O estado que deu à luz a maior facção criminosa da América do Sul pode servir de berço para a maior milícia do continente sob o comando do atual secretário, para quem bandido bom é bandido policial
Quando, ainda em meio às eleições de outubro de 2022, Tarcísio anunciou a intenção de extinguir a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o agora governador já mandava seu recado para o povo paulista: seguiria com o plano da bancada da bala de acabar com qualquer tipo de controle civil sobre as polícias. A ideia era que os comandantes das duas polícias estaduais ganhassem status de secretários e respondessem apenas ao governador, sem intermediários.
Na época, as comparações com o modelo de segurança carioca que serviu de inspiração pegaram mal e fizeram Tarcísio recuar. Já no poder, Tarcísio arrumou um jeito de colocar a sua proposta em ação sem precisar da impopular extinção da pasta. O jeito tinha nome e sobrenome: Guilherme Derrite, capitão da PM paulista e deputado federal desde 2019.
Vice-líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados e um dos nomes em ascensão da bancada da bala, Derrite foi o primeiro PM a assumir o cargo de Secretário de Segurança Pública de São Paulo. Na impossibilidade de transformar o comandante-geral da PM e o delegado-geral em seus secretários diretos, Tarcísio transformou a própria Secretaria em uma extensão da PM com a nomeação do capitão.
Para entender a atuação do atual secretário, é interessante voltarmos um pouco para sua época na Câmara Federal. Como deputado, Derrite não fez muito mais do que seguir a cartilha da extrema-direita bolsonarista, é verdade. Tentou afrouxar as regras de porte de armas para fazendeiros e guardas municipais através do Sinarm (Sistema Nacional de Armas), com os Projetos de Lei 3731/2020 e 2593/2019, e abraçou o negacionismo durante a pandemia quando propôs que pessoas que infringissem as medidas sanitárias poderiam ser perdoadas se o crime fosse “impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção motivada pelas consequências da determinação do poder público” (PL 2682/2020).
Além do negacionismo científico e do armamentismo de praxe, Derrite também se dedicou, principalmente, a medidas populistas de tentar revogar direitos da população carcerária. Quis atacar as audiências de custódia (PL 422/2020) e o instituto do juiz de garantias (PL 12/2020), projetos, até agora, sem sucesso. Nas redes, canta vitória pela aprovação do fim das chamadas “saidinhas”, embora o PL aprovado não tenha sido o de sua autoria.
O curioso é que tantos ataques à Lei de Execução Penal contrariam as próprias palavras de Derrite que, logo em seu primeiro projeto como deputado, defendeu garantias a criminosos. Desde que eles fossem seus compadres policiais, é claro. Com o PL 889/2019, o ex-capitão pedia que os institutos da composição civil dos danos, da transação penal e da suspensão condicional do processo pudessem ser aplicados também na Justiça Militar.
Em suas próprias palavras de justificativa para o projeto, a grande ironia: “a evolução histórica já comprovou que os institutos despenalizadores ora ventilados são deveras positivos para a população e para o Poder Judiciário, e que, em nenhum momento ocasionaram o colapso social”. É que para Derrite, bandido bom é bandido policial, opinião que ficou clara quando, ainda tenente das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), em áudio vazado em 2015, ele dizia que um policial que trabalha 5 anos na rua e não tem 3 ocorrências de morte era algo vergonhoso.
Mas todas as ações descritas até aqui não são as mais esclarecedoras para entendermos a atuação de Derrite como Secretário. São outros três projetos de lei dele como deputado que dão a tônica do que podemos esperar para São Paulo.
No PL 86/2020 e no PL 4184/2021, Derrite tentou impor, respectivamente, que o delegado-geral e o comandante geral da PM de cada estado fossem escolhidos em uma lista tríplice eleita pelos próprios policiais e tivessem um mandato fixo de dois anos que só poderia ser revogado por maioria absoluta das Assembleias Legislativas. Esta proposta chegou a ser incluída em minuta da Nova Lei Orgânica da PM, mas, após críticas por retirar o controle dos governadores sobre as polícias estaduais, que se tornariam praticamente autônomas, acabou sendo retirada.
Outro projeto que mostra os objetivos de Derrite é o PL 2310/2022. Nele, o ex-capitão da Rota propôs que a PM pudesse tomar na mão grande as funções de investigação que hoje são exclusivas das Polícias Civis. Buscando dar à PM poderes quase idênticos aos da Civil de compor as informações de um inquérito policial, o então deputado quis atropelar o debate sobre o ciclo completo de policiamento que, usualmente, vem acompanhado das necessárias propostas de desmilitarização das polícias. Na contramão, Derrite buscava, com este projeto, a militarização total da segurança pública no país.
As duas passagens acima são icônicas porque nos explicam bem o foco da atuação de Derrite como secretário de Segurança paulista: a militarização total e o fim de qualquer tipo de controle civil sobre as polícias. Uma espécie de “anti-secretário”, que age para barrar a participação da própria sociedade civil que ele deveria representar e dar salvo-conduto para os policiais agirem como bem entenderem. Um movimento que não tem outro nome que não seja a milicianização das forças policiais paulistas.
Tarcísio e Derrite parecem empenhados em fazer de São Paulo um governo de militares para militares. Na Secretaria, Derrite aumentou em um terço o número de PMs exercendo funções de assessoria, formando o que muitos têm chamado de seu “exército de capitães”. Boa parte destes, colegas de Rota que conseguem bonificações de até R$ 7.000,00 mensais pelas nomeações. Para além da Secretaria, no total, o número de PMs com cargos semelhantes passou de 874 para 943 em todo o estado.
Os privilégios aos companheiros de Rota não param por aí. Há alguns dias, uma movimentação nas tropas paulistas causou alvoroço. Tarcísio e Derrite resolveram trocar 34 de 63 coronéis que exerciam funções de comando na PM. Entre os favorecidos, parceiros de Derrite na Rota conquistaram postos estratégicos, como José Coutinho no Sub-Comando Geral e Fábio do Amaral na Corregedoria. Até mesmo Aleksander Lacerda, afastado em 2021 por insuflar a PM para atos golpistas, passou a comandar o Centro de Altos Estudos de Segurança.
Já entre os afastados, diz-se que estavam os coronéis que não concordavam com a linha política do atual governo, e eram favoráveis ao fim da Operação Escudo e ao uso de câmeras corporais, como o ex-subcomandante geral José Freixo. Em um movimento como este, de desmoralização de coronéis contrários à sua política de segurança, Derrite não abriu caminho apenas para que seus comparsas se apoderassem de funções de comando. Caso a desmoralização dos afastados os levem para a reserva, Tarcísio poderá promover algumas dezenas de novos coronéis que sejam mais próximos de seus objetivos.
A Operação Escudo parece mesmo estar sendo um divisor de águas na história da PM paulista. Agora Operação Verão, ela institucionalizou a vingança policial como política de Estado, com nome e sobrenome. Casos de mortes e torturas de inocentes têm sido comuns, como a Ponte vem apurando, e a cada 5 assassinatos ocorridos em São Paulo, 1 é cometido pelas mãos de policiais, sempre sob o pretexto de combater o crime organizado. Mesmo assim, ainda se noticia que o PCC segue firme e forte na expansão dos negócios da facção de São Paulo para outros estados e até mesmo outros países. De que serve, então, tanta violência destes ditos especialistas da segurança pública?
Nessa toada, a única coisa que o povo paulista consegue ver, de fato, não é a queda vertiginosa dos índices criminais (em verdade, bastante estáveis), mas apenas o aumento do poder e da autonomia da PM, acompanhado de sua forte politização. No último domingo, Derrite fez questão de acompanhar a manifestação pró-Bolsonaro, que foi divulgada publicamente pelo perfil oficial da Polícia Civil paulista, que ainda curtiu e comentou comentários políticos. Na quarta, divulgou-se que Boulos acionou a Polícia Federal após sofrer ameaças. A escolha pela PF seria motivada pelo fato de que policiais estaduais poderiam estar envolvidos nos ataques.
É cada vez mais claro o movimento da PM paulista em direção a sua total autonomia e falta de controle civil, e é Derrite, ao lado de Tarcísio, quem tem chefiado este processo. Como o próprio Secretário, à época Tenente disse certa vez em áudio (talvez estrategicamente) vazado em 2015: “a frase é a seguinte: uma vez Rota, sempre Rota”. São Paulo, o estado que já deu à luz a maior facção criminosa da América do Sul, parece disposto a seguir sua vocação para também servir de berço para o que poderia vir a ser a maior milícia do continente.
Almir Felitte é mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo