Condenação de jovem que teve testa tatuada é retrato de ‘tragédia social’

    De vítima a culpado: Ruan Rocha da Silva foi condenado a 4 anos de prisão por roubo; para especialistas, sentença tem falhas e pena é desproporcional

    Ruan em entrevista à Ponte em março do ano passado na clínica de reabilitação onde passava por tratamento | Foto: Maria Vitória Ramos

    Ruan Rocha da Silva, 19 anos, que ficou conhecido quando teve a testa tatuada à força com a frase “Eu sou ladrão e vacilão”, foi condenado, nesta terça-feira (10/9), a 4 anos e 8 meses de prisão em regime semiaberto por tentar furtar um aparelho celular, R$ 20,30 e uma blusa de moletom. A decisão (leia decisão aqui na íntegra) foi da juíza Sandra Regina Nostre Marques, da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo.

    A sessão de tortura pela qual Ruan foi submetido em 2017 foi gravada por celular e o vídeo compartilhado. A alegação dos agressores, o tatuador Maycon Wesley Carvalho dos Reis e o pedreiro Ronildo Moreira de Araújo, foi que o garoto tinha tentando roubar a bicicleta de um rapaz com deficiência. Ambos foram julgados e condenados em fevereiro do ano passado a 3 anos e 4 meses e 3 anos e 11 meses de prisão por lesão corporal e constrangimento ilegal. Ruan, que passou de vítima para culpado, teve a pena de 4 anos e 8 meses, portanto, maior do que a dos seus agressores.

    Em março do ano passado, Ruan, que passava por tratamento para remoção da tatuagem e desintoxicação, recebeu a Ponte na clínica de reabilitação e contou que estava trabalhando e pretendia estudar. “Aquele Ruan lá atrás não era eu, era totalmente uma pessoa desorientada, sem norte, sem futuro. Hoje eu vejo que o Ruan de verdade é esse, que quer uma vida nova”, disse, à época. Pouco tempo depois disso, teve ao menos duas recaídas e acabou preso.

    Ruan exibe a testa ainda marcada mesmo depois de quase um ano de sessões de remoção | Foto: divulgação

    O caso pelo qual Ruan foi condenado aconteceu na madrugada de 14 de fevereiro deste ano, depois que o jovem entrou na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Jardim Silvina, na Avenida Doutor José Fornari, bairro Ferrazópolis, e furtou os pertences de duas auxiliares de limpeza. Os objetos estavam em um quartinho restrito a funcionários, onde Ruan entrou sem ser notado pela segurança.

    Em sua defesa, o jovem afirmou que entrou no hospital para se esconder da chuva, que estava sob efeito de drogas e por isso praticou o delito. Ele nega que tenha agredido ou ameaçado uma das funcionárias. Na ocasião, em depoimento, uma das vítimas relatou que houve luta corporal assim que ela chegou no ambiente em que o jovem estava e que foram separados pela chegada de um vigilante da unidade.

    Mesmo condenado em regime semiaberto, o que lhe daria direito a trabalhar durante o dia e voltar para a unidade prisional no período noturno, a juíza decidiu mantê-lo preso no superlotado CDP (Centro de Detenção Provisória) Pinheiros II, por considerar o rapaz “um risco à sociedade”, levando em consideração apreensões quando era menor e um caso que responde por furto de desodorantes, em 2018, em Mairiporã, onde passava por tratamento para remoção da tatuagem e reabilitação.

    Em sua decisão, Sandra não acatou nem mesmo o pedido do Ministério Público de desclassificação de roubo impróprio (quando depois de subtraído algo, há emprego de violência contra pessoa ou grave ameaça), ou seja, que a Justiça considerasse apenas o crime de furto.

    Para o advogado criminalista e presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Hugo Leonardo, o caso como um todo pode ser definido como uma tragédia social. “Infelizmente é comum e impõe uma pena desproporcional ao fato praticado. É um dependente químico, que muito provavelmente não tinha condições de definir seus atos. É uma sentença recorrente que criminaliza a pobreza”, pondera.

    O especialista apontou pelo menos duas falhas no processo: a primeira diz respeito a condenação por roubo, um crime que, na avaliação dele, não aconteceu. “Considerar empurrão roubo é uma atecnia [não técnico]. Não se trata do tipo de violência para roubo. Esse crime não poderia ser considerado roubo jamais”, afirma.

    A segunda se refere à peça de acusação. Para ele, a promotoria deveria ter considerado “furto tentado” e não “furto”. “Ele foi preso no local com as coisas subtraídas, sem que pudesse ter tomado posse dos objetos. Se o Ministério Público pede a desclassificação [de roubo para furto], para a juíza não cabe outra opção. Ela não pode agir de ofício e manter a punição por crime mais grave”, criticou.

    André Lozano Andrade, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e Coordenador do Laboratório de Ciências Criminais do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), tem avaliação que vai na mesma direção. Ele afirma que a magistrada se excedeu ao condenar o réu por um crime mais grave do que o requerido pelo MP.

    “Pelo sistema acusatório, o acusador e o julgador são independentes, cabendo ao julgador analisar o pedido da acusação e da defesa. No momento em que o MP pede a condenação por um crime menor, o juiz não pode condenar por um crime mais grave, pois estará agindo de forma mais dura do que a própria acusação”, criticou. Lozano, no entanto, lembra que tal situação é legalmente aceita “porque temos um código penal e um código de processo penal que foram concebidos na ditadura getulista, então eles têm um viés autoritário. Mas em um Estado democrático esse tipo de conduta é inaceitável, pois o papel da acusação e do juiz passam a se confundir”, afirmou.

    Lozano destaca que a juíza fundamentou a decisão unicamente no depoimento da vítima, embora tivesse a confissão do réu. “Uma vez que o depoimento da vítima, de uma testemunha e do próprio acusado vão no mesmo sentido, não há motivo para esse tipo de fundamentação”, apontou.

    Sendo assim, a magistrada entendeu que Ruan ameaçou e atacou uma das vítimas, o que, para Lozano, é questionável. “A ‘tentativa’ ocorre quando o autor do crime é impedido de continuar por algum fator externo, que pode ser a chegada de policiais, seguranças e até mesmo a vítima. A chegada da vítima e a luta corporal não são capazes de transformar um furto em roubo, isso só poderia ocorrer se houvesse a consumação do crime. Aí sim poderíamos falar em roubo impróprio”, avalia.

    Outro ponto criticado por especialistas ouvidos pela Ponte é a manutenção da prisão em regime fechado. Segundo Cristiano Avila Maronna, advogado e Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a prisão parece ilegal e abusiva, na medida em que o próprio MP pediu a desclassificação para furto tentado”. Ou seja, o MP, na acusação, considerou que Ruan deveria responder por furto e não roubo. “O argumento usado na sentença para manter o réu em regime fechado, mesmo tendo sido condenado a cumprir pena no semiaberto, ou seja, a possibilidade de o MP recorrer para pedir o agravamento da sanção, não faz sentido”, explicou Maronna.

    ‘Foi feita a vontade de Deus’

    Vania Rocha, mãe de Ruan, está resignada. Acompanhou e comemorou a condenação dos agressores do seu filho. “O que eles fizeram com meu filho foi horrível. Hoje foi com o Ruan, amanhã pode ser com outra pessoa. Eles fizeram ameaça, humilharam, amarraram com enforca gato. Mas me sinto reparada, sim, estou aliviada e acho que a justiça foi feita”, disse, na época, à Ponte.

    Vânia esteve na clínica em que Ruan ficou internado fazendo tratamento para remoção da tatuagem e para largar a dependência química quando ele completou 18 anos. O jovem ganhou o tratamento do dono de uma clínica de reabilitação localizada em Mairiporã, que se comoveu com a sua história. Vânia estava contente. Ruan também. Mas as recaídas o fizeram “rodar” e ele acabou no CDP de Pinheiros.

    Desempregada, Vânia vem sofrendo diversas dificuldades para sustentar os irmãos mais novos de Ruan e sequer conseguiu assistir ao julgamento do filho por falta de dinheiro para o transporte.

    À reportagem, com grande simplicidade, ela afirmou que foi “feita a vontade de Deus”. Mulher de muita fé, Vânia queria Ruan recuperado. Mas nem passa pela sua cabeça, que se antes o jovem enfrentou recaídas que impediram sua plena recuperação, agora, no centro de detenção, esse sonho ficará cada dia mais distante. “Eu falava para Deus todos os dias, que se for para ele sair de lá do mesmo jeito é melhor ele ficar mais um pouco lá, que Deus trabalha na cabeça dele. Então eu vou reclamar do que sei que pedi para Deus”, concluiu.

    Vania não sabe as condições da cela em que seu filho se encontra no CDP Pinheiros II, um dos mais superlotados da capital, local em que, segundo a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), em contagem na última segunda-feira, 1.666 homens ocupavam o espaço destinado para 793.

    Também procurada, a assessoria de imprensa da Clínica Grand House, local em que Ruan recebeu tratamento contra a dependência química e para a remoção da tatuagem, afirmou que todos os esforços foram feitos pelo garoto, inclusive com o pagamento de fiança e de assistência jurídica quando do furto dos tubos de desodorante no ano passado.

    Procurada, a Defensoria Pública informou que entrou com recurso da decisão. No pedido, o defensor Daniel Bidoia Donade pede a absolvição de Ruan ou o enquadramento em tentativa de furto, não em roubo, crime de maior potencial pelo qual foi condenado. O Ministério Público também não disse se pretende recorrer da decisão. Já o Tribunal de Justiça encaminhou um texto confirmando data em que ocorreu o julgamento, bem como a condenação e a pena imposta.

    (*) Reportagem atualizada no dia 12/9 às 19h08

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