Artigo | O fim do policiamento

Livro O Fim do Policiamento, do professor Alex Vitale, ganha edição brasileira neste mês. Assinado por Aline Passos, o prefácio da versão nacional compara os desafios do projeto de desfinanciamento e do fim de polícia no Brasil e nos EUA

Imagem: Autonomia Lietrária / Reprodução

O fim da polícia é um dos temas mais polêmicos entre os que abordamos aqui na Ponte – porém, apesar de ainda visto como utópico em diferentes instâncias, é urgente e necessário. A editora Autonomia Literária lança no fim de outubro o livro O Fim do Policiamento, do professor do Brooklyn College Alex Vitale, livro de 2017 que serviu de manual para muitos debates sobre o desfinanciamento da polícia que vêm ocorrendo nos EUA desde os protestos pela morte de George Floyd em maio de 2020. Disponibilizamos abaixo com exclusividade o prefácio brasileiro do livro, assinado pela professora de direito penal e doutora em sociologia Aline Passos, uma das autoras da nossa Coluna Abolição, que monta uma profunda comparação entre a situação da polícia nos EUA e no Brasil, uma perfeita introdução para o assunto.

O Fim do Policiamento: Prefácio à edição brasileira

Durante o ano de 2015, assistimos a uma série de manobras parlamentares capitaneadas pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para aprovar uma emenda à Constituição que reduziria a idade a partir da qual alguém pode ser condenado criminalmente. Quando digo manobras, refiro-me desde a proliferação massiva de notícias falsas até o ardil de recolocar em votação a matéria quando a proposta original já havia sido derrotada. Entre os meses de junho e agosto daquele ano, discursos deploráveis – racistas, misóginos, capacitistas, etc. – inundaram as sessões congressuais, ainda mais habitualmente do que já estávamos acostumados a ver, pelo menos, até então. A redução da maioridade penal, como é mais conhecida, é uma proposta que agrega e mobiliza ampos setores de uma sociedade profundamente marcada pelo autoritarismo.

Naqueles dias, vimos, mais de uma vez, uma deputada subir à tribuna com a foto de uma criança estampada em sua camiseta para defender a proposta de redução da maioridade penal. Era Keiko Ota, mãe do menino Ives Ota, sequestrado e assassinado em 1997, na Zona Leste de São Paulo. Ao ouvi-la falar da perda violenta do filho como justificativa para o posicionamento que apresentava, Keiko levava os mais jovens e os mais desinformados (ou desmemoriados) a acreditar que Ives fora assassinado por alguém menor de 18 anos. No entanto, entre os três condenados pela morte de seu filho, dois eram policiais militares que trabalhavam ilegalmente como seguranças privados para a própria Keiko e o marido dela, donos de um próspero comércio de mercadorias populares. Nenhum dos envolvidos era adolescente. 

Enquanto lia o trabalho de Alex S. Vitale, professor de sociologia do Brooklyn College, a imagem de Keiko voltou várias vezes à minha cabeça. Parece que não é apenas no Brasil, afinal, que a existência, a permanência e o incremento da polícia dependem de um profundo e reiterado processo de negação de que ela “existe principalmente como um sistema para gerir e até mesmo produzir desigualdade através da supressão de movimentos sociais e administração rigorosa de comportamentos de populações pobres e não-brancas, as que saem perdendo nos arranjos econômicos e políticos vigentes”, como afirma Vitale.

Assim como a família Ota, muitos empresários brasileiros contratam policiais para fazer a segurança privada de seus estabelecimentos. No entanto, as vítimas desses policiais não costumam ser os filhos de seus patrões, mas adolescentes como Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, negro e “confundido” com alguém que supostamente tentou furtar a empresa para a qual prestava serviço o sargento da Polícia Militar Adriano Fernandes Campos, conforme denúncia do Ministério Público, de 14 de agosto de 2020. Guilherme foi executado com dois tiros na cabeça na Zona Sul de São Paulo.

Milícia

A busca por esse tipo de serviço de segurança se tornou tanta que grupos de policiais e ex-policiais se especializaram em oferecê-lo. Foi assim que o bairro Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, tornou-se conhecido há alguns anos como “berço das milícias”, e investigações, até hoje inconclusas, apontam possíveis conexões entre o grupo armado que governa aquele território e o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018.

Ao escrever estas linhas no ano de 2021, creio que não conto novidade a ninguém, pois a atuação miliciana já não se restringe à segurança pública nem a um Estado ou outro da federação. De qualquer forma, é importante ressaltar que nem sempre a violência que a milícia diz combater preexiste à sua presença em um bairro. Há casos em que é necessário “fazer a própria demanda”, de maneira a acuar os moradores a pagar por um “policiamento extra”. Assim, surtos de roubos e outras violências que nunca são solucionadas pela polícia oficial podem aparecer sem mais nem menos em qualquer vizinhança pertencente às classes sociais mais precarizadas. Em seguida, a oferta de um “serviço de segurança privada” também chega. Aos grupos que se organizam para oferecer esse tipo de segurança passamos a chamar de milícia. Há poucas décadas, quando não havia uma distinção clara entre o uso das palavras polícia e milícia, ironicamente, a definição do problema era mais fácil, já que, hoje sabemos, não existe milícia que não seja um negócio de policiais e ex-policiais.

Em vários momentos deste livro, Vitale se dedicou a contar a história das polícias estadunidenses, de maneira que não são poucos os trechos em que essa história se assemelha à formação das milícias brasileiras, como no caso dos Texas Rangers, “um bando mais solto de forças irregulares (…) contratados para proteger os interesses dos recém-chegados colonos brancos (…) Seu principal trabalho era caçar populações nativas acusadas de atacar colonos brancos, além de investigar crimes como roubo de gado”. É verdade que o autor atribui a reiteradas reformas liberais ao longo da história dos Estados Unidos a atenuação do caráter miliciano das polícias na defesa de interesses privados. No entanto, Vitale não se ilude e não deixa seu leitor se iludir a respeito dos limites dessas reformas. Nesse sentido, o autor destaca o assassinato de Eric Garner, homem negro, pela polícia de Nova York, em 2014, como resultado das pressões de comerciantes para que os policiais dessem um jeito no rapaz que vendia cigarros contrabandeados nas redondezas.

Criminalização e controle da pobreza

Ao longo de uma dezena de capítulos, Vitale mostra como quase todo o tempo e os recursos investidos em policiamento nos Estados Unidos se volta ao controle de classes populares e indivíduos considerados disruptivos, independentemente da prática de qualquer comportamento que possa ser chamado de crime. São crianças, pessoas com deficiência, sem-teto, trabalhadores do sexo, traficantes e usuários de substâncias proibidas, pessoas negras, imigrantes e militantes, entre outros, que constituem alvos da intervenção policial mais cotidiana. Isso porque, esclarece o autor, a polícia não existe para proteger a comunidade, mas para governá-la e, por isso mesmo, teorias como a das janelas quebradas servem tão bem à justificação do policiamento. 

A ideia de que se deve intervir e punir com rigor desde o mínimo distúrbio de sociabilidade nunca se provou eficaz para erradicar qualquer tipo de violência, mas autorizou a intervenção “intensiva, invasiva e agressiva” em todos os aspectos da vida de pessoas empobrecidas e responsabilizadas pelo próprio empobrecimento, de forma que são consideradas incapazes de governar a si mesmas. Dessa grande estratégia de governo policial sobre a vida de negros e pobres, emerge todo tipo de política: de saúde, educação, habitação, entre outras, com o único objetivo de impedir que essas populações denunciem, se mobilizem e superem a condição de exploração e subalternidade em que vivem. 

Militarização das escolas 

Vitale mostra que, nos Estados Unidos, “mais de 40% de todas as escolas agora têm policiais designados a elas e 69% dos quais se envolvem na imposição da disciplina escolar”, de maneira que problemas antes solucionados no âmbito escolar estão sendo encaminhados diretamente para a justiça criminal, num acelerado processo de criminalização da juventude que atinge especialmente afro-estadunidenses e latinos. A escola é uma porta para que a polícia possa se imiscuir na vida da comunidade sem depender de qualquer índice de criminalidade prévio que justifique a intromissão. A ampliação da justiça criminal por meio das escolas leva ao aumento da evasão escolar e ao reforço de toda a precarização que aflige comunidades pobres e alimenta ciclos de violência, como mostram os números trazidos pelo autor sobre os casos da Flórida e do Texas. 

Ao leitor brasileiro, o tópico sobre a militarização das escolas é particularmente sensível, pois, no final de 2019, o atual presidente, Jair Bolsonaro, anunciou um programa para transformação das escolas públicas em escolas “cívico-militares”, o que significa que cada instituição de ensino passará a contar com uma coordenação administrativa formada por militares para decidir sobre casos de indisciplina. De início, a adesão não é obrigatória, mas a promessa de investimentos fez brilhar os olhos de gestores escolares que possuem cada vez menos recursos para manter o funcionamento ordinário das instituições de ensino. 

Os movimentos sociais de estudantes e professores que resistem à militarização das escolas vêm denunciando, portanto, que existem recursos para melhorar a qualidade do ensino, e o condicionamento à militarização não passa de chantagem de um governo autoritário. Para além disso, o avanço dos tentáculos das Forças Armadas sobre o processo de educação de crianças e jovens de famílias pobres tem o claro propósito de submeter comunidades inteiras a um nível de vigilância e controle mais enraizado e difícil de romper.

Marginalização dos indesejados

Nos Estados Unidos, assim como o policiamento nas escolas aumenta a criminalização da juventude negra e latina, o tratamento policial que se dá à população em situação de rua tem como resultado impedir que essas pessoas deixem a rua. Pode parecer paradoxal numa primeira mirada, mas é apenas o funcionamento do que na criminologia crítica se chama de eficácia invertida, ou seja, o sistema de justiça criminal atuando a favor do que diz combater. Como mostra Vitale, ao passo em que aumenta o número de pessoas vivendo nas ruas, aumentam também as legislações proibindo mendigar, deitar-se ou sentar em determinados espaços públicos e, até mesmo, dormir em veículos. Dessa maneira, há todo um trabalho policial em garantir que determinadas pessoas não possam frequentar certos perímetros das cidades.

No Brasil, com destaque para a cidade de São Paulo, não é raro ver a instalação de paralelepípedos sob marquises e viadutos, visando impedir que a população em situação de rua os utilize como abrigo. Essa situação-limite, em que não se tem onde morar e não é permitido ficar na rua, em primeiro lugar, é uma forma de dizer às pessoas que elas não deveriam existir, pois não há lugar para elas em nossa sociedade. Em segundo lugar, que elas são corpos disponíveis a uma intervenção policial permanente. Assim, uma vez que as passagens pela polícia e/ou pela prisão dificultam a obtenção de moradia, instaura-se um movimento tautológico que só pode ser explicado pela função de governo e exploração da miséria que a polícia exerce. 

Ao tratar do controle policial sobre o trabalho de profissionais do sexo, Vitale analisa ainda como, mais uma vez, não se trata de atingir o objetivo anunciado oficialmente, afinal, não é possível, sequer é desejável, acabar com esse mercado. Nas mais variadas legislações criminalizadoras da prostituição nos EUA, a polícia encontra uma forma de extorquir trabalhadores – notadamente, mulheres e LGBTTQIA+ – e violentar seus corpos, sem qualquer consequência. 

Por não ser uma atividade tipificada penalmente no Brasil, quem vê de fora pode achar que vivemos aqui em um benéfico Estado de desregulamentação da prostituição em que, nas palavras de Vitale, a “concorrência generalizada ajudou a minar práticas abusivas”. Entendo que essa análise opere sob o efeito da comparação entre Brasil e EUA, mas ouso aqui propor um deslocamento. No Brasil, a criminalização do trabalho sexual não se dá no momento legislativo, mas não significa que não haja uma forte criminalização secundária, de forma que trabalhadoras do sexo ficam muito mais expostas a serem presas por alegações de tráfico de drogas, para dar apenas um exemplo. Isso sem falar que, por não ter qualquer regulamentação legal, há uma impossibilidade de cobrar clientes caloteiros pelos serviços prestados, o que pode levar a enfrentamentos físicos dos quais são as trabalhadoras do sexo que saem acusadas de lesão corporal, mesmo quando são também as que saem mais machucadas. 

Mesmo em termos legislativos, o Código Penal brasileiro confunde propositalmente prostituição e exploração sexual, de forma que permite criminalizar o livre exercício do trabalho sexual e nunca combater seriamente a exploração. Embora por meio de estratégias diferentes, Brasil e EUA punem severamente pessoas que exercem o trabalho sexual e, como o controle da seleção penal se inicia na polícia, todas essas pessoas estão sempre muito expostas à violência policial.

Nesse movimento de ampliação da esfera atuante da polícia, a análise de Vitale aponta ainda para a gestão de pessoas com deficiência psiquiátrica em consequência de uma “deterioração massiva dos serviços de atendimento à saúde mental”. Nesse sentido, no Brasil, vivemos sob a expansão de comunidades terapêuticas que substituem a ciência por religião no tratamento de pessoas com uso problemático de determinadas substâncias consideradas ilícitas. Esse uso, quando é lido como um efeito de problemas psiquiátricos, com frequência, encontra tentativas de emplacar medidas autoritárias, a exemplo da internação compulsória de usuários de crack, com óbvia alusão à polícia quando se fala do emprego da força. Para além disso, quando pensamos em pessoas com deficiência que são negras e pobres, a maneira de se expressar ou um comportamento supostamente incomum, não raro, são enquadrados pela polícia como “atitude suspeita”, desdobrando uma intervenção particularmente cruel, e às vezes fatal. Casos como o do menino Railan Santos da Silva, que levou um tiro pelas costas em uma ofensiva da polícia no bairro Curuzu, em Salvador, enquanto assistia a um jogo de futebol na vizinhança onde morava. Railan era autista e essa variável precisa ser situada no conjunto das vulnerabilidades que o fizeram mais exposto à letalidade policial naquele momento.

Legado escravocrata

No roteiro de Alex Vitale, estive o tempo todo fadada a reencontrar o Brasil, não do mesmo jeito, mas sempre com traços marcantes de similaridade. Talvez porque haja um elemento estrutural inescapável que é o fato de, em qualquer país, a polícia se organizar como força armada de sustentação do Estado contra seus inimigos internos, fabricados justamente para que se justifique a própria presença do Estado. Algo ligeiramente próximo à maneira como se formam as milícias. Mais ainda, talvez tudo pareça tão próximo porque estejamos, Vitale e eu, falando a partir de países onde a escravidão foi abolida apenas formalmente ou negativamente, para lembrar Angela Davis quando diz que à abolição não correspondeu qualquer conjunto de políticas de fato comprometidas em desfazer a hierarquia racial que situa pessoas negras numa condição econômica, política e social inferior às pessoas brancas. Pelo contrário, o que vemos, nos Estados Unidos e no Brasil, é uma incessante atualização de estratégias de controle que preservam essa hierarquia racial tanto mais quanto se dizem racialmente neutras. Por fim, e nunca é demasiado lembrar, essas semelhanças também refletem o intenso intercâmbio de práticas policiais que os Estados Unidos estabeleceram com o restante das Américas, inclusive o Brasil, quando ditaduras militares governaram os países ao sul, durante grande parte do século XX.

Mas as diferenças também existem. Nos Estados Unidos, a adoção de políticas institucionais de segregação racial pós-abolição marcou indelevelmente as relações sociais, enquanto no Brasil vigora o mito da democracia racial. Aqui, temos de lidar com a narrativa de uma pacífica miscigenação entre brancos, negros e indígenas que silencia as denúncias do racismo que nos estrutura, mesmo quando 79% das vítimas da letalidade policial são homens negros, segundo pesquisas recentes. Nossa silenciosa segregação é tão eficiente que a reunião de jovens negros e moradores de periferias em grandes encontros marcados pela internet para passear em shopping centers – os rolezinhos – rapidamente se tornou caso de polícia, tornando explícito qual é o público que se espera naquele centro de consumo e o público que não é bem-vindo. 

Xenofobia e proibicionismo

Vitale aborda ainda o policiamento de fronteiras contra pessoas afluentes de países e regiões onde a devastação climática e/ou política força o deslocamento em direção aos países corresponsáveis pela devastação. Acontece na Europa e nos EUA, e conta com a pressão interna de crescentes ondas reacionárias mobilizadas, em grande parte, pelo empobrecimento derivado de processos de desindustrialização e pelos dispositivos de hierarquia racial acionados direta ou subliminarmente. As pessoas que permanecem sem a documentação exigida em solo estadunidense vivem sob ameaça policial direta ou potencial, à disposição para discricionariedades e abusos contra os quais não têm como se defender. As imagens de crianças amontoadas em centros de detenção para imigrantes durante a pandemia de Covid-19 comunicaram o tamanho dessa tragédia.

Seja em relação aos jovens, à população negra, às profissionais do sexo, aos imigrantes, e tantos outros sujeitos considerados perigosos, existe uma política de policiamento transversal que pretende justificar violências e arbitrariedades em termos socialmente neutros: a guerra às drogas. As drogas são a grande panaceia do controle policial que não pode se assumir enquanto manutenção de hierarquias de raça, gênero, sexualidade e classe. É curioso como a autoproclamada maior democracia do mundo ocidental, onde o liberalismo viceja como grade de decifração da vida e das relações, conseguiu produzir um arranjo em que o domínio do próprio corpo é um caso de polícia. Mas esta é apenas uma contradição aparente, uma vez que a guerra às drogas nunca teve como motor a preocupação com a saúde dos cidadãos. 

Há poucos meses, Vitor Silva Santos, um menino de 11 anos que vendia doces pelas ruas de Canindé do São Francisco, município do sertão de Sergipe, foi assassinado com um tiro nas costas, no que os policiais da região alegam ter sido mais um “confronto com traficantes”, a velha fórmula que abriga todo tipo de execução policial no Brasil. Em uma imagem que supostamente é do procedimento supersigiloso para apurar o assassinato de Vitor, mas que vazou nas redes sociais, ao lado do nome do menino, é possível ler “tipo: suspeito”. Num país em que uma criança negra é documentada como suspeita, já não restam dúvidas sobre qual é a função da polícia. 

O proibicionismo em relação às drogas é um negócio muito lucrativo, como já analisaram suficientemente Michelle Alexander, nos Estados Unidos, e Vera Malaguti, no Brasil, para ficarmos apenas em um exemplo de produção teórica de cada país. Lucram as polícias, que cobram pedágios dos comerciantes; lucram as empresas do encarceramento, que estão sempre abastecidas de novos prisioneiros; lucram os governos, que mantêm comunidades pobres inteiras sob intensa vigilância e controle, minando possibilidades de resistências emergentes; lucram as classes sociais mais abastadas, que se privilegiam do policiamento ostensivo nas vizinhanças pobres enquanto consomem o que lhes aprouver sem correr risco de morte; lucram conglomerados de mídia, que produzem e mantêm publicações e programas exclusivamente dedicados a narrar e enaltecer as forças policiais, seus agentes, métodos e resultados letais.

No campo das diferenças, é importante lembrar os impactos da guerra às drogas na América Latina, definida pela política externa estadunidense como um conjunto de países produtores em oposição ao caráter meramente consumidor que atribuem a si mesmos. Ao reproduzirem a dualidade traficante versus usuário no âmbito internacional, os EUA condenaram Brasil, México, Colômbia, Peru, Bolívia, entre outros, à intensa militarização em troca de ajuda financeira. Desde a chamada Estratégia Andina – que dizia incentivar a substituição da produção de coca por alternativas de subsistência e despejou “assistência militar” nos países da região – até o Plano Colômbia, a partir do qual o investimento para “combater o narcotráfico” virou “combate ao terrorismo” e colocou um alvo nas costas não apenas das guerrilhas, mas de todos os movimentos sociais. 

À medida que o discurso da guerra às drogas, capitaneado pelos EUA, se desdobrou em termos de “combate à lavagem de dinheiro” e “combate às organizações criminosas”, a precária estabilidade política na América Latina entrou em xeque. O que é funcionamento ordinário das instituições políticas no capitalismo se tornou mote para grandes operações policiais que transformaram o histórico de abuso de autoridade e ilegalidades perpetrados pelo sistema de justiça contra negros, pobres e periféricos em plataforma eleitoral vitoriosa sob o signo de “combate à corrupção”. O resultado, hoje, durante uma pandemia que já matou mais de meio milhão de brasileiros, são forças policiais fora de qualquer controle, atuando, inclusive, contra decisões do Supremo Tribunal Federal e dos governadores dos Estados. No momento em que escrevo, a polícia no Brasil, em especial a corporação que é estritamente militar, parece já ter se livrado de todo e qualquer constrangimento democrático e, progressivamente, assume a condição original de milícia. 

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Por tudo isso, a chegada do livro de Alex Vitale é tão bem-vinda. Além de abordar os problemas do policiamento, o autor vai questionando, uma a uma, as reformas que foram feitas nas polícias estadunidenses ao longo da história e demonstrando que elas não foram capazes de enfrentar a truculência, a letalidade e o racismo intrínsecos a uma instituição que precisa fabricar inimigos internos para continuar existindo. Vitale não pode ser acusado de pressa em suas conclusões. O professor de sociologia do Brooklyn College mergulhou em propostas bem-intencionadas, como o aumento da diversidade racial e transparência das ações das forças policiais, para constatar que elas apenas incrementaram o grau de tensão nas comunidades e o controle externo pouco pode diante do corporativismo. Chegou à conclusão – e o título da obra não me coloca em risco de dar spoiler – de que, quanto mais reformas liberais buscam incessantemente “resgatar” a legitimidade da polícia, é porque mais evidente está que se trata de uma força de dominação e submissão das classes populares, dos trabalhadores e das minorias. Isso precisa acabar.

 Inverno de 2021

*Aline Passos é advogada, socióloga e abolicionista penal

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