“Camada mais pobre e mais vulnerável da população fica com pior segurança pública quando candidatos lei-e-ordem vencem”, explica pesquisador Lucas Novaes
Um estudo do Instituto de Pesquisa Avançada em Toulouse, na França, liga o aumento de homicídios com a eleição de policiais para ocuparem o cargo de vereador em municípios brasileiros. Lucas Novaes, cientista político brasileiro responsável pela pesquisa, detalha à Ponte como a falta de propostas concretas abre margem para personagens “lei e ordem” entrarem na política. Os resultados são inversos aos esperados.
Em “The Violence of Law and Order Politics: The Case of Law Enforcement Candidates in Brazil” [“A Violência da Política de Lei e Ordem: O Caso dos Candidatos das Forças de Segurança no Brasil”], o pesquisador analisou 6.193 candidaturas nas eleições municipais brasileiras entre 2000 e 2016. Usou como base para o levantamento candidatos que trouxeram no nome as suas patentes e cargos nas forças de segurança, como tenente, delegado ou soldado. “Misturar política e segurança pública pode ser desastroso”, avalia. “A eleição desses candidatos não significa ter bons resultados na área de segurança pública.”
De acordo com levantamento feito pelo portal G1, as eleições municipais de 2020 apresentam o maior número de candidatos militares em 16 anos, com 6,7 mil buscando vagas nas câmaras ou prefeituras. São 3.575 policiais militares, 1.735 militares reformados, 919 policiais civis, 344 originários das Forças Armadas e 182 bombeiros.
A avaliação de Lucas Novaes é de que existe a relação direta da vitória dos candidatos policiais com mais investimentos em segurança, mas os resultados são desiguais. Enquanto ocorre queda branda de roubos em áreas específicas, há o aumento dos homicídios para quem é pobre, preto e periférico.
Ponte – De onde surgiu a ideia para fazer o estudo direcionado para os políticos policiais?
Lucas Novaes – A maioria dos estudos que relacionavam política e violência estava inserido em um contexto onde o Estado interagia com com grandes cartéis ou organizações de tráfico internacionais. Porém, o que se observa é que, no Brasil, fora das grandes metrópoles e em um momento também longe da influência das facções, a taxa de violência era condizente com a do México, por exemplo. Eu queria entender o porquê desses altos índices. Obviamente, não busco dar uma explicação geral, mas tento descobrir aspectos que ainda não estão explorados e que estejam relacionados à política.
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Ponte – Como definiu o método para analisar os impactos da eleição de candidatos policiais?
Lucas – O método que utilizo (regressão descontínua) é uma maneira de tentar estimar efeitos causais em dados não-experimentais. A ideia é que o método consegue comparar unidades tratadas, no meu caso municípios que elegem um vereador lei-e-ordem, com unidades controle, que são os municípios que tiveram um desses candidatos concorrendo, mas que no final das contas não elegeram um. O método tem limitações, mas propicia uma mensuração bastante crível desse “tratamento”.
Ponte – O que mais te chamou atenção no resultado? Era o que imaginava?
Lucas – A experiência internacional mostra que misturar política e segurança pública pode ser desastroso, mas na maioria das vezes esse desastre tem uma relação com grandes rotas internacionais de tráfico. Por esse motivo eu era um pouco agnóstico a respeito do potencial resultado. Ao final, a magnitude do efeito me surpreendeu, sim.
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Ponte – O estudo aponta que 66% da população brasileira vive em cidades com ao menos um candidato com origem nas forças policiais desde 2000, tendo ou não sido eleito. O que isso demonstra na prática?
Lucas – Mostra que a pauta de segurança é uma questão relevante eleitoralmente, mas como, por diversos motivos, não está inserida nos programas dos principais partidos, a pauta é atendida por candidatos das Forças Armadas e das polícias. A facilidade que esses candidatos têm para transmitir seu compromisso com a segurança os deixa em vantagem para mobilizar eleitores. Entretanto, o que eu mostro na pesquisa é que a eleição desses candidatos não significa bons resultados na área de segurança pública.
Ponte – É possível apontar alguma correlação entre a eleição de policiais e o aumento de homicídios? Como isso ocorre?
Lucas – Os resultados que encontro é que há sim um efeito causal entre a eleição desses candidatos e homicídios. Agora, é importante ressaltar que o mecanismo que opera esse efeito não é fácil de decifrar. Há toda uma evidência histórica de violência policial e todo um arcabouço institucional que permite a impunidade de desvios de policiais. Porém, não é isso que está gerando os homicídios nos municípios que eu analiso. Embora os dados de mortes ocorridas durante confronto com policiais sejam incompletos, não consigo ver nenhum aumento desse tipo de morte nos municípios com candidato lei-e-ordem. Também não há um aumento de mortes de policiais. Ou seja, não parece que há aumento de confrontos entre agentes do Estado e civis.
Ponte – Como exatamente os candidatos e políticos policiais interferem no debate da segurança e trazem mais violência em vez de maior proteção à população?
Lucas – O que eu encontro é que candidatos lei-e-ordem, especificamente policiais, podem utilizar o acesso e ligações informais junto à corporação policial para privilegiar os seus eleitores. Porém, os recursos policiais nos municípios são, de certa maneira, fixos, já que as estratégias de policiamento são decididas no nível estadual, e todos os especialistas e policiais com quem conversei foram categóricos ao ressaltar que um político local dificilmente conseguiria influenciar essa estratégia. Isso significa que, se o policial-político não pode trazer recursos, somente consegue realocar, tirando patrulhas, policiais, câmeras, etc. de um ponto da cidade que não votou nele para um ponto que tenha votado nele. Esse remanejamento de recursos fere a boa prática de segurança pública, pois não atende princípios de redução de crimes e violência, mas, sim, segue uma lógica eleitoral.
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Ponte – Os dados mostram queda moderada nos crimes contra o patrimônio, enquanto têm a explosão de homicídios. É o retrato de uma política de segurança focada nos bens e não na vida?
Lucas – Acho que aqui o debate é importante, mas com a minha pesquisa eu não consigo trazer uma boa resposta. O que eu consigo observar é que quem mais vota em candidatos lei-e-ordem não é quem mais é atingido pela violência, e sim um eleitorado de renda mediana. E também não quero invalidar a sensação de insegurança desse grupo. Porém, ao menos sobre a política de lei-e-ordem, me parece que a preocupação é aplacar a sensação de insegurança desse grupo, que em geral é uma insegurança material.
Ponte – O estudo traz que os homicídios mais do que dobram em cidades com políticos da área de segurança. É possível definir por que isso ocorre?
Lucas – É difícil observar o porquê pois os dados de recursos policiais são escassos. Utilizando os dados georreferenciados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo é [possível observar] que há um favorecimento do eleitorado lei-e-ordem quando um vereador policial vence as eleições. Especificamente, eu tento ver como crimes e violência variam perto de locais de votações. Separando os locais de acordo com o apoio a esses candidatos, eu consigo observar uma correlação entre votos e redução de crime e violência. Inversamente, vejo também que os locais que não apoiam os candidatos lei-e-ordem observam um aumento no crime e violência. Como quem vota nesses candidatos está em um nível médio/alto de renda, esse favorecimento indica que a camada mais pobre, e mais vulnerável, fica com pior segurança pública quando esses candidatos vencem.
Ponte – Sua pesquisa ainda constata que há um gasto maior com segurança em cidades com esses vereadores, ainda que o resultado seja crescimento de homicídios em vez de diminuição. O que gera essa causa e efeito, aparentemente em lados opostos do que deveria?
Lucas – O aumento dos gastos é inferior a 10% de todo o gasto com segurança pública per capita. É um valor relativamente pequeno. Eu interpreto que esse aumento de gastos em segurança pública nos municípios é um sinal de que esses candidatos lei-e-ordem não só prometem, mas de fato tentam agir na área de segurança pública.
Ponte – quantidade de homicídios por 100 mil habitantes cresceu nessas cidades e as principais vítimas são não-brancos, da periferia e pobres. O mesmo perfil é o de vítimas das polícias brasileiras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Você vê correlação entre as mortes de policiais nas ruas com as mortes em cidades com policiais na política?
Lucas – Não identifico nenhum aumento de mortes causadas por policiais ou mortes de policiais. Tudo indica que o aumento da violência que encontro não é diretamente causado pela atuação da polícia. Pelo contrário, é um aumento causado pela má alocação de policiais.
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Ponte – Você acha que existir a atuação de políticos policiais pode ser um reflexo daquilo definido recentemente por filósofos, como Achille Mbembe, como necropolítica?
Lucas – Confesso que não tenho treinamento para analisar o fenômeno que observo sob a ótica do Mbembe. O que eu vejo é que até dois anos atrás o número de homicídios no país vinha aumentando. Porém, entre mulheres e entre homens brancos o número de homicídios se manteve estável nos últimos 10-15 anos. Todo o aumento da violência pode ser explicado pelo aumento de mortes entre homens pretos e pardos. Aqui, de novo, há um limite que a pesquisa pode mostrar, já que o sistema do Datasus não captura a renda da vítima de homicídio, somente a cor da pele. Assim, esse diferencial entre homens muito provavelmente é reflexo da desigualdade de renda entre os grupos. Ou seja, o aumento da violência é o aumento da violência entre homens de baixa renda. Isso é curioso, porque eu não vejo o candidato lei-e-ordem indo atrás do voto do grupo que está mais vulnerável. E, apesar de mais jovens pretos e pardos morrerem, isso não gera um movimento contrário forte. Isto porque, do ponto de vista político, o grupo de homens jovens, pretos e pardos é talvez aquele com menos voz na política.
Ponte – Você cita que as novas democracias dão às pessoas a capacidade de escolher governantes, mas, ao mesmo tempo, não preenchem uma lacuna de representação. A eleição de políticos policiais dá a ideia de que, para se estar em um lugar mais seguro, você deixa de lado alguns direitos, como o direito à vida da população jovem, negra e periférica?
Lucas – Em análises comparativas entre diversos países, essa relação entre política mano-dura e cerceamento de direitos é bastante comum. No Brasil, e na minha pesquisa, acho prematuro determinar que o eleitor do candidato lei-e-ordem faz essa troca. O que tenho convicção é que a falta de representação efetiva dessa camada populacional mais vulnerável é, sim, danosa para a democracia e, na área de segurança pública, essa falta de representatividade significará um pior serviço justamente para o grupo mais vulnerável à violência.
Ponte – É possível traçar um paralelo com os resultados do seu estudo com o que veremos nas eleições municipais de 2020?
Lucas – Sim. Se o aumento de policiais eleitos aumentar em proporção similar ao aumento no número de candidatos, veremos uma segurança pública mais pautada pela lógica eleitoral do que por aspectos técnicos. Isso pode parecer contraintuitivo, já que considerações eleitorais podem significar uma maior preocupação com as preferências dos eleitores. Mas, como argumentei, se as preferências de parte da população, justo aquela que precisa de maior atenção, são ignoradas, teremos um pior resultado de política pública.
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Ponte – Os resultados municipais traduzem de alguma forma o que vemos em estados e no país como um todo?
Lucas – Essa lógica eleitoral na segurança pública pode estar latente em outras esferas, mas, por exemplo, como o prefeito precisa de uma maioria para se eleger dificilmente ele conseguiria sucesso eleitoral somente atendendo os anseios do eleitor lei-e-ordem. Logo, ele teria menos incentivos para redirecionar esforços do policiamento local.
Ponte – Até onde a onda bolsonarista interfere nas eleições de políticos policiais e nos resultados de mais homicídios?
Lucas – Não tenho como responder através da minha pesquisa. Especulo que o bolsonarismo deixou a pauta lei-e-ordem mais saliente.
Ponte – Há uma leva de policiais intitulados antifascismo. Estas candidaturas podem gerar resultados diferentes quando comparados aos das outras figuras já estudadas?
Lucas – Com certeza. Os resultados que encontro só aparecem para um grupo específico de candidatos: policiais que fizeram campanha lei-e-ordem (aqueles que identificaram sua profissão através do nome de urna). Policiais que se candidataram sem explicitar a plataforma de lei-e-ordem não causaram mais mortes. Logo, a eleição de policiais que não têm a intenção, nem a obrigação eleitoral, de trazer mudanças em segurança para o seu eleitorado não geram mais mortes.
Ponte – Como começou sua trajetória no ramo das pesquisas e quais temáticas costuma abordar?
Lucas – Eu fiz meu mestrado em economia, mas durante minha dissertação percebi que a política era a área que mais me interessava. Então procurei fazer um doutorado em ciência política, indo para a UC Berkeley [faculdade na Califórnia, nos Estados Unidos]. Durante o doutorado eu me interessei mais na área de representação política, principalmente tentando entender como a mobilização política é efetuada em países onde os partidos são fracos, mas modalidades políticas não-programáticas – como o clientelismo – são a norma. Além disso, tenho projetos com diversos coautores para tentar entender o efeito da mídia na política (especificamente olhando o debate realizado entre Lula e Collor, na eleição presidencial brasileira em 1989), como políticos alinhados com a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) têm uma vantagem organizacional por poder contar com a organização da igreja.
Ponte – Pretende se aprofundar no tema com alguma outra pesquisa ligada aos policiais na política?
Lucas – Sim, tenho um projeto que tenta estimar o efeito de greves policiais em homicídios no curto prazo.
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