Artigo | Não é falta de condições de saúde, é tortura

    O que acontece em Roraima não é um fato isolado: o cárcere pode ser considerado um vírus poderoso, marcado pela ausência de uma vida saudável e digna

    Ilustração Junião / PonteJornalismo

    Este ano já se inicia com mais um caso alarmante no cárcere: as pessoas presas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista, estão sendo “comidas vivas”. A expressão poderia ser apenas uma metáfora capaz de relatar a crueldade da vida no cárcere no Brasil, uma vez que no contexto da execução penal, as penas extrapolam a privação de liberdade e se aplicam no corpo e na alma.  

    Mas infelizmente a expressão é literal, um agravo resultante da falta de tratamento de sarna está causando graves feridas na pele das pessoas presas, capazes de deixar partes do corpo em decomposição. A sarna é um dos agravos mais comuns no contexto do encarceramento, devido à insalubridade e falta de atendimento médico aos presos, com potencial altamente infeccioso em ambiente com grande acúmulo de pessoas, sem ventilação etc. 

    A PAMC está superlotada, assim como a quase todas unidades prisionais no Brasil: a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados Brasil (OAB) realizou uma inspeção na unidade no dia 21 de janeiro de 2020, e constatou que alas onde cabem no máximo 70 presos estão abrigando mais de 300. Muitos dormem no chão ou sentados no vaso sanitário, enquanto outros se apertam dentro da cela, acometidos de tuberculose, diabetes, escabiose (sarna) e outras doenças.

    A superlotação acirra todos os problemas de saúde vividos no cárcere – a taxa de superlotação brasileira é de 166%: são 729.949 presos, sendo que existem vagas em presídios para 437.912 pessoas. Em analogia à linguagem biomédica, o cárcere pode ser considerado um vírus poderoso, marcado pela ausência de uma vida saudável e digna. 

    Tal quadro é absolutamente incompatível com um Estado democrático de direito, que garante, em sua Constituição, uma vida digna – acesso à saúde, educação, lazer, trabalho, etc. A concepção de saúde deve se afastar da acepção ultrapassada estritamente biomédica e incluir os condicionantes econômicos, sociais, culturais e biológicos. É preciso superar a visão dominante de enfocar a saúde pela doença, sobretudo nas dimensões biológica e individual. Alinhando-se inclusive com o proposto pelo SUS em seus princípios motrizes – universalidade, integralidade e equidade. 

    O agravo de saúde que está acometendo as pessoas presas em Roraima não pode ser analisado como um fato isolado, pois é o próprio funcionamento da estrutura carcerária. E apenas em razão dos corpos estarem literalmente sendo decompostos que é possível tornar visível a narrativa das condições de encarceramento dessas pessoas. O problema não é de saúde, e sim do cárcere em si, o qual cada vez mais aprofunda sua função de excluir e eliminar aqueles considerados indesejáveis.

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    Dados do Ministério da Saúde afirmam que uma pessoa presa no sistema prisional brasileiro tem 28 vezes mais incidência de contrair tuberculose do que a população em geral, devido à superlotação e à falta de ventilação e luz solar nas penitenciárias. Levantamento da Defensoria do RJ alerta que a cada ano o número de presos mortos por doenças no sistema aumenta, geralmente, por doenças que poderiam ser facilmente tratadas, principalmente, problemas decorrentes do HIV e tuberculose. 

    A Pastoral Carcerária Nacional mantém um banco de dados sobre denúncias de torturas encaminhadas das mais diversas formas, desde um formulário encontrado em nosso site, ligações para nosso escritório, atendimentos pessoais, visitas em unidades etc. Das 290 denúncias registradas, 97 tratam do tema de negligência ao atendimento de saúde, ou seja, um terço de todos os relatos recebidos. Nas reclamações, a questão da saúde perde apenas para agressão física e negligência na assistência material.

    No ano passado, um surto de uma doença que atacava a garganta acometeu as presas da Penitenciária Feminina de Santana (SP). Segundo relatos, quase todas as presas estavam infectadas. A SAP divulgou que 210 internas foram afetadas, número abaixo do relato de familiares e amigos de presos que realizaram visitas na unidade. Mas ainda é importantíssimo ressaltar que o tratamento das infectadas apenas ocorreu depois da publicização do caso na mídia e a divulgação dos relatórios colhidos nas filas de visita pela associação de amigos e familiares de presos (AMPARAR). Mesmo assim, muitas famílias não obtiveram informações sobre suas familiares presas, sua situação de saúde e tratamento. 

    A maioria das unidades prisionais não conta com uma equipe mínima de saúde, mas, mesmo se contassem, os agravos de saúde vividos neste contexto são potencializados pela insalubridade e lógica do próprio ambiente carcerário (superlotação, tortura física e psicológica, falta de saneamento básico, espumas velhas servindo como colchões, racionamento de água, comida de péssima qualidade) e assim se observa a lógica perversa: a pessoa adoece  pelas condições precárias do ambiente em que é obrigada a viver, e se consegue atendimento médico, volta para o mesmo ambiente adoecedor e não consegue se curar porque está exposta aos mesmo fatores que a deixaram doente no primeiro momento. Esse é o ciclo vil que marca a condição de “ saúde” da população prisional. 

    Lembramos que o cárcere e a política de encarceramento em massa funcionam com objetivos mortíferos. A prisão marca aqueles que são considerados menos humanos e estabelece e cria uma subdivisão da população em subgrupos, estabelecendo uma censura biológica entre uns e outros, em que o Estado Penal, em última instância, decide quem é merecedor de viver, adoecer ou morrer.  

    Lucas Silva é assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional 

    Sofia Fromer é mestranda no Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e integrante do grupo de pesquisa de Saúde e Direitos Humanos da mesma faculdade.  

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