A ser realizado em setembro deste ano, Congresso Brasileiro de Transexualidade fortalece estigmas em um país líder de assassinatos de pessoas trans ao apresentar as identidades trans e travestis sob perspectiva de adoecimento e repressão
Não tem sido raro encontrar entidades médicas aliadas a bandeiras contra a diversidade sexual e de gênero, especialmente em um Brasil cada vez mais próximo da direita e de suas filosofias supostamente tradicionalistas. Falar em aliança médica com a moral, todavia, não é uma discussão nova no campo dos estudos sobre a diferença. Michel Foucault, a partir de 1976, estimula uma discussão sobre nosopolítica, localizando tal categoria como aquela voltada à higienização urbana, responsável por ocultar do social determinados fenômenos identificados como divergentes: pobres, homossexuais, trabalhadoras sexuais, pessoas com deficiência, etc.
“Saúde” deixava de ser algo praticado só em ambiente hospitalar, e passava a ser um ideal de responsabilidade coletiva, quase como se nos dissessem: “busquem ser saudáveis” – e quem não gostaria de mais saúde? Especialmente quando “mais saúde” é também mais produtividade. Daí emerge uma das grandes dificuldades em atingir o tom da crítica. Ao situar a nosopolítica, Foucault não falava só sobre como, a partir do século XVIII, a sociedade passou a se organizar pela medicina, mas falava também sobre os alicerces desse ideal regulatório, onde o dever da população é buscar saúde, e o dever da família é dar consistência ao substantivo “povo”.
Mas e quando as metáforas “povo” e “heterossexualidade” muitas vezes se confundem, veríamos a medicina e o direito, para não citar a psicologia, recém-chegada nesse debate, atuando no fortalecimento do dispositivo da sexualidade. Monique Wittig (2002) postula sobre como o contrato social é um contrato heterossexual, mas o que isso quer dizer? Como definir, por exemplo, uma criança saudável? O que define um adulto correto? O que define uma socialização adequada? Apesar de estarmos às voltas nessa discussão, pelo menos no campo da saúde mental, desde o início do século XX, quando Freud, nos três ensaios, passou a considerar que toda sexualidade tem um traço infantil, ainda não fomos capazes de encarar essas questões de frente. Seria arriscado presumir que, grande parte das vezes, quando falamos em crianças saudáveis, estamos presumindo crianças orientadas para a heterossexualidade? Em caso de resposta positiva, quando pensamos em doença, o que há em nossos imaginários?
É em “No Future” que o autor Lee Edelman (2004) traça uma profunda crítica a como a infância é instrumentalizada na fantasia popular como exercício de constrangimento moral. Não poderíamos debater parentalidades homossexuais porque, nessa perspectiva, as crianças não estariam sendo protegidas. Não poderíamos debater aborto porque, também, crianças estariam sendo atingidas. Tampouco poderíamos discutir gênero, pois, senão, estaríamos as expondo a uma erotização “danosa” a seu desenvolvimento – seguro e amparado pela pacífica vida heterossexual. Questões amplamente discutidas na pesquisa de doutorado de Daniel Kveller (2021), em que postula sobre a crononormatividade, dimensão que investiga a inserção da heterossexualidade nas etapas da vida (dia dos namorados, casamento, lua de mel, despedida de solteiro), como forma de lhe atribuir caráter de natureza e fazer com que pareça “parte” da maneira que apreendemos o tempo.
Esse horizonte perpétuo da vida política, situado na figura do “menino” e da “menina” heterossexual, nossos “futuros”, não estaria longe do que se nota na esfera nacional. Como discutido por autores como João Gabriel Maracci (2019) e Rogério Junqueira (2018), em pesquisas sobre kit-gay e “ideologia de gênero”, o marketing combativo à diversidade se engaja com uma opinião pública solidária a valores antigênero, antiaborto, anti-homossexualidade, anticiência, antieducação. Crítica reverberada por Paul Preciado (2013), quando informa que a categoria “criança” é o artefato biopolítico de manutenção da norma. E o que seria da esfera política brasileira sem o manejo das “crianças” pela caricatura de um “bem” comum? Por trás desse horizonte, haveria a restrita capacidade de pensar em um mundo onde a “civilização” não fosse entendida como um laço heterossexual.
O que pode a psicologia nesse debate? Portar-se como defensora de uma semiótica (homem e mulher = nação) naturalizada? Recolher-se aos consultórios privados e ignorar a dimensão política da sexualidade e do gênero nos processos de subjetivação? Não poderíamos nós, profissionais de saúde engajados com a criação de mundos menos mortíferos, desobstruir a limitada capacidade de imaginação que a heterossexualidade impõe para quem, vulnerabilizado por ela, busca assistência em saúde mental? Muitas vezes descomprometida, alheia, “imparcial” – seguindo as ordens de um discurso que se beneficia de sua aparente neutralidade nesse campo de disputas.
Quando setores conservadores recorrem à proibição do uso de linguagem neutra em escolas de Porto Alegre (RS), como defendido pelas vereadoras Fernanda Barth (PSC), Comandante Nádia (PP) e Psicóloga Tanise Sabino (PTB), que, em 2022, propuseram na Câmara de Vereadores que expressões terminadas em “x” e “@” seriam “artimanhas linguísticas” – curioso notar como uma estratégia de inclusão, que enfrenta diretamente a lógica de uma “diferença sexual” cara à ideologia heterossexual, tem tanta capacidade de incitamento político. Não estaríamos aqui observando um nítido exemplo de como a Saúde opera, de maneira bastante sofisticada, pactos normativos a partir das categorias “sexualidade” e “gênero”? Como a medicina tem feito isso?
Por certo, as relações entre “poder” e “saber” não são surpreendentes, pois desde Foucault (1976) estamos entendendo que há algo de tautológico entre essas duas forças, mas não poderíamos deixar de considerar como o discurso clínico começa a amarrar uma conexão entre “perigo(s) ao desenvolvimento infantil” e agendas historicamente abraçadas pelo feminismo. A Comandante Nádia (do Progressistas, mesmo partido em que Jair Bolsonaro, atual presidente e grande expoente no combate à diversidade, fez grande parte de sua carreira pública), também é conhecida por defender uma ideia de família original, como se refere, relacionada à presença de pai, mãe e filhos, onde também alerta para como o “comunismo” e a “esquerda” estariam reprimindo o comportamento heterossexual.
A primeira vez que me deparei com um caso assim foi quando, no mestrado, encontrei a ACPeds (American College of Pediatricians), entidade que se apresentava como defensora da vida, do casamento, do compromisso e da educação dos filhos. A presidente da associação na época, pediatra Michelle Cretella1, garantia que o reconhecimento da transexualidade na infância faria com que estivéssemos institucionalizado o abuso de menores. Não bastasse o pernicioso tratado entre o paradigma da “socialização correta” com a heterossexualidade, observa-se também um completo pouco-caso com as vítimas de abuso infantil – grandemente prejudicadas pela obstrução desse debate, como apontaria qualquer estudo sério dentro da psicologia.
Contrária à legalização do aborto e defensora do casamento tradicional como forma de proteger o bem-estar psíquico das crianças, que precisariam ser resguardadas do impacto fantasmagórico de serem criadas por pais homossexuais, a ACPeds sugere também que pais desencoragem seus filhos quando proclamarem uma identidade gay, recomendando que seja feita uma defesa da abstinência, como forma de evitar expressões sexuais e de gênero dissidentes. Por quê? O que faz com que a saúde se alie, e tenha se aliado historicamente, com a supressão do avanço das políticas de igualdade? Que há na diversidade que tanto assombra os consultórios, as salas de aula, os lares? Embora, de certa forma, tratem-se de perguntas ingênuas, especialmente quando passamos a compreender as matrizes de inteligibilidade propostas pela filósofa Judith Butler (1990) e as sanções resultantes da “incoerência” entre gênero, sexo e prática sexual, considero importante fazê-las. Importante porque nos ajuda a demarcar uma expertise sádica, vaidosa, naturalizada na literatura e na mídia, que em minha dissertação nomeei de nosoativismo2.
Nosoativismo faz referência ao conluio entre política, saúde e conservadorismo. Expressão utilizada como chave de leitura para os pactos hegemônicos de combate à alteridade. O nosoativismo contorna os limites entre a produção do humano e da abjeção, muito além de incidir sobre os direitos humanos, atua ativamente na categoria “humanidade” de modo a fortalecer desigualdades e relações de poder assimétricas. Rafael Cavalheiro (2019) aponta como há, nessa saúde mental compromissada com a norma, dada nostalgia que rejeita as implicações ético-políticas de toda profissão voltada ao cuidado. Afinal, quando se está em discussão hétero e cisnormatividade, não se está falando apenas de posições subjetivas, mas sobre um atributo sofisticado da violência. O nosoativismo, assim, apresenta-se como guardião das fronteiras entre normal e patológico, vidas vivíveis ou invivíveis, adequadas ou inadequadas.
Como forma de explorar ainda mais os fios que permitem a composição dessa rede-nosológica, onde há uma constituição “ativista” atravessando práticas biomédicas interessadas em se apresentar como “meramente neutras, científicas e desinteressadas” (algo que deveria nos chocar ou pela ingenuidade ou pelo descaradamento), gostaria de defender que a “transexualidade” tem sido um personagem importante às bandeiras psicopatológicas, cuja agenda indica estar interessada no resgate a um passado, um mundo imaginarizado, em que minorias e grupos vulneráveis têm sua cidadania burocratizada pela violência. Caso desejemos permanecer alheios às coalizões reacionárias que têm emergido da Saúde, estaremos indiferentes aos efeitos letais que esses discursos conseguem reverberar. Não há, de fato, nenhuma responsabilidade entre o que dizem psiquiatras sobre os “doentes de gênero” da atualidade e o feedback social nocivo empregado a esses mesmos que são rotulados pela doença?
Com um vocabulário atualizado e usando, inclusive, as cores da bandeira trans (branco, azul e rosa), recebi com espanto a divulgação recente do Congresso Brasileiro de Transexualidade (CBT). A ser realizado em setembro deste ano, o CBT fortalece estigmas em um país líder de assassinatos de pessoas trans. Organizado pelo Instituto de Desenvolvimento Humano Lippi (IDHL) e pela Academia Mineira de Medicina (AMM), evento apresenta as identidades trans e travestis sob a perspectiva de adoecimento e repressão. Como as pesquisas de Marco Prado e Sonia Correa (2018) apontam, esse tipo de conduta, que pode ser observada a níveis transnacionais por parte das mobilizações antigênero, está baseada na difamação sistemática, em tom de alerta, de todo e qualquer programa voltado à reparação da experiência homossexual. Como funciona a difamação nosológica?
Disforia, incongruência, egodistonia, sexualidade antipática, desordem do desenvolvimento sexual, transtorno de identidade de gênero, transexualismo psíquico, transexualismo mórbido, travestismo de duplo-papel, travestismo bivalente, travestismo fetichista, transexual verdadeiro, transexualista, transexualidade primária, transexualidade secundária, hermafroditismo psíquico.
Previsto para acontecer entre 22 e 25 de setembro deste ano, em Belo Horizonte (MG), o CBT introduz propostas policialescas como “a cultura da imagem”, “o drama do destransicionamento sexual” e “danos sociais, médicos e cirúrgicos causados pela afirmação de gênero incongruente”. O evento flerta com bandeiras anti-gênero e com um combate político, dissimulado, ao questionamento das posições supostamente naturais que homens e mulheres possuiriam. Com palestrantes como Élisabeth Roudinesco, que muito recentemente lançou seu tratado “O Eu Soberano” (2022), responsável por reforçar um pânico moral ao que chama de “perigo das derivas identitárias” – comparação imprópria diante da proporção das forças normativas que buscam conformar, às vezes pelas vias mais mortíferas, a diversidade sexual e de gênero.
Organizado por médicos de direita, o evento quer fazer parecer que a transexualidade, ou o que chama Dimorfismo Sexual Cerebral, leva, inclusive, ao abuso infantil, traçando correlações fechadas sobre si mesmas e repetindo a crítica que tanto tentam encenar: a de que nós, pessoas engajadas com os marcadores sociais da diferença, não estaríamos abertas à alteridade. Com uma conferência de abertura chamada de “A epidemia transexual”, o CBT ainda cativa a delirante hipótese de que haveria um crescimento populacional (intencional) de crianças e adolescentes trans, tirando da análise questões óbvias como o fato de termos, hoje, parentalidades menos implicadas com o exercício reiterado da “vida heterossexual” para seus filhos. E como isso, coletivamente, faz com que a sexualidade consiga percorrer caminhos mais salubres e potáveis.
Não nos escandaliza a violência simbólica e concreta da cis-heteronormatividade?
A presunção de que estaríamos observando uma epidemia, para além de um raciocínio pouco moderno, como se o desejo operasse pela ordem de um contágio volitivo, hipnotizante, sugere que homossexualidades e transexualidades são causadoras de mal-estar, pois raramente veremos “epidemias” vantajosas. Seria possível compreender que a noção de contágio atua como estimativa de um perigo? Partindo da lição primária da linguística de que todo discurso é argumentativo, qual proposta há na ideia de que a diversidade sexual e de gênero simboliza uma doença infecciosa fora de controle? Que prognóstico essa discussão nos leva a antecipar? Certamente um combate à “propagação” da diversidade.
Se um dia formos capazes de nomear, interpelar, constranger essa heterossexualidade ramificada em nossas relações, talvez, quem sabe, poderemos considerar tal produção nosológica irrelevante, e apostaríamos, ao invés disso, na construção de um mundo disposto a ampliar suas concepções corporais, sexuais e de gênero. A discussão sobre nosoativismo é útil não para pensar que a ciência deveria ser mais científica, ou que à ciência não interessaria nenhuma política, mas para que possamos localizar as diferentes discursividades que tentam ocultar seus julgamentos de ordem moral (Haraway, 1995). Não estaríamos aqui observando um saudosismo a disputas agudas de poder, expresso no rechaço ao avanço dos direitos sexuais?
Estão em análise duas importantes torções para os estudos pós-estruturalistas. A passagem de um paradigma fechado de “sujeito da consciência” para uma desconfortável abertura, em que veríamos um sujeito fragmentado. Além do entendimento ontológico relacionado a saber que o modo como se enxerga a realidade é sempre informado pelo lugar simbólico em que estamos. Essas são as duas torções que norteiam o texto. Assim, as relações de poder desiguais entre pessoas trans e cis não apenas descrevem fatos do mundo, mas reiteram essa mesma realidade. Estamos nos disponibilizando, enquanto operadores de saúde, para reiterar ou fraturar esses adoecimentos? Por que o embate e a hostilidade passaram a ser o lugar comum em que se enraízam aspectos da cosmologia heterossexual?
Nosoativismo é fruto da análise do desempenho político de uma ciência que precisa parecer amoral, precisa estar ilocalizável, apesar de, na verdade, tratar-se de um saber também sujo de mundo. Essa moral oculta, porém cisgênera e heterossexual, é desempenhada e naturalizada por profissionais de saúde ou entidades relacionadas às ciências do corpo, que subscrevem um status de “desvio” às formas de experimentar a sexualidade que não estejam voltadas à heterossexualidade, e aos exercícios do gênero que não estejam previstos pela cisgeneridade. Foi em um trabalho que escrevi com coautoria de Paula Machado (2019) que passamos a perceber psiquiatras de entidades como Protig (Programa de Identidade de Gênero) e Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) advogavam pela manutenção de rótulos diagnósticos a crianças trans brasileiras. Um diagnóstico se justifica por quais cosmologias, noções de sujeito, leituras de mundo?
A maneira que entendemos a transexualidade depende unicamente da maneira com a qual a noção de corpo nos é apresentada (pênis+masculinidade+homem e vagina+feminilidade+mulher)3.
O que estaria sendo dito caso observássemos um congresso com atividades, debates e intervenções que situassem os “malefícios do casamento igualitário” ou então “os perigos da adoção homossexual” – como será que reagiríamos? Consideraríamos uma mera questão de ponto de vista? Uma inocente investigação científica? O que pode a ciência sem a ética e a política? A saúde, sobretudo a mental, deve contribuir para dar dignidade às mais diferentes formas de pôr uma vida em exercício. Convém salientar, embora as sanções não recaiam sobre os médicos, as propostas do congresso contrariam artigos da Resolução nº 01/18 do CFP (Conselho Federal de Psicologia), que estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos em relação às pessoas trans e travestis, especialmente no que se refere:
Art. 6º – As psicólogas e os psicólogos, no âmbito de sua atuação profissional, não participarão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet, que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 7º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis. Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero.
Art. 8º – É vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.
Por que uma conduta combatida por um conselho de saúde não interessaria à saúde como um todo? O que seria eticamente ruim o bastante para um psicólogo atuar, mas não seria para um médico? Programas conservadores como o que está sendo defendido pelo CBT fortalecem ainda mais a distância entre pessoas trans e os consultórios médicos, agravando a falta de acesso ao cuidado. Considero de suma importância ressaltar que não são poucos os casos clínicos, que acompanho e escuto, sobre como médicos ou outros psicólogos romperam princípios e valores profissionais devido a seus próprios preconceitos. Ao longo de toda minha formação psicológica, poderia afirmar que essa é uma adversidade infelizmente compartilhada por grande parte das minorias políticas, que reclamam à saúde pelo fim da hostilidade.
Gostaríamos que, no lugar disso, as ciências médicas e psi se engajassem em alertar para os danos causados pelo abandono familiar, pela evasão escolar, pelo estigma social, pela baixa contratação no mercado de trabalho formal, pelas vidas muitas vezes solitárias que corajosamente buscam sustentação. Quem sabe, assim, pudéssemos orientar nossa atenção para os custos psíquicos e culturais das sanções religiosas sobre determinadas populações, para os prejuízos causados pelo discurso psicopatológico, que durante o último século se ocupou de discriminar, segregar e combater as experiências de sexo e gênero diversas. Veríamos-nos na obrigação de reconhecer que congressos como o CBT contribuem para desinformação e intolerância de famílias a crianças trans, fazendo com que a reação à transexualidade acione gatilhos evitáveis, especialmente, em momentos de grande vulnerabilidade; como costuma ser o ato de se reconhecer LGBTIA+ para parentes e responsáveis.
Mesmo assim, o que terá feito com que determinados setores da saúde transformassem o fato de hoje termos pessoas trans com mais participação política em uma acusação epidêmica? Esse posicionamento não sugeriria que seria melhor, politicamente, caso essas pessoas permanecessem invisibilizadas? A repressão à transexualidade não se converteria numa repressão às próprias pessoas trans? Até que ponto uma coisa não produz a outra? Enfim, o nosoativismo passou a ser uma categoria que, em meu trabalho, auxiliou-me a entender como a psicopatologia buscava se atualizar, como passava a usar uma linguagem “inclusiva” sem verdadeiramente incluir. Até porque… não é porque o evento não fala “transexualismo” que Dimorfismo Sexual Cerebral deixe de ser pejorativo, tanto pelo termo quanto pelo conteúdo (clínico, diagnóstico, avaliativo, tutelar, despotencializante).
Essa é uma discussão cara à psicologia, especialmente por não considerar a língua somente como um código, mas como a forma de experienciar a vida. Se não entendermos a transexualidade como outro tipo de aculturamento, continuaremos entendendo-a conforme um malefício à suposta “socialização correta” – com base em quê? Para o benefício de quem? Suponho que talvez assim ocorra para que não precisemos nos dar conta do seguinte fato: aliamo-nos à morte da alteridade como um modo de estar em “contato” com o outro. Não deve ser fácil se dar conta dos próprios traços perversos, todavia espero que, de tempos em tempos, ressurja uma psicologia crítica, infratora, desobediente o bastante para sustentar isso.
O que se observa no Brasil e está explícito nas pesquisas de Berenice Bento, Tatiana Lionço, Daniela Murta, Márcia Arán, Flávia Teixeira e muitas outras sociológicas, antropólogas e psicanalistas é que há um conluio entre a ciência do nosso tempo e uma intensa propaganda à soberania da diferença sexual (marcadamente expressa pela heterossexualidade). O que recomendo, portanto, àqueles e aquelas (aquel@s e aquelxs) que se opõem a essas alianças sujas de sangue, que escrevam ao correio eletrônico do evento ([email protected]) e que possam ecoar uma prerrogativa crucial para o transfeminismo: a de que não gostaríamos de nos adaptar à cultura, mas sim de indagá-la.
E o que é ser trans? A transgeneridade se sobrepõe à noção de identidade. Diz respeito também à produção de um ponto de vista periférico sobre os fenômenos sociais. Qualquer pessoa que estiver interessada em interpretar as relações de gênero, precisará ouvir o que sujeitos precarizados por esse discurso têm a dizer. Esse ponto de vista periférico, defendido na história do feminismo por grandes teóricas como Glória Anzaldúa, Patrícia Hill Collins e Luce Irigaray, se justifica por um acúmulo de repertórios simbólicos hegemônicos, responsáveis por sufocar representações que contrariem a pretensa estabilidade do sexo. Dito de um modo simples, as identidades trans são formas de ver o mundo. Reconhecer essas formas é o que faz com que a política aconteça, pois só podemos chamar de político aquilo que desloca relações de poder – o oposto, a incontestabilidade do discurso psicopatológico, como nos mostra a história dos guias diagnósticos (DSM e CID), organiza nossos ofícios à desqualificação ontológica, intelectual e epistêmica da diversidade. Ou seja, leva à morte em vida.
As identidades trans não são um subtipo, uma variação das identidades cis. As identidades trans questionam, interpelam, fragilizam a noção de que haveria algo de natural nos papéis sexuais. Ter um gênero nunca nos protegeu do gênero.
Por fim, há “saúde trans” mesmo quando pessoas trans são privadas de participar da lógica dos seus próprios cuidados? Essa privação nos aproxima de uma construção mais democrática do pensamento na arena da assistência? Ou uma construção democrática não é e nunca foi nosso interesse? Não conseguiriam os discursos institucionais sobre saúde aprender com epistemologias transfeministas, que ampliam as fronteiras do corpo para além de um restrito binarismo? O que a resistência de operadores de saúde, em reconhecer a legitimidade das identidades trans, revela sobre determinados arranjos dogmáticos na ciência? Tais crises estão em curso. Cabe a nós escutá-las.
* Sofia Favero é psicóloga, ativista e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faz parte da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis. Seus temas de interesse são gênero, infância e psicopatologia.
1 Não são poucos os vídeos, hospedados em canais religiosos, em que Michelle aparece alertando para os perigos da “Ideologia de Gênero” ao desenvolvimento infantil. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=oJGEqGVvT9w em 14 de maio de 2022.
2 Publicada em 2020 pela Editora Devires, pode ser encontrada sob o título Crianças trans: infâncias possíveis. Caso haja desejo de se aprofundar no debate sobre a ACPeds, recomendo a leitura, pois meses depois a entidade reformulou o portal, omitindo algumas reportagens que utilizei na pesquisa.
3 Embora não seja possível afirmar que todo mundo saberia que a ciência também muda a forma como entende a corporalidade ao longo do tempo. Expresso no trabalho de Thomas Laqueur (2001), chamado Inventando o Sexo, observa-se como a mudança mais próxima do nosso período histórico é a do século XVIII, quando o modelo do sexo único (vagina como uma variação inferior do pênis) passou a ruir, dando espaço para o modelo da diferença sexual radical ao longo do século XIX.
Referências
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