Para Daniel Hirata, da UFF, programa Cidade Integrada, de Cláudio Castro (PL), corre risco de passar de vitrine a vidraça
Com a morte de oito pessoas na Vila Cruzeiro, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, na manhã desta sexta-feira (11/2), em mais uma operação policial, o programa Cidade Integrada, concebido pelo governador do estado Cláudio Castro (PL), volta a ser questionado quanto a sua efetividade. Os assassinatos de hoje seriam ainda uma consequência da ação ocorrida no mês passado na favela do Jacarezinho.
Segundo a informação das forças de segurança do Rio de Janeiro, traficantes da comunidade teriam fugido para a Vila Cruzeiro. Mesmo ocupada, a comunidade do Jacarezinho foi palco de mais uma morte na quinta-feira (10/2). De acordo com a Polícia Civil, João Carlos Sordeiro Lourenço, de 23 anos, morto na ação policial, teria assassinado o policial civil André Leonardo de Mello Frias, em maio do ano passado.
Para Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF), o programa instuído pelo governador pode passar de uma vitrine para suas pretensões eleitorais para um grande fracasso que terá consequência inesperadas para o Rio de Janeiro. O professor também afirma que a alta letalidade das forças de segurança do estado não são uma preocupação da atual gestão.
Ponte – Como você vê essas ocupações de favela colocadas como política pública no Rio de Janeiro?
Daniel Hirata – Não tem nada de política pública nessas ações. É uma máquina de matar colocada em marcha. É isso que se trata ali. Ou seja, não me parece que seja aceitável que uma operação como hoje, que mata oito pessoas, possa ser justificada do ponto de vista de políticas públicas. Se observou como uma justificativa, que é escandalosa, que essa operação teria relações com a mesma operação que terminou como a mais letal da história do Rio de Janeiro, no dia 6 de maio [de 2021] no Jacarezinho. Os policiais estariam atrás dos mesmos traficantes e depois de a gente ter aquela chacina com 28 mortos, temos mais mais oito. Junto com a morte de ontem no Jacarezinho, o lugar ocupado pelas forças policiais, [que] parece que também tinha a ver com essa mesma ação. Então é só fazer as contas. São 28 do ano passado, mais 8 de hoje e uma ontem. São 37 mortos, o que é um absurdo. 37 mortes para conseguir prender uma pessoa.
Ponte – Como explicar essas operações, dentro do programa Cidade Integrada, sendo utilizadas como plataforma de campanha pelo governador Cláudio Castro visando as eleições deste ano?
Daniel Hirata – O programa Cidade Integrada foi concebido para ser a grande vitrine do governo do estado nessa área de segurança pública durante esse ano que é um ano eleitoral. Digo isso porque não me parece que o Cidade Integrada tem uma proposta que se assenta em um diagnóstico. Nós não tivemos acesso até agora a muitas informações sobre o programa. Não temos efetivamente um projeto. Temos um Power Point e um decreto. Não há um diagnóstico, metas, objetivos claros e também métricas de avaliação e acompanhamento. Portanto, não me parece ser uma política pública. Me parece que é mais uma estratégia comunicacional do governador usando essas duas vitrines que seriam o Jacarezinho e a Muzemba. Eu acho que começaram a virar vidraça a partir de hoje e de ontem. Não é possível que um lugar ocupado por forças policiais tenha uma morte da maneira como foi. É um escândalo. Então corre o risco dessa vitrine virar vidraça.
Ponte – Qual a sua avaliação do Cidade Integrada até o momento?
Daniel Hirata – O Cidade Integrada aponta para algumas ações que são importantes e que tanto a universidade quanto os movimentos sociais e as organizações de direitos humanos já vinham apontando como sendo realmente centrais de serem realizadas. Obras de habitação, saneamento e uma série de ações que realmente são necessárias nesses lugares. Eu questiono sobre a necessidade de uma ocupação para que isso seja feito. Primeiro por conta da viabilidade e segundo é isso ser feito num período de oito meses. Restam ainda dez meses do mandato do governador Cláudio Castro. Não sei se há viabilidade do ponto de vista financeiro, de execução e de parâmetros dessas ações. No que diz respeito à sua efetividade, nada disso está muito claro até agora. Então a gente fica um pouco no escuro porque o que aparece é na verdade alguma coisa que não não tem parâmetro para a gente conseguir pensar sobre. O governador acha que é uma vantagem dizer que ele primeiro vai atuar em dois territórios para depois expandir o programa. É um contrassenso tudo isso. Estamos realmente diante de ações que claramente tem um apelo que não é vinculado ao desenho de políticas públicas.
Ponte – Chama a atenção a alta letalidade dessas ações. O que explica esse grande número de mortes em cada ocupação das forças de segurança do Rio de Janeiro?
Daniel Hirata – A letalidade policial não é um assunto que interessa ao governo do Estado do Rio de Janeiro. Ao menos esses foram os sinais que nós pudemos observar nesses anos em que o Cláudio Castro assumiu o governo do estado depois de Wilson Witzel (PSC), que também não tinha na letalidade policial uma questão importante. Veja, o Cláudio Castro apresentou no final de 2020 um decreto que seria um plano de segurança pública em que não é analisada a letalidade policial, no programa Cidade Integrada também não é. Não consta, nos parcos documentos do programa, nenhuma menção à questão da letalidade policial. Agora, por via de decisão judicial do Supremo Tribunal Federal (STF), o governador está sendo obrigado a elaborar um plano de redução da letalidade policial que é uma demanda histórica do Rio de Janeiro. Cabe lembrar aqui que isso já consta na condenação vexatória do estado do Rio de Janeiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Crte IDH) referente ao caso da chacina da favela Nova Holanda. Isso foi reiterado durante a ação civil pública da Maré. A necessidade de um plano de redução da letalidade policial, que durante audiência de supervisão do cumprimento da condenação no estado do Rio de Janeiro pela Corte Interamericana o ano passado, voltou a esse tema, exigindo que o governo do estado apresentasse esse plano. O Supremo Tribunal Federal determinou a elaboração de um plano no prazo de até 90 dias.
Ou seja, todas essas instâncias judiciais já deliberaram sobre a importância de realizar o plano de redução da letalidade policial. Todos os números indicam que o Rio de Janeiro historicamente tem um problema de letalidade policial maior que outros estados e sempre apresenta os números mais impressionantes de letalidade policial do Brasil e do mundo. É evidente que a unidade policial é o principal problema público do estado do Rio de Janeiro e o governador se abstém em todas as suas ações de tratar dessa questão. A única conclusão que a gente pode chegar é que isso não é considerado importante, não é considerado assunto pelo governo do estado do Rio de Janeiro, apesar da relevância que esse tema tem.
Ponte – Além da letalidade, essas ações levam a uma série de abusos por parte do polícias, como foi noticiado nesta semana que agentes do estado apareceram roubando objetos dentro de uma residência. Há uma falta de acompanhamento do poder público em relação ao atos das polícia nessas operações?
Daniel Hirata – A brutalidade policial tem diversas causas e diversos efeitos que amplificam ela. Há que se ter pactuado no Rio de Janeiro como é que o uso da força vai ser regulado. Essa pactuação sobre o uso da força se inicia no estabelecimento de protocolos para a atividade policial. Para o caso das operações policiais, que são as circunstâncias maiores da letalidade policial, os protocolos só foram estabelecidos em 2016 e depois houve uma reformulação em 2018 sob determinação judicial. É sobre essa determinação judicial que se formou um grupo de trabalho que criou os protocolos da Polícia Civil e da Polícia Militar para essas operações que, se não são perfeitas, são bastante razoáveis dado que os princípios orientadores são protocolos internacionais. Pois bem, um segundo passo importante para além dos protocolos é a execução desses protocolos, ou seja, que esses protocolos sejam postos em prática. A forma como as operações policiais são otimizadas no Rio de Janeiro foge aos próprios protocolos que as forças policiais elaboraram em 2016 e 2018.
As operações policiais deveriam ser em sua maioria restritas a situações emergenciais ou planejadas e não são. Via de regra elas não são realizadas nem em situações emergenciais, nem de forma planejada. Elas são feitas de forma absolutamente arbitrária. Um terceiro movimento importante seria o controle interno e externo de adequação das ações a esses protocolos. E aí nós temos uma omissão bastante grande tanto da corregedoria. Houve uma experiência da Coordenadoria Geral que foi abolida e vinha apresentando resultados e o controle externo da atividade policial que é atribuição do Ministério Público também tem deixado historicamente muito a desejar. Diante desse cenário, não é possível que você tenha realmente um uso pactuado da força e resultados pouco condizentes com o estado democrático de direito pelas forças policiais do Rio de Janeiro.
Ponte – Como ficam os moradores destas comunidades que estão recebendo essas ações com frequência?
Daniel Hirata – É muito ruim essa reiteração. São de diversos governos, e não só do governador Cláudio Castro, essa reiteração da necessidade da ocupação para que as coisas aconteçam. Há muitos serviços ali dentro do Jacarezinho, da Muzema e de vários outros lugares no Rio de Janeiro que poderiam ser reforçados sem a necessidade da ocupação. Aliás, há um problema grande no que diz respeito, por exemplo, à questão imobiliária. Não é exatamente a ausência do poder estatal, mas é o tipo de presença que o Estado estabelece nesses lugares muitas vezes atuando em conluio ou tolerando, com relações diretamente estabelecidas, com os grupos armados, particularmente as milícias. Todos esses enunciados de uma ausência de Estado nesses lugares é altamente questionável. Nós teríamos que pensar sobre qual o tipo de presença que o Estado estabelece nesses lugares. Quais são as relações que o Estado estabelece com territórios e populações. E um pouco por aí que eu acho que a gente poderia avançar para conseguir não só levar esses benefícios essas melhorias para esses lugares, como também fazer o enfrentamento do que há de pior no Rio de Janeiro, que são os grupos armados. São as relações promíscuas com o Estado, pensando aqui particularmente no caso das milícias.
Ponte – As milícias se fortalecem ou se enfraquecem com essas ações?
Daniel Hirata – Alguma coisa interessante tem que ser observada do ponto de vista que a gente vai entender como são realizadas essas ocupações em áreas de milícia e de tráfico. No caso da Muzemba, o que nos tem sido relatado pelas pessoas que estão ali é que a ocupação é muito mais tranquila. Não há maiores enfrentamentos e as relações ali têm se estabelecido de forma completamente diferente do que, por exemplo, o que a gente recebe de relatos no Jacarezinho, onde há uma escalada do tensionamento das relações das forças policiais com o local. No Jacarezinho já temos um bom número de denúncias de invasão de domicílios, de agressões, de humilhações e agora temos mais uma morte. Enquanto na Muzema tudo isso se passa de outra maneira. Cabe observar e estar muito atento ao que significam as mediações em cada um desses lugares na relação do Estado com as populações dos territórios e sobretudo com os grupos armados presentes nesses lugares. Isso tem sido feito nessas primeiras semanas de vigência do projeto de maneira bastante diferente porque a relação que o Estado tem também é bastante diferente para cada um desses grupos armados.
Ponte – É possível comparar o Cidade Integrada com as instalações das UPPs em governos passados?
Daniel Hirata – É normal que se faça comparações. O programa que está agora em vigência me parece que é um programa que tem algumas algumas particularidades, dentre elas o fato de você ter o número bastante reduzido de lugares ocupados, desses lugares não terem sido escolhidos por características que remetem à letalidade policial ou aos homicídios. Nós fizemos esse levantamento e mostramos que tanto a Muzema quanto o Jacarezinho não são os lugares mais problemáticos do ponto de vista nem da quantidade de homicídios, nem da quantidade de mortes por intervenção do Estado. É um programa de tiro curto, com menos de um ano de prazo de validade. Claro, se o governador Cláudio Castro for reeleito talvez isso continue. Não há muito essa certeza, mas talvez continue, não dentro do prazo do seu mandato. É um projeto de 10 meses que não se sabe qual vai ser o resultado efetivo. Se é possível fazer uma comparação com as UPPs, ela tem que ser balizada por essa por essa diferença também. As UPPs tinham algum nível de planejamento de sustentabilidade de objetivos. Aqui me parece que estamos num outro cenário.
Ponte – Você acha que a opinião pública se mostra favorável ao Cidade Integrada?
Daniel Hirata – Acho que há uma indignação. Somente por parte daqueles que realmente têm total desprezo à vida não é chocante o que acontece em dias como hoje. De maneira geral, me parece que a população do Rio de Janeiro não vê com bons olhos quando acontece uma chacina como esta. Chacinas são realmente recorrentes no estado do Rio de Janeiro. Elas não podem mais ser pensadas como situações excepcionais ou fora do curso. São rotina aqui no estado do Rio de Janeiro, mas cada vez que isso acontece há claramente dentro e fora das comunidades um sentimento de forte indignação. E é por isso que há uma desconfiança generalizada sobre as forças policiais no Rio de Janeiro. Não me parece que as polícias são as instituições públicas que gozam de maior prestígio junto à população do Rio de Janeiro.
Ponte – Então essas ações seriam um tiro no pé para as intenções eleitorais do governador Cláudio Castro?
Daniel Hirata – É o que eu estava dizendo. Me parece que a vitrine virou vidraça, porque ele imaginou que reduzindo o escopo da política para dois territórios e atuando sobre algumas das demandas que já vinham sendo feitas ou pelo menos atuando pro-forma ele conseguiria ter um apelo comunicacional importante. Mas como o governador Cláudio Castro não tem o controle e nem o comando das polícias, não tem o controle sobre o que acontece na ponta, a todo momento nós temos recorrentemente esse tipo de situação acontecendo que vai minando por dentro o próprio programa e transformando portanto em vidraça. Vai transformando o que poderia ser lugares vistos como repaginados e como uma espécie de exemplo do que o governo poderia fazer para os lugares em um contraexemplo. Você tem um território como Jacarezinho que está ocupando e ocorre uma morte dessas. Tem um monte de policiais ali que estão circulando na região e você não consegue evitar esse tipo de desfecho. Isso mostra claramente a fragilidade do controle do governador sobre as forças policiais e da inviabilidade prática de execução dessa política.