Como será o amanhã? Personalidades negras sonham um futuro para os movimentos negros no Brasil

    No Dia da Consciência Negra a Ponte perguntou para os mais diversos ativistas, artistas, militantes, cientistas negros do país sobre os seus desejos para o porvir

    Mais um Dia da Consciência Negra chega. E com ele, cenas de morte chocando qualquer um que tenha o mínimo empatia pelo próximo. Em uma rede social, o supremacismo branco se encarrega de subir a hashtag #TodasAsVidasImportam. 

    É impossível conter a revolta ou minimizar a importância da data – e mais que isso, é preciso avançar com as pautas e com a luta, e não girar em falso, ainda no mesmo buraco do racismo estrutural e cotidiano de um país onde a população negra segue sendo desproporcionalmente morta, encarcerada, barrada de ter os direitos mais básicos.

    É por isso que o Dia da Consciência Negra não pode ser só um dia de luto pelo passado escravocrata ou do presente racista – é preciso falar de futuro, da esperança de que um dia as injustiças sejam reparadas e só façam parte do nosso nefasto passado. Foi com esse espírito que a Ponte, na última semana, antes do horrendo assassinato de João Alberto, perguntou a diversas personalidades negras do país: “qual é o futuro que você deseja para o movimento negro no Brasil?” – as respostas, mais diversas possíveis, você lê abaixo:

    Andreza Delgado, cocriadora da Perifacon

    O futuro que eu quero para movimento negro é que ele seja mais colorido e mais LGBT <3

    Dexter, rapper

    Penso e desejo que, no futuro, o movimento negro no Brasil continue desenvolvendo seu extraordinário trabalho de conscientização, propagando conhecimento e a partir dai, criando auto estima em nossos irmãos e irmãs em todo e qualquer canto do Brasil. Homens e mulheres pret@s precisam conhecer sua história, sentir orgulho de si mesmos e engrossar o caldo da revolução. Revolução essa que inclusive pode ser individual. Quando você está bem consigo mesmo, de cabeça feita, dificilmente você será alvo de um controle remoto. Um viva a todo e qualquer tipo de movimento negro!!! Sigamos…

    Beatriz Sanz, repórter de UOL ECOA 

    Os negros estavam organizados desde que foram sequestrados na África e trazidos para o Brasil. Essa organização continuou e continua por entre os séculos, apesar de toda opressão sofrida por essa população. Quilombo de Quariterê, Palmares, Revolta dos Malês, MNU são apenas algumas das expressões de toda essa organização. A luta resultou em vitórias. Desde a Lei Eusébio de Queiroz até a Lei de Cotas. Ainda assim, o país não reconhece as contribuições que a população negra e os militantes que sempre levantaram a bandeira do antirracismo fizeram ao longo dos séculos. E é por isso que os movimentos negros continuarão entregar uma juventude combativa sempre pautada no respeito à ancestralidade e aos caminhos que foram abertos pelos que vieram antes de nós. Mas e o Brasil? O que os movimentos negros brasileiros podem esperar deste país?

    Jonathan Vicente, biomédico patologista 

    O movimento negro está se fortalecendo cada vez mais, o fato de o movimento existir é pra mostrar que existimos e resistimos cada vez mais contra o racismo presente no nosso dia-a-dia, e com todo meu coração eu vejo esse movimento ser cada vez mais lindo e gigante combatendo todas as injustiças raciais e sociais. Levantar a pauta da discussão racial é importante diante de tantos assassinatos de negros ao longo do tempo, o movimento é forte e combatente para que no futuro o racismo não seja algo frequente.

    Leci Brandão, deputada estadual em São Paulo e cantora

    O que eu desejo real para o movimento negro é que ele tenha condições de conscientizar a população negra a colocar nos espaços de poder aquelas pessoas que realmente representam os interesses, as demandas e as angústias que o povo negro tem no Brasil. E que a gente tenha sempre a noção de quanto mais ampliar, quanto mais juntar as forças do movimento negro, mais a gente terá chances de sair vitorioso. 

    Pedro Borges, fundador do Alma Preta

    O futuro, futuro, futuro, futuro muito distante…que é um futuro que nem eu nem você vamos ver é que não exista movimento negro, que não precise existir. A gente quer viver em um mundo em que não precise ter movimento de mulheres, de negros, movimento LGBTQIA+, que não precise existe movimento de moradia, de saúde. A gente quer viver um momento em que as pessoas possam ser o que elas são, que elas possam ter uma liberdade de verdade e não uma liberdade de mercado, a liberdade de escolher entre uma Coca Cola e uma Pepsi. Mas uma liberdade de poder se cuidar, de poder ter acesso a saúde. Isso é liberdade. Então, o futuro que eu quero para o movimento negro num longo, longuissimo prazo é esse. A gente precisa, num futuro próximo, de um movimento negro que seja muito forte, que tenha base, que seja realmente capaz de pautar a agenda nacional como a gente fez nesse 2020. A gente precisa fazer isso rotina e potencializar ainda mais. A gente quer que as nossas meninas e os nossos meninos cresçam com a possibilidade de se amar, de gostar de quem são, de ter a possibilidade de se identificar, de se desenvolver longe das amarras, e sobretudo, se amando. 

    Renata Souza, deputada estadual no Rio de Janeiro

    O futuro preto é hoje. O movimento negro não tem tempo para o amanhã, já que historicamente o povo preto é a principal vítima da violência política, econômica e social no Brasil. Não é natural amargarmos os índices absurdos de feminicídio e homicídio, de encarceramento, da violência obstétrica, dos trabalhos e salários subumanos. Não é natural termos uma vida inteira de medo. Por isso, o levante preto passa por ocuparmos os espaços de poder e de decisão. Somos nós os únicos capazes de protagonizarmos a superação das desigualdades estruturais. Isso é uma questão de vida ou de morte. Erguer a cabeça, a voz e o punho significa desnaturalizar a desumanização da nossa existência. Pretas e pretos,  chegou a nossa hora. Não podemos deixar que negociem as nossas vidas. O futuro é agora.

    Tati Nefertari, coordenadora da Biblioteca Comunitária Assata Shakur

    Pensar o futuro me remete a fazer o movimento de Sankofa, de resgate. Acredito que nossos mais velhos trilharam caminhos e fizeram suas brilhantes contribuições, por isso ao pensar um futuro que eu queira pro movimento negro no país, desejo que haja um resgate da proposta de Quilombismo de Abdias do Nascimento, que propõe um projeto político para o Brasil, baseado nas experiências dos quilombos e que visa promover uma sociedade igualitária, anticapitalista e antirracista. Então o futuro que quero pro movimento negro no Brasil, é um em que  a gente possa estar tocando esse projeto, e isso inclui, por exemplo, estar à frente dos processos educativos – com as escolas, alinhadas com as leis já existentes como a 10.639/2003  e 11.645/2008, que o movimento negro esteja controlando e cuidando dos nossos bairros majoritáriamentes negros, da área da saúde, com o fortalecimento do SUS. Que as nossas lutas considerem também as experiências revolucionárias, como as do Partido dos Panteras Pretas, atualizando para a dinâmica da sociedade que vivemos aqui, mas entendendo que as propostas deles ainda são atuais, como a criação de um movimento de massas em que o povo preto participe ativamente para transformar radicalmente a sociedade, organizando os bairros negros, construindo um programa de sobrevivência, construindo meios para educar o povo com escola, além da luta contra a violência policial e contra o encarceramento do povo preto. Enfim, que futuramente o movimento negro tenha tido avanços significativos para além do campo da denúncia e cobrança, que tenha poder.

    Rosane Borges, coordenadora do curso Da escrita de textos à escrita da vida

    Olha se a gente for falar em futuro, o futuro que eu quero para o movimento negro, gostaria que, no futuro, não existisse movimento negro. Parece contraditório, né? Não querer o movimento é também pensar o fim do racismo. Mas como eu acho difícil isso acontecer no futuro próximo. Eu gostaria – não só para o movimento negro, mas para a população negra brasileira no mundo – um lugar que ela pudesse se reconhecida como humana, gente, pessoa que não fosse destituida, violada, segregada, morta por razão da sua cor. Infelizmente, a gente não tem isso no presente. Se fosse possível, no futuro, que não tivesse movimento negro, mas ele terá por que o racismo não vai acabar tão cedo. Que o movimento negro possa ser visto como agente capaz de pensar a emancipação, a revolução necessária para que as sociedades possam ser vistas como emancipadas e civilizatórias. Portanto, eu penso num reconhecimento e um respeito desta instituição que vem sozinha e que desmontou o mito da democracia racial e apresentou um projeto político para que nós nos tornemos efetivamente uma nação decente, desenvolvida, civilizada e minimamente emancipada. 

    Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

    O movimento negro que desejo é um espaço privilegiado de discussão e discordância, longe das ameaças de aniquilação do discordante. É um espaço interseccional no qual mulheres, LGBTQI+, deficientes, pobres e jovens possam sobrepor perspectivas e experiências de negritude muito distintas. Em que essas distinções sejam consideradas enriquecedoras, nunca divisivas. Em que superemos a noção economicista de que as lutas culturais por transformações nas hierarquias sociais de valores são perda de tempo, mas em que as lutas por redistribuição de recursos econômicos não estejam nunca fora de foco. Com os olhos voltados pro passado e valores que sejam um futuro transformado, o movimento negro que eu desejo tem pressa de mudança, o pragmatismo, o internacionalismo, os aliados e a potência necessários para fazer com que os resultados da agenda de conquistas negras não esteja deslocada às gerações de um futuro distante. É, sobretudo, um movimento de esperança e mudança pro agora.

    Flávia Oliveira, jornalista, colunista do jornal O Globo e da rádio CBN, comentarista da Globonews

    O futuro das organizações do movimento negro passa por militância, hoje e sempre, vigilância e acolhimento. Militância, por óbvio. Vigilância porque a gente precisa estar muito atenta e articulada contra tentativas de retrocesso, que são muitas. Há algumas ameaças objetivas de retrocesso, por exemplo, o fim das políticas de ação afirmativa. Mas têm retrocessos contidos no debate orçamentário, de cortes de investimentos em saúde e educação, que impactam fortemente a população negra; na regulamentação e portarias que envolvem aborto legal, ensino a distância, obrigatoriedade ou não da vacinação contra a Covid-19. Tudo isso alcança principalmente a população negra. O acolhimento é eixo fundamental no debate sobre segurança pública, homicídios de jovens, violência doméstica. É preciso fazer pressão para acessar essas instâncias, esses espaços de cuidado, de abrigo, de preservação da saúde mental. São dimensões importantes que nem sempre estiveram incorporadas à agenda do movimento negro. Isso ganha cada vez mais importância agora. Por último, incluo o cuidado com segurança digital e segurança física das pessoas negras, homens e mulheres, que chegaram a cargos de representação política. Estou falando objetivamente das eleições de 2020, em que vimos um aumento da presença de pessoas negras nas câmaras municipais. São esses corpos que estarão mais visíveis, mais em evidência, e vão precisar ser protegidos da violência política, da misoginia e do racismo que segue presente nas instituições do Estado brasileiro.

    Debora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio

    Primeiramente, queremos que o movimento negro tenha unidade com humildade. As divisões, muitas vezes ocorridas pelo ego, acabam fragilizando muito a luta antirracista. Vemos nossos filhos sendo executados, mas a luta pela existência não aparece como uma pauta principal. A vida é em primeiro lugar, é o fermento do bolo. Queremos o movimento ocupando espaço de poder na transformação e que não seja passageiro. Que avance na luta nas ruas, que é o poder do povo. Não é só nas urnas, é nas ruas, nas bases. Não podemos esquecer nosso povo jamais. Quando falamos do genocídio, ele vem de várias formas. Temos que pensar a polícia além da desmilitarização. Eles tentam nos fazer de escravos, mas não somos, por mais que eles queiram. Temos direito de pensar, de livre arbítrio, de lutar e conquistar a democracia. O movimento negro, espero, que avance cada vez mais, junto das Mães de Maio. Que olhe mais para as mães para a gente parir uma nova sociedade sem racismo estrutural. Precisamos que o movimento negro avance na classe, não apenas na raça. É triste ver a situação do nosso país. Depois do genocídio, as mães são abandonadas. Pedimos para colocar a mãe no centro das lutas. As Mães lutam pelo futuro do Brasil, pela juventude. As Mães são um levante para muitas pessoas. E que não esqueçam os filhos delas, que são exterminados a cada 23 minutos. É inaceitável que o Brasil não pare com a morte de um negro brasileiro, mas vá às ruas pela morte de um negro americano. Não temos essa mobilização midiática. Temos que sair dessa luta midiática e partir para a luta de fronteiras, de estar no front e dizer: “Estamos juntos”.

    Zilda de Paula, Mães de Osasco

    As eleições falaram tudo: o movimento negro foi a maioria que pegou as cadeiras. Têm que parar de nós chamar de “os primeiros negros”. O primeiro a fazer isso, o primeiro a fazer aquilo. A igualdade está chegando, a luta está ganhando. Quero do futuro do Brasil que seja um país de primeira porque ele é um país de primeiro mundo. Quero que o racismo acabe de vez, que as pessoas se conscientizassem que o negro é gente e que tenhamos o mesmo valor. Seja uma empregada doméstica, doutora, uma faxineira… Essas profissões não têm raça, não têm cor. Quero um país que crie aqui dentro, não copie de fora, que confie nos brasileiros e que perdêssemos menos pessoas para o exterior para o país crescer. E justiça para todos, que ela enxergue, seja um negro ou um branco. 

    Afro-X, rapper, escritor e educador social

    O futuro começa hoje através de um coletivo consciente, tanto do negro, quanto do branco. Conquistamos muito, mais ainda falta muito. Um futuro brilhante nos espera, a partir do momento que estejamos em movimento. Nunca se esqueça que o racismo existe e não podemos nos calar, faça valer seus direitos. Lembre-se sempre que o conhecimento, a educação, a informação, a história dos afros-descendentes e a valorização das raízes,  empoderam o povo. Acredite, tenha fé, esperança e nunca deixe de sonhar. É isso que me mantém vivo

    Preto Zezé, presidente da CUFA

    Esse novembro negro é um dos novembros mais importantes da minha vida em  44 anos como um homem preto brasileiro. Primeiro individualmente, tô muito feliz, muito contente pelas conquistas pessoais, pela referência, pela ocupação do espaço, principalmente pelo reconhecimento da luta que a gente têm feito até aqui. Do ponto de vista coletivo, eu fico muito feliz por essa escola da CUFA ter me melhorado, me aperfeiçoado, ter me cooptado, ter me mostrado esse mundo de potência que antes a gente só via como carência, tristeza e tragédia. E do ponto de vista político, a importância desse 20 de novembro que a gente está vendo agora é a ocupação de todos os espaços, é a ruptura do negro somente como coisas ruins, negativas, e a afirmação da ocupação de uma agenda pública negra, de maioria, rumo ao poder, porque o poder foi feito para a maioria. Então, população negra, esse 20 de novembro, seja um evento que faça da nossa luta, das nossas conquistas, uma atividade permanente. 

    Rute Fiuza, Mães de Maio

    Que o Brasil seja antirracista, tenha mais cotas, igualdade social e que possamos ocupar espaços políticos, público, acadêmicos.

    Paula Rodrigues, repórter de UOL ECOA

    Quando fecho os olhos para imaginar o futuro que eu desejo para os movimentos negros, só consigo ver celebração. É um futuro em que a gente possa cada vez mais celebrar nossas conquistas, celebrar os frutos de tanta luta que não nasceu hoje. A imagem que vem a cabeça é a gente celebrando nossas vidas e as vidas de quem a gente ama em paz. Tendo a oportunidade de viver uma vida leve, sem ter que pensar a todo momento quem será o próximo que vão matar ou deixar morrer. Chega a ser utópico, eu sei. É por isso que também desejo que a sociedade brasileira como um todo esteja de olhos e ouvidos abertos para nos enxergar e nos escutar. Para essa sociedade eu desejo que ela preste atenção em negros e negras com a mesma intensidade que faz com pessoas brancas. Cansa demais precisar estar sempre em alerta para apontar que não estamos em certos espaços ou que certas discussões não nos contemplam. Quando pessoas brancas vão conseguir identificar e se incomodar com nossas ausências sem que a gente cobre por isso? É isso que eu quero ver no futuro. Então, resumindo: nos meus sonhos mais loucos, eu só vejo pessoas negras fazendo o que quiserem fazer. Inclusive descansar em uma rede na Bahia sem que haja necessidade de lutar o tempo todo.

    Lívia Sant’Anna Vaz, Promotora de Justiça MP-BA, professora de direito da UFBA

    Desejo um futuro de concretização de suas lutas por efetiva igualdade racial no Brasil!

    Silvia Souza, advogada

    As conquistas dos movimentos negros e da luta antirracista no Brasil chegaram num ponto que não tem mais volta. Porque essas conquistas estão além da ordem social e política, estão no nível da ampliação de consciência racial que tende a alcançar de forma ainda mais ampliada as novas gerações. Os adolescentes e jovens negros possuem um autorreconhecimento de sua negritude que nos anos 1090, 2000 era bem menor (época em que fui adolescente). Acredito que o futuro dos movimentos negros e, portanto, da nossa luta é preparar pessoas e estratégias para ocupar cada vez mais lugares nas institucionalidades. Por exemplo: na política, no poder judiciário, no executivo, etc. As eleições de 2020 estão sendo um grande exemplo disso. Muitas pessoas negras (cis e trans) foram eleitas e é um prenúncio de transformação dos desses espaços.

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