Investimento aumentou desde os anos 80, mas modelos de policiamento nos EUA produzem desigualdade racial e brutalidade policial, preocupando mais do que a violência
Não foi só o edifício da unidade policial responsável pela morte de George Floyd que acabou sendo destruído pelo fogo. O equivalente à Câmara Municipal de Minneapolis, nos EUA, acaba de aprovar o desmantelamento da polícia, ou seja, a organização policial da cidade acabou. Agora, o orçamento destinado à polícia será, em parte, aplicado no suporte social à comunidade negra para minimizar os efeitos da Covid-19, em termos sanitários e econômicos. Outra parte será empregado na reconstrução da polícia em bases comunitárias.
Esse é um novo capítulo da história americana, em que os termos “dismantle” e “defund” entraram no vocabulário das relações entre polícia e sociedade. Jornais com o The New York Times e o The Guardian destacaram a questão, informando que Los Angeles reduziu o financiamento da polícia e outras cidades estudam fazê-lo.
Desde 1980, os investimentos em corpos policiais e tecnologias de policiamento multiplicaram-se. As reformas do período visavam à redução de crimes violentos nas cidades americanas. Dessa forma, várias vertentes de reformas concorreram no campo policial: de um lado a tecnificação, com uso de de análise de dados, planificação, sistemas de gestão, fluxos de tomada de decisão, criação de protocolos e reformas na educação policial; de outro, modelos comunitários de policiamento, participação social, transparência, foco nos diferentes públicos e integração com as políticas de assistência social e prevenção.
Uma terceira vertente apoiou-se em políticas de tolerância zero, encarceramento massivo, “guerra às drogas”. A militarização das polícias se tornou também crescente, com o uso mais frequente de armamento pesado, uma medida supervalorizada por políticos de direita, importada para a América Latina como modelo de polícia que funciona.
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Estudiosos da criminologia demonstraram que o declínio das políticas sociais coincidiu com o crescimento das políticas de controle do crime. Menos bem-estar, mais prisão e polícia.
O enxugamento do Estado só teve uma exceção. Se a polícia produz mais medo do que segurança, se ela mata, se ela discrimina, se as prisões não ressocializam e não cumprem os direitos civis, isso não se reverteu em questionamento dos métodos, dos objetivos e dos recursos destinados à prisão e à polícia.
Investimentos milionários continuaram a ser revertidos, enquanto o encarceramento em massa passou a ser analisado como um complexo industrial da punição: sua função de lucro e geração de empregos era mais importante do que sua capacidade de reintegrar socialmente os egressos.
Os dados do encarceramento, amplamente analisados, demonstraram seu caráter discriminatório e seletivo. As prisões americanas segregam negros e latinos, sendo a “guerra às drogas” o grande motor do controle social racista. Enquanto isso, a polícia afirmava a efetividade da filtragem racial para o controle do crime: ao mapear as áreas problemáticas, são as comunidades negras as que têm mais problemas, portanto é lá que o policiamento deve se concentrar e o número de abordagens de pessoas negras deve crescer.
Pouco a pouco, o policiamento comunitário foi esquecido como base da reforma. Cada vez mais a tecnificação do trabalho policial e a tolerância zero levaram a concentrar a repressão nos bairros negros.
No século 21, a violência declinou nas cidades norte-americanas. Mas a estrutura de repressão baseada na ‘discriminação estatística’ das comunidades negras e latinas não parou de produzir mortes. Entre os países ricos, os EUA têm, de longe, o maior número de pessoas mortas pela polícia. Os casos se sucedem produzindo resistência.
Em Nova York, a Justiça chegou a proibir a abordagem policial por causa da filtragem racial e dos efeitos da discriminação para as pessoas negras. O movimento #BlackLivesMatter se fortalece ao lutar contra as mortes dos cidadãos negros pela polícia.
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O protesto por justiça para Floyd já dura duas semanas. Ganhou apoio para desmantelar e reduzir o financiamento da polícia porque é grande o descontentamento com os resultados do alto investimento. A polícia cresceu demais, e os modelos de policiamento que predominaram no campo policial produzem desigualdade racial e brutalidade policial.
Hoje, a violência da polícia preocupa mais do que a violência do crime. Vários estados regularizaram o uso e a comercialização da maconha, tornando obsoleto o caro e brutal aparato de “guerra às drogas”. A sociedade evoluiu no tema e as polícias perderam espaço. São crescentes os apelos para a desmilitarização das polícias e o aumento de transparência e controle dos abusos.
O punitivismo, acoplado à injustiça racial, chegou ao limite durante a crise da Covid-19, expondo os vínculos políticos do aparato tecnológico do policiamento, supostamente neutro, com a opressão racista. Em Minneapolis, a decisão foi dissolver a organização policial, dado o seu alto grau de comprometimento profissional e organizacional com o modelo que produz brutalidade policial e desigualdade racial.
Uma nota de US$ 20 preocupa a polícia mais do que a proteção da vida quando essa anima um corpo negro. Os protocolos de operação induzem ao uso desproporcional da força. A educação policial e as técnicas de imobilização permitem que uma voz dizendo não conseguir respirar seja ignorada até seu completo silenciamento.
Pede-se agora menos polícia, mais bem-estar. Pede-se o recuo do protagonismo absoluto da polícia na produção da segurança pública e o repensar profundo das bases que orientam o policiamento. Os sistemas integrados de proteção social são o horizonte da sociedade civil que protesta, exigindo da polícia que consuma menos dinheiro e que repense sua razão de ser.
Os recursos devem ser destinados às políticas de suporte social das comunidades negras, nas políticas redistributivas, e na construção da reconciliação e da democracia americana em direção a uma sociedade menos violenta. São os novos ventos do norte a insuflar uma ruptura nas concepções e nos saberes sobre “justiça” e “vida segura”.
Jacqueline Sinhoretto é socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC UFSCar
Artigo publicado originalmente em Fonte Segura