Brasil é denunciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não punir PMs por Massacre da Castelinho

Emboscada que matou 12 pessoas em março de 2002 envolveu mais de 50 policiais. Na visão de especialistas, sentença pode ser um marco contra a impunidade de crimes cometidos pelo Estado: ‘Esperança de trazer finalmente a justiça’, diz advogado

O ex-governador de SP, Geraldo Alckmim (à direita), e o ex-secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho | Foto: Guilherme Lara Campos/Governo de SP

O Massacre da Castelinho, ação que resultou em 12 homicídios de integrantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), em março de 2002, deve ter um novo marco com uma decisão judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Além de questionar a impunidade de mais de 50 policiais e dois detentos envolvidos na operação, a decisão do tribunal representa a possibilidade de o Brasil debater a responsabilização do Estado em crimes cometidos pelo Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (Gradi), da PM paulista, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

Em 28 de maio deste ano a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) levou o caso à Corte IDH. O órgão considerou em seu Relatório de Mérito que o Estado brasileiro é responsável pela violação do direito à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O massacre começou a ser analisado pela CIDH em 2007.

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A Comissão também recomendou, entre outras coisas, que o Estado repare integralmente as violações de direitos humanos cometidas contra as famílias tanto em seu aspecto material como imaterial. “O Estado deverá adotar as medidas de compensação econômica e satisfação”, diz o texto.

A CIDH criticou a investigação, dizendo que “o Estado não confirmou a realização de certas diligências essenciais para o esclarecimento dos fatos, conforme os parâmetros interamericanos e seguindo o Protocolo de Minnesota”, o que tornou a responsabilização penal impossibilitada. A Comissão concluiu que o Estado não conduziu uma investigação adequada à luz dos parâmetros do devido processo, nem esclareceu os fatos dentro de um prazo razoável, tampouco reparou os familiares das vítimas que tiveram sua integridade prejudicada, segundo o órgão.

O massacre ocorrido em 2002 foi planejado e executado pelo Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (Gradi), da Polícia Militar de São Paulo, e instruiu dois presos cooptados a enganarem o PCC sobre a existência de um avião com dinheiro que chegaria ao aeroporto de Sorocaba. 

Operação Castelinho será julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Imagem da sede da Organização dos Estados Americanos | Foto: OEA

Em 5 de março daquele ano, sem a presença de testemunhas que pudessem questionar a versão oficial, a Polícia Militar cercou com aproximadamente cem policiais uma praça de pedágio da Rodovia José Ermírio de Moraes conhecida como Castelinho. Os policiais dispararam contra o comboio de ex-detentos em um ônibus e duas picapes, justificando o tiroteio como uma resposta a um ato de resistência do grupo. Após as denúncias de irregularidades sobre suas ações, o Gradi foi extinto pela Polícia Militar de São Paulo.

Mais de 700 disparos foram realizados na emboscada, um policial teve lesões leves e morreram José Airton Honorato, José Maia Menezes, Aleksandro de Oliveira Araújo, Djalma Fernandes Andrade de Souza, Fabio Fernandes Andrade de Souza, Gerson Machado da Silva, Jeferson Leandro Andrade, José Cícero Pereira dos Santos, Laercio Antonio Luis, Luciano da Silva Barbosa, Sandro Rogerio da Silva e Silvio Bernardino do Carmo.  

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Sandra Carvalho, pesquisadora e coordenadora da ONG Justiça Global que atuou junto à entidade acionando o Ministério Público do Estado de São Paulo e denunciando o caso à Relatoria sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais da ONU entre os anos de 2002 e 2003, avalia que apesar das inúmeras evidências de irregularidades, não houve a devida investigação neste caso. “Apesar da montagem de fardas e utilização ilegal de pessoas privadas de liberdade, a chacina do Castelinho e muitos outros crimes cometidos pelo Gradi não foram devidamente investigados e julgados pela justiça brasileira”.

A chegada da Operação Castelinho na corte representa para ela uma grande oportunidade para que o Estado brasileiro seja responsabilizado por esse crime e até outros. “Uma oportunidade ímpar para se debater a responsabilização de agentes do Estado quando há a impossibilidade da individualização do crime, que ao longo de muitos anos vem garantindo a impunidade de policiais e seus superiores hierárquicos. A decisão recente do Superior Tribunal de Justiça em relação ao Massacre do Carandiru também representa um passo nesse sentido”.

Sandra se refere ao restabelecimento das condenações de 74 policiais pelo STJ no início de junho deste ano. A decisão contestou a anulação de sentenças dos militares pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) em 2016. O Massacre do Carandiru ocorreu em 2 de outubro de 1992 e resultou na morte de 111 detentos durante uma ação feita pela Polícia Militar durante uma rebelião na extinta Casa de Detenção Provisória do Carandiru. As sentenças dos policiais somam mais de 600 anos de prisão, envolvendo homicídios qualificados tentados e consumados.

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Em relação à Operação Castelinho, a pesquisadora explica que o Gradi era ligado ao Secretário de Segurança e tinha como objetivo investigar e prevenir crimes de intolerância de qualquer espécie, como racial, de gênero, religiosa e esportiva, por exemplo, e era composto por policiais militares e civis. “Ocorre que a partir de 2002 o Gradi passou a ser alvo de muitas denúncias que tinham no cerne o exercício de atividades investigativas com práticas de flagrante ilegalidade: a utilização de pessoas privadas de liberdade como informantes e a sua infiltração em organizações criminosas”, conta. 

Naquela época, detentos foram retirados de presídios e utilizados em operações policiais à revelia da legislação vigente, diz Sandra. “No relatório ‘Execuções Sumárias no Brasil’ publicado pela Justiça Global em 2003, o Gradi é apresentado como um grupo de extermínio instituído dentro da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo”. 

Advogado e representante da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, a organização que remeteu o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Danilo Chammas, 43 anos, considera que a chegada desse caso na Corte IDH pode trazer novas respostas da justiça brasileira. “O fato de o caso ter sido avaliado por um órgão internacional de direitos humanos e de, agora, ser submetido a um Tribunal Internacional é algo relevante pela esperança de trazer finalmente a justiça, a punição para os responsáveis e a reparação para os familiares das vítimas fatais”, diz.

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A possibilidade de provocar mudanças legislativas e em políticas públicas para que casos como esses não sigam se repetindo também estão no horizonte. “Para que o Brasil supere definitivamente os resquícios de autoritarismo, violência, racismo e escravidão que permanecem em nossa sociedade e que, segundo estudiosos, norteiam algumas ações de justiça e de segurança pública até hoje”, imagina Chammas.

Histórico de denúncias 

A Operação Castelinho foi um marco na história da polícia e do judiciário paulistas e provocou uma série de reações e denúncias das instituições de defesa dos direitos humanos que começaram logo após o episódio, explica Chammas. “Em meados de 2002, poucos meses depois do ocorrido, as organizações Centro Santo Dias de Direitos Humanos, Comissão Teotônio Vilela, Associação de Juízes para a Democracia, OAB-SP e os juristas Dalmo Dallari, Fábio Comparato, José Carlos Dias e Hélio Bicudo encaminharam um dossiê ao então Procurador Geral de Justiça de SP, o Dr. Luiz Antonio Guimarães Marrey, denunciando o recrutamento ilegal de presos pelo Gradi da polícia de São Paulo e as ações consideradas como criminosas disso decorrentes”.

O advogado afirma que o dossiê foi baseado em testemunhos de presos recrutados pelo Gradi, entre outras evidências. Ele denunciou que a chamada Operação Castelinho teria sido na verdade uma cilada planejada para restabelecer a credibilidade da polícia paulista em ano eleitoral. “E em uma época em que ocorrências de grande repercussão como o sequestro da filha do apresentador Silvio Santos e a fuga de um prisioneiro de helicóptero, ocorridos em sequência, estavam rebaixando o prestígio dos agentes públicos de segurança e consequentemente do governo do estado perante a opinião pública”.

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Percebendo que as investigações por parte das instituições brasileiras não avançavam a tempo, a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, organização internacional presidida por Hélio Bicudo, remeteu em 2003 a petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Requeremos a instauração de um processo internacional para apurar a responsabilidade do Estado brasileiro por violação a uma série de dispositivos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, que o Estado brasileiro tinha se obrigado a cumprir”, lembra Chammas.

A Comissão publicou em 2007 o relatório de admissibilidade em que considerou que o processo deveria avançar para a etapa de mérito após uma primeira etapa de tramitação, que incluiu uma audiência presencial na sede da Comissão em 2006 na cidade de Washington DC, nos Estados Unidos. 

Impunidade

O Procurador Geral de Justiça na época, Luiz Antônio Marrey, requereu ao TJ-SP a abertura de uma investigação sobre o envolvimento do Secretário de Segurança Pública, Saulo Abreu Filho, mas a denúncia foi arquivada em novembro de 2014, o juiz Hélio Villaça Furukawa, da 2ª Vara Criminal de Itu, assim como as acusações contra o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que ocupava o cargo em 2002. 

Os dois presidiários responsáveis por repassar informações sobre os 12 membros do PCC aos PMs, Gilmar Leite Siqueira e Marcos Massari, foram absolvidos sumariamente pela decisão.

Marrey também solicitou uma investigação dos juízes de Direito, Otávio Augusto Machado de Barros Filho e Maurício Lemos Porto Alves, que teriam autorizado a transferência de prisioneiros para se infiltrarem, mas nenhuma prosseguiu. 

Também denunciado pelo Ministério Público Estadual como participante das 12 mortes, o coronel Rui César Melo, então comandante-geral da PM durante a Operação Castelinho, teve a denúncia rejeitada pela 1ª Vara Criminal de Itu. A Promotoria recorreu, mas o Tribunal de Justiça não alterou a decisão. 

Uma ação penal por homicídio e outros crimes foi instaurada a pedido do Ministério Público na comarca de Itu contra os 53 policiais militares e alguns civis. Foi requerida “mais de uma vez a federalização do caso, com base no incidente de deslocamento de competência”, indica o advogado.

Nesse sentido, Chammas avalia que a falta de respostas por parte das instituições responsáveis pelas investigações e pelo julgamento dos implicados na Operação Castelinho e nas ações do Gradi “completaram o cenário de violações de direitos que levaram às recentes decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de reconhecer, no mérito, a responsabilidade do Estado brasileiro por diversas violações de direitos humanos, de emitir recomendações e, em seguida, por submeter o caso à Corte”.

O procurador de Justiça Alfonso Presti, que ofertou a denúncia há quase 20 anos, avalia que a importância do caso ter chegado à Corte IDH é vital. “Sobretudo no controle de como a jurisdição é exercida principalmente do Estado em todas as ações. O que se aprendeu no caso do Castelinho, seguramente será usado agora no caso de Jacarezinho e em outros tantos quando por ventura vierem a ocorrer”, diz. 

O procurador de Justiça analisa que a violência provocada por agentes do Estado, principalmente em crimes de morte, acabam provocando o ato de improbidade administrativa. “Acredito que diante da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que inclusive pede a punição dos agentes públicos não levando em conta a questão de prescrição e sim levando em conta que estamos diante de crimes imprescritíveis e contra a humanidade, acredito que o Ministério Público deva levar esse fato a conhecimento das promotorias de direitos humanos e promotoria de patrimônio social que cuidam respectivamente das questões de improbidades administrativas congeladas”. 

Presti ainda aponta que é necessário mais controle sobre as forças de segurança. “ Infelizmente ainda há uma necessidade de um controle social da polícia, além do próprio controle do Ministério Público, que hoje trabalha em parceria com diversas ONGs de direitos humanos que atuam principalmente com as populações mais vulneráveis. Hoje o Ministério Público avança no sentido de ter um controle mais preciso das atuações policiais”. 

Outro lado

Por nota, o TJ-SP afirmou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”, e também negou o pedido de entrevista com o juiz Hélio Villaça Furukawa, alegando que “os magistrados não podem se manifestar, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura”.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) não se manifestou sobre o caso.

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