Cor da blusa e tecido da calça servem de justificativa para barrar visita em prisão da Grande SP

    Agentes penitenciários aproveitam falta de regras claras para barrar visitantes por qualquer motivo; parentes se sentem tão punidos quanto os presos

    Às 8h da manhã, mulheres fazem fila para esperar senha para visitar os parentes presos na P2 de Franco da Rocha | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Pelo menos 50 mulheres foram barradas na entrada da Penitenciária Nilton Silva, a P2 de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, neste domingo (15/3). E a proibição não teve ligação com o coronavírus, embora a pandemia do Covid-19 tenha sido tema recorrente nas conversas da fila, formada em sua maioria por mulheres que visitam filhos, maridos e irmãos dentro da cadeia.

    A situação é rotina no sistema prisional e, geralmente, segundo familiares, o principal motivo é a falta de clareza e as mudanças constantes das regras para entrar no presídio. Na semana passada, mais de 90 foram impedidas de visitar os parentes. Os motivos eram aleatórios, segundo contaram à Ponte: o tecido da calça, a estampa ou tamanho da camiseta, o volume dos potes de comidas e até menstruação.

    A reportagem acompanhou um dia de visita para entender as dificuldades encontradas pelas familiares. O principal motivo alegado neste domingo foi a roupa. Muitas visitantes tiveram que trocar de calça para realizar a visita, de acordo com as comerciantes que trabalham na porta da P2. O tamanho do “jumbo” (alimentos, produtos de uso pessoal, como cigarro, e de higiene) também foi usado como justificativa para impedir a entrada da visita.

    Quem precisava trocar de roupa, tinha que fazer um trajeto de 1,4 km, da porta da P2 até as barracas onde roupas podem ser alugadas, uma caminhada de 19 minutos, para não perder a preciosa chance de passar um tempo com os parentes privados de liberdade.

    Duas mulheres tiveram que trocar a camiseta, que era amarela, por uma peça de outra cor para poder entrar. Dezenas de mães e esposas não puderam entrar com calças que não fossem de tecido moletom — até a semana passada, segundo elas, usar outros tecidos era permitido.

    “Jumbo” de domingo é o mais esperado pelos presos | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    O medo de falar com a reportagem e prejudicar o familiar preso é constante entre elas. Mas depois de alguns minutos, as reclamações e revoltas logo aparecem. “Os meninos estão passando fome lá dentro, estão servindo uma porção de arroz e uma de feijão”, disse outra mãe.

    Apesar das dificuldades de levar o “jumbo” toda semana, as famílias sabem que não é fácil sobreviver lá dentro sem os itens enviados. Mas às vezes elas não conseguem concluir a missão de entrar e levar o pacote.

    “Eu não entrei hoje, porque o meu marido está no castigo, mas eu não sei o motivo”, desabafou à Ponte. “Eles só avisam quando chegamos aqui. Meu marido toma medicação controlada, mas muitas vezes não dão o remédio direito. Uma vez, ele entrou em surto, estou com medo que tenha acontecido de novo”, continuou a esposa de um dos presos da P2.

    A doméstica de 31 anos teve que voltar para casa com tudo que havia levado, já que não pode entrar. “Somos muito humilhadas aqui, eles agem com a gente como se a gente tivesse culpa pelo que os nossos familiares fizeram”.

    A Ponte acompanhou o dia de visita na P2 e verificou que não havia qualquer aviso com relação ao coronavírus e que essa não foi uma questão para barrar visitas. Contudo, familiares afirmam estarem aflitos por causa da doença, especialmente porque, segundo relatos, há racionamento de água na unidade prisional, o que dificulta a higienização, uma das bases de prevenção da doença. Além disso, parentes apontam a dificuldade de atendimento médico especializado dentro da cadeia como preocupante.

    A Secretaria de Administração Penitenciária de SP, em nota, negou que haja falta d’água na P2 de Franco da Rocha. “O fornecimento de água, especialmente em dias de visita, é ininterrupto”, destacou a nota.

    Em carta, divulgada na última sexta-feira (13/3), a Pastoral Carcerária exigiu que presos sejam soltos para evitar uma epidemia do coronavírus no sistema prisional brasileiro.

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    “Se a medicação controlada já demora, imagina se esse vírus entra lá?”, indagou a esposa de um preso. “Eles têm que liberar água, álcool em gel e as máscaras”, pontuou uma mãe.

    O cigarro é um importante item no “jumbo”, por ser uma moeda de troca dentro das cadeias | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    “A gente já tá mais morta do que viva. A gente paga pelo erro dos nossos filhos”, define uma mãe. “Eu acho que tem que parar as visitas sim, para gente não levar esse vírus para eles”, aponta sobre o coronavírus.

    A entrada do GIR (Grupo de Intervenção Rápida), a tropa de choque dos presídios, na semana passada, em que os presos ficaram nus do lado de fora das celas enquanto seus itens eram quebrados ou jogados fora, segundo relatos, ainda revolta as famílias.

    “Eles não têm direito de fazer isso, são coisas que a gente compra, são coisas que saem do nosso dinheiro. Semana passada decidiram entrar um dia depois que os meninos pegaram o dinheiro que enviamos”, protesta uma mãe que visita o filho na P2.

    Placa indicativa das unidades P1 e P2 | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A dificuldade de chegar à P2 também é uma queixa das mulheres. Por falta de transporte público durante o horário de entrada das visitas, das 7h às 13h. Segundo familiares, a linha de ônibus que liga a estação Franco da Rocha ao complexo prisional fica interrompida das 7h40 às 15h40, e não resta outra alternativa a não ser chamar um carro em aplicativo ou tomar um táxi. O valor médio da corrida da estação Franco da Rocha até a porta da P2 é de R$ 30.

    Elas, contudo, não souberam explicar o motivo da interrupção de circulação desse ônibus específico.

    Quem precisa parar nas bancas na entrada, seja para comprar um refrigerante, um pote, alugar uma calça, tem que pagar mais R$ 2 para subir até a P2. Aliás, tudo ali é cobrado. Para usar o banheiro, as mulheres pagam R$ 2, que também é o preço cobrado para esquentar as marmitas que trazem de casa.

    Há mulheres que saem de casa ainda de madrugada, por volta das 3h ou 4h da manhã, para chegar às 6h e pegar uma das primeiras senhas. Assim elas ficam mais tempo com os familiares, já que a visita dura das 8h às 16h, quando não há atrasos na entrada.

    Esse caminho é feito pelo menos dois dias na semana, às quartas, para entregar os “jumbos”, e aos domingos, para as visitas. A queixa mais comum é a pressão psicológica que os agentes penitenciários colocam em cima das familiares, que são usadas, afirmam, para desestabilizar quem está dentro da cadeia.

    Uma familiar contou à Ponte que os presos dos raios 2 e 3 passam o dia todo trancados nas celas há mais de um mês. O pão também foi retirado dos presos e a comida é servida “na mesma quantidade que servem as crianças nas creches”.

    Outro lado

    A reportagem questionou novamente a Secretaria da Administração Penitenciária sobre a repetição dos fatos ocorridos no último dia 8/3, domingo passado, mas até a publicação da reportagem não havia retorno.

    A SAP chegou a enviar uma nota negando as denúncias de que visitas foram barradas na P2 na semana passada e falou em casos pontuais de pessoas que estavam com roupas inadequadas, sem detalhar, contudo, qual seria essa inadequação.

    “As regras para ingresso na penitenciária estão expostas em quadros de aviso instalados no rol de visitas”, destaca a nota.

    A Ponte questionou a prefeitura de Franco da Rocha sobre a interrupção da linha que liga a estação de trem à entrada do presídio, mas até o momento não obteve resposta.

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