo, não será preocupação da sociedade. Nego Di representa as pessoas que não conhecem ou não reconhecem a realidade do sistema penal, do sistema prisional, do processo penal, do sofrimento povo brasileiro e descaso do poder público. Essas pessoas opinam baseados no pensamento de algum blogueiro de direita que publica fake news. Só a informação real sobre a luta é que vai inflamar outros a lutarem. É por isso que apoio o Lucas, ele passa ideia que deve ser passada, sem cortes ou censuras.
Flavio Campos é advogado criminalista, ativista do movimento negro, membro da Educafro e diretor do Instituto Ação Geral – Quebrada eu Te Amo