Espancamentos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia são tão comuns que provocaram aborto em uma detenta, segundo testemunhas. Relatório da OAB-GO confirmou as agressões. Recém-nomeado, diretor-geral já foi denunciado por se gabar de torturar presos
As duas primeiras semanas de Simone (nome fictício para evitar represálias) dentro da Ala A do Bloco 3 da Casa de Prisão Provisória (CPP) do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia foram as piores da sua vida. Presa em 11 de abril de 2021, acusada de tráfico de drogas, ela relatou à Ponte ter passado diariamente por espancamentos, torturas e pelos mais diferentes tipos de humilhação.
Três dias depois chegou em sua cela Luciana (nome fictício). Vinda de outro estado, ela trazia consigo uma acusação de roubo e uma gravidez de quatro meses quando entrou na penitenciária. Com atendimento médico negligenciado e tomando surras constantes de policiais penais durante seus primeiros dias no CPP, a mulher de 24 anos perdeu seu bebê, segundo o relato de seus familiares e de ex-parceira de cela, ouvida pela Ponte.
As histórias de Simone e Luciana exemplificam o que foi constatado no relatório feito por uma força-tarefa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) da Seção Goiás que esteve na prisão.
Em uma inspeção feita no dia 21 de dezembro de 2021 na Penitenciária Coronel Odenir Guimarãe e na Casa de Prisão Provisória (CPP) do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia-GO, as duas maiores penitenciárias do estado, o que se viu foram instalações sem a mínima estrutura para abrigar pessoas, profissionais com transtornos psicológicos por conta da exaustão e stress no trabalho e inúmeros relatos dos encarcerados sobre maus tratos e tortura por partes dos agentes do estado.
No comando das unidades prisionais está Josimar Pires Nicolau do Nascimento, diretor-geral de Administração Penitenciária do estado de Goiás. Pesa sobre ele acusações de ordenar espancamentos e sessões de torutura contra presos que estão sob sua responsabilidade. Reportagem de Yago Sales no El País Brasil, em março deste ano, revelou o conteúdo de uma reunião onde Nascimento revela já ter pisado na cara de presos e recomendava que seus subordinados fizessem o mesmo. “Vocês acham que eu fiz o que lá no Pátio 2? Pisei. Pisei, pisei. Dei murro na cara e peguei 95 celulares. Se eu tivesse beijado a boca deles, eles não tinham entregado, ou tinham?”, afirma Josimar, segundo uma das gravações.
Na época, a Diretoria Geral de Administração Penitenciária informou que tinha instaurado procedimento administrativo disciplinar para apurar o caso. Josimar Pires Nicolau do Nascimento nunca foi afastado das suas funções e permanece à frente do órgão até o momento.
As denúncias não impediram que Josimar fosse escolhido, no inícido deste mês, pelo governo de Ronaldo Caiado (DEM) para assumir a direção das unidades prisionais de Goiás no lugar do diretor anterior, o policial militar Frans Augusto Marlus Rassmussen Rodrigues, que foi exonerado após denúncias corrupção em uma licitação para a alimentação do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Josimar foi o primeiro policial penal selecionado para a função.
“Um dia o diretor foi lá na ala feminina depois de uma dia que as presas começaram a se manifestar batendo xícaras contra as grades. Ele disse que por ele não haveria mulheres no complexo porque nem dá para bater nelas, porque não aguentam apanhar”, revela Simone.
O inferno
Assim que chegaram no CPP, por conta da pandemia de Covid-19 Simone e Luciana passaram duas semanas em um centro de triagem, para só depois de duas semanas se juntarem às outras mulheres que cumprem pena no complexo de Aparecida de Goiás. Desde o primeiro minuto no local, o clima para as duas detentas foi de completo terror.
“Os primeiros quinze dias foram os piores. Nem a polícia, nem meu pai e minha mãe me bateram tanto durante toda a minha vida quanto o que eu apanhei naqueles dias. Com a Luciana foi pior. Ela estava grávida e sangrando. A gente chamava os policiais penais para falar o que estava acontecendo com ela e eles não davam o mínimo de atenção. Por ela não ser de Goiás, eles diziam que ela estava armando aquilo tudo para querer fugir”, relembra Simone.
“Um dia ela passou muito mal e eles foram obrigados a fazer uma saída médica com ela ou ela iria morrer nas nossas mãos. Um policial levou ela e no meio do caminho ele parou a viatura e mandou ela descer e correr. Ela se recusou a fazer isso porque ela teve medo de ser morta e a justificativa ser que ela tinha fugido. Nisso, ela apanhou muito. Só no rosto. Ela perdeu o bebê por conta disso. Além de apanhar muito, ela se recusava a fazer saídas médicas depois desse episódio”, conta Simone.
A mãe de Luciana não vê a filha desde abril, quando ela foi para Goiás afirmando que iria trabalhar. Até receber a ligação de um advogado afirmando que a filha estava presa e que cobraria R$ 100 mil para tirá-la da cadeia. “Foi aí que ele me disse que minha filha estava apanhando. Desde então que eu vivo desesperada atrás de informações sobre a minha filha”, conta.
“Bateram muito nela até que ela perdesse o bebê. Ela estava com quatro meses de gravidez. Tinham que ter levado ela para o hospital, ter feito uma curetagem. Era para cuidar dela. Não fizeram isso. Que lugar é esse, meu Deus?”, desabafou aos prantos, por telefone, a mãe de Luciana.
Atualmente ela conta com dois advogados na causa da filha, um no estado onde ela mora e outro em Goiás para obter informações sobre filha, mesmo assim ela afirma que até hoje nunca teve um contato direto com Luciana, e o pouco que sabe deve a Simone, que está cumprindo sua pena em liberdade provisória, e repassa o que acontece no presídio para ela.
“Eu mandei várias cartas para a minha filha, mas eu soube que ela nunca recebeu. As visitas presenciais estão suspensas por conta do Covid-19 e ela não tem autorização para fazer chamadas de vídeo conosco.”
O relatório feito pela OAB-GO revela que os únicos presos que estão tendo algum tipo de contato com os parentes dentro de todo o complexo prisional de Aparecida de Goiânia são os que estão localizados em uma área denominada de “Módulo de Respeito”, onde estariam presos que trabalham e tem bom comportamento, segundo a avaliação da direção do complexo.
“O ‘módulo de respeito’ possui refeitório e dormitório, onde os presos que trabalham na indústria ficam alojados. Trabalham na indústria e dormem no módulo de respeito 171 presos. Estes recebem salário e remição de pena pelo trabalho. Os presos do ‘módulo de respeito’ têm direito à comunicação com familiares semanalmente, via videoconferência”, informa o documento.
Diferente desse ambiente, a ala feminina é uma das piores dentro do complexo, de acordo com quem passou um semestre inteiro deste ano lá dentro. “O almoço chega às 10h e fica exposto ao sol até o meio dia. Só depois disso é servido e todos os dias algumas marmitas ficam azedas. Muitas vezes tínhamos que dividir a comida com as colegas para que ninguém precisasse comer comida podre”, lembra Simone.
Outro problema encontrado pelos presos goianos é em relação aos seus pertences pessoais. Todos precisam usar apenas roupas amarelas e o sistema prisional oferece apenas um jogo de calça e camisa. Todos os outros utensílios devem ser fornecidos pelos parentes em um kit denominado “cobal”. Porém para entregar esse material, os familiares precisam retirar uma senha, que segundo o relatório da OAB-GO, não é suficiente para todos.
“É uma situação degradante. Tem preso que só tem uma roupa e, quando esta fica suja e precisa lavar, ele tem que permanecer nu durante o tempo que fica esperando ela secar”, revela Edemundo Dias de Oliveira Filho, coordenador da Força Tarefa do Sistema Prisional da OAB-GO e ex-diretor-geral da administração penitenciária de Goiás.
Problema de gestão
Edemundo conhece como poucos as penitenciárias goianas. Foram 30 anos do ex-delegado da Polícia Civil no serviço público. Duas décadas dedicadas ao sistema prisional. Ele foi um dos responsáveis pela implementação da polícia penal no estado de Goiás, substituindo os antigos agentes penitenciários e dando uma formação específica ao cargo, além do acesso através de concurso público.
“Eu trago no corpo o cheiro de cadeia”, diz o ex-policial que agora está “do outro lado do balcão” como ele mesmo diz sobre fiscalizar as condições dos locais que anos atrás foi administrado por ele.
Para ele, a precariedade das instalações prisionais e a truculência no tratamento com os presos no estado são reflexos de uma política de governo fadada ao insucesso, mas que ganha respaldo da sociedade pelo discurso beligerante. “A gente quer mostrar para o Brasil essa mazela que é o sistema prisional e o Goiás hoje é paradigmático nessa excrescência e insistência do poder público de continuar transformando o sistema prisional em justiçamento, em palmatória do Estado, que é ao mesmo tempo repressor e infrator”, diz.
Evitando citar nominalmente os gestores das prisões de Goiás, Edemundo reconhece que as denúncias feitas por presos aumentaram consideravelmente nos últimos três anos. Um dos motivos, segundo ele, é a falta de atitude dos órgãos de controle no estado que não fiscalizam e monitoram o trabalhos dos servidores públicos como deveriam. “Há um certa inércia das próprias instituições que são encarregadas de exercer esse controle”, afirma.
Em entrevista à Ponte em outubro deste ano, a coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, Petra Pfaller, já falava dessa omissão por parte dos órgãos do estado de Goiás sobre as denúncias de torturas nas prisões do estado.
“Em todas as denúncias, a Pastoral encaminha e oficia à Defensoria Pública de Goiás, que encaminha para os órgãos da execução penal responsável. Raramente recebemos uma resposta. Se chega uma, é vaga e com promessa que será feita a devida apuração. Não temos conhecimento de um destes casos que denunciamos ter resultado na responsabilização de um servidor público”, afirmou a ativista.
As vozes de dentro da cadeia
Tendo trabalhado e formado muitos dos servidores que trabalahm nas penitenciárias goianas, Edemundo tem um olhar especial sobre quem está no dia dia das cadeias. De acordo com o agora membro da OAB, é preciso um trabalho específico com quem está tão próximo às grades.
“Os policiais penais são ao mesmo tempo vítimas e algozes desse sistema. Quem guarda o guarda? O que a gente vê são pessoas que somatizam o que existe de pior na humanidade. Eles têm que entender que o ambiente carcerário precisa ser ressocializador. Esses servidores precisam ter um acompanhamento psicológico de perto”, sugere.
Durante a inspeção feita no dia 21, os policiais penais foram os primeiros a serem ouvidos pelos membros da OAB. Logo depois o grupo deu papel e caneta para que os presos pudessem pôr no papel suas queixas em relação às suas condições dentro da prisão, evitando que os responsáveis da unidade tivessem acesso aos depoimentos dos encarcerados, evitando assim futuras retaliações.
O ex-diretor geral de administração penitenciária de Goiás admite que pode ter cometido erros na sua gestão e por isso tem como missão o trabalho que faz hoje na OAB-GO para tentar dar melhores condições para as pessoas que se encontram dentro do sistema penitenciário.
“Eu me sinto responsável. Por isso eu tenho insistido tanto nessas inspeções. Nem todos que trabalham ali dentro têm essa visão distorcida. Os que têm obedecem uma política que vem do andar de cima e isso não prejudica só o sistema prisional, mas o sistema de segurança pública como um todo”, diz.
O que diz o governo
A reportagem mandou um e-mail, na quarta-feira (29/12), pedindo esclarecimentos para a Diretoria-Geral de Administração Penitenciária do Estado de Goiás sobre as denúncias de violência nos presídios do estado. Na manhã desta quinta feira (30), a responsável pela comunicação da pasta, Alessandra Rodrigues Oliveira, entrou em contato com a reportagem afirmando que enviaria as respostas até as 15h. A reportagem fez novo contato às 16h25, mas até o momento não obteve reposta.