De objetos a sujeitos de pesquisa: como alunos trans conseguiram mudar a UFBA

    Grupos da universidade baiana, que conta com 50 alunos trans, conseguiram banheiros próprios e programa de permanência após evento de 2019; nova edição do Desmonte acontece nos dias 29 e 30 de outubro

    Primeira edição do Desmonte revolucionou as coisas na UFBA | Foto: Ian Habib/UFBA

    Para pessoas trans, o universo acadêmico pode ser um desafio diário. Expulsões de banheiro que corresponde a sua identidade de gênero e problemas com o uso do nome social são dois exemplos recorrentes que levam à evasão estudantil de pessoas trans. Essa também era a realidade da Universidade Federal da Bahia. Em 2017, políticas afirmativas de cotas para pessoas trans foram criadas, mas nenhuma outra medida foi tomada para incluir pessoas trans no campus. Até 2019.

    Atualmente, entre graduação e pós-graduação, a universidade tem 50 alunos trans. Para chegar nesse número, muitas pessoas trans desistiram da permanência na universidade por não aguentarem os casos de transfobia. Inúmeros deles levados até a Ouvidoria da UFBA, a maioria vindas da Escola de Dança.

    Depois dessas denúncias, núcleos de pesquisa de gênero se juntaram para impedir a evasão em massa das pessoas trans alunas. Foi nesse momento que o pesquisador Ian Habib, 31 anos, ingressou na UFBA no começo de 2019, no mestrado de Dança.

    “Apesar de ter passado em posição suficientemente boa para não precisar da modalidade das Vagas Supranumerárias, oferecidas a pessoas transgêneras e travestis, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, percebi a importância social da existência dessa opção no concurso”, conta Ian Habib à Ponte.

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    Pessoa trans, Ian sabe bem como é a ausência de pessoas trans na universidade: ele é a única pessoa trans no curso. Ele coordena a linha de Estudos Trans, Travestis e Intersexo do grupo de pesquisa do NuCuS (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades).

    “Não há pessoas transgêneras doutoras em Artes Cênicas no Brasil, e se considerarmos mestrado em Artes Cênicas junto da Graduação em Artes Cênicas, conheço apenas uma pessoa brasileira transgênera mestra em Artes Cênicas e também graduada em Artes Cênicas em todo o país”.

    Ian Habib é um dos alunos que lidera seminário sobre gênero | Foto: Arquivo pessoal

    “As pessoas trans, travestis e não-binárias são expulsas de seus núcleos familiares e de ambientes de ensino desde muito cedo, e, por isso, têm dificuldade de acessar o mercado de trabalho, tem seus direitos relativos à gestação e à prática de esportes negado e tem suas transformações corporais controladas e coibidas por mecanismos institucionais e não-institucionais”, completa o pesquisador.

    Em todos os mais de cem Institutos Federais de Ensino Superior espalhados pelo país possuem 3.379 alunos trans binários e 7.735 alunos não-binários, segundo levantamento de 2018 da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior).

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    Ian também passou por problemas com o uso do nome social nos sistemas da UFBA. “Eu havia passado por um processo de retificação de documentos, e a instituição perdeu minha nova documentação de matrícula. A perda dos meus documentos ocasionou o impedimento ao meu acesso aos restaurantes e aos transportes universitários por cerca de três meses. Em estado de vulnerabilidade, procurei, então, outras pessoas transgêneras discentes”.

    Foi quando ele encontrou o grupo TRANSUFBA, que funciona em aplicativos de mensagens, e percebeu que não era o único: cerca de 40 outras pessoas trans passavam por problemas semelhantes. “O grupo havia sido criado no mesmo mês em que fui adicionado, no início de 2019, e desde então vêm funcionado como rede de apoio para resolução coletiva de problemas, escrevendo cartas em conjunto para solicitar transformações arquitetônicas, mudanças em sistemas de dados, solicitação de políticas de ações afirmativas e permanência, dentre outros”.

    Com o objetivo de manter alunos trans na universidade e protegê-los das transfobias que vinham sofrendo, Ian foi convidado pela professora Carmen Paternostro para encabeçar a organização que deu vida ao Desmonte Seminário. O professor Lucas Valentim somou forças com Ian para construir o evento, por ter experiência com aulas de dança e sexualidades. Posteriormente foi a vez da professora Rasbeca Quincuê, da área de gênero, se unir ao grupo.

    Desmontando a cisgeneridade

    A primeira edição do Desmonte aconteceu ainda em 2019, e contou com uma programação com mesas de discussões, exposições e apresentações artísticas, reunindo mais de mil pessoas – de dentro e fora da UFBA. “O Desmonte tem o intuito de conectar a academia com o que está fora dela, e também pesquisadores da academia que já estavam desenvolvendo suas pesquisas lá, sempre nas áreas de gênero, sexualidade, raça, deficiência e inúmeras outras”, define Ian.

    Naquele ano, o evento foi encerrado com um grande ballroom, um tipo de festa que serve de refúgio da população LGBT+ que concentra troca de afetos, conscientização, politização, acolhimento e acesso aos serviços de proteção ao HIV, com arte, cultura, dança, criatividade e família. “Esse ballroom foi um dos primeiros de Salvador e o primeiro da UFBA. Foi o maior evento da Escola de Dança em seus 60 anos”.

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    Com o sucesso da primeira edição, agora a UFBA, por meio da Escola de Dança, do NuCus e do Grupo PORRA (Grupo de Pesquisas em Danças da Escola de Dança), traz o “II Desmonte – Webseminário Corpo, Gênero e Interseccionalidades”, que pretende discutir gênero, representatividade trans, transfake e luta antirracista.

    A segunda edição do Desmonte contará com mesas sobre feminismos, tradições de matrizes africanas, representatividade trans nas artes (que será dividida em dois debates), propostas anticoloniais e ativismos e artivismos. O evento acontecerá nos dias 29 e 30 de outubro, será transmitido de forma gratuita pelo YouTube e Instagram do Desmonte e será aberto para todos os públicos.

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    Nomes como Renata Carvalho, do Monart, Leo Moreira Sá e Daniel Veiga, do CATS, Marina Mathey, do Monart e do coletivo Marsha!, Nunyara Teles, do Tsunami Travesti, Luke Yemonja Banka, do IBRAT e Fonatrans, representarão as pessoas fora da academia. Entre os professores estarão Luciana Lyra, da UERJ, Saulo Almeida, da USP, Dodi Leal, da UFSB, entre outros.

    A ideia de debater representatividade trans e o transfake surgiu após um artigo publicado pelo professor Djalma Trüler, do NuCus. “Somos todes trans” trazia uma crítica do docente sobre a relação do transfake e dos movimentos pelo fim do transfake. “A Renata Carvalho ficou sabendo, fez uma crítica pública sobre esse artigo e disse que queria debater com o Djalma. Eu falei: vamos organizar isso, vamos fazer uma mesa”, conta Ian.

    O termo transfake se refere à prática de atores cisgêneros (pessoas que se reconhecem no gênero de nascimento) interpretarem personagens trans e travestis (pessoas que não se identificam com o gênero de nascimento) e remete ao blackface.

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    Refletida dentro do campus, a falta de representatividade trans vai para além das artes: fala sobre a inversão de objeto para sujeito de pesquisa. “Começamos a organizar as mesas com outras pessoas que estivessem abertas para debater transfake. Foi muito difícil, as pessoas que fazem transfake têm se negado a dialogar com os movimentos trans. Como tínhamos muitas pessoas para falar, separamos em duas mesas”, explica Ian.

    Programação completa do II Desmonte UFBA

    “É uma continuidade acadêmica, porque os debates foram feitos fora da academia. Artigos que nós, pessoas trans, temos mandado para revistas de pós-graduação, têm sido recusados, por isso a importância de trazer o transfake para a academia de forma mais ampla. Chegamos na academia, mas não estamos conseguindo publicar artigos, com essa discussão conseguimos visibilizar o assunto”, aponta.

    Por uma universidade mais plural

    Para além do seminário, garante o pesquisador Ian Habib, o Desmonte veio para abrir espaços importantes na UFBA. Com o projeto, a universidade tem passado por importantes mudanças em ações afirmativas para a permanência estudantil de pessoas trans, na graduação e na pós-graduação.

    “O Desmonte veio para inverter essa lógica de objeto de pesquisa que historicamente foi estabelecida para a população trans. Antes dessas reservas de vagas e de permanência estudantil, nós, pessoas trans, ficávamos somente na posição de objetos de pesquisa e agora somos sujeitos de pesquisa. Por isso fomos nos aproximando bastante da questão da representatividade trans e dos movimentos artísticos que foram surgindo e pedindo a inversão da posição de objeto para sujeito. Desejamos ser sujeitos das nossas próprias narrativas”, explica Ian Habib.

    Foto: Ian Habib/UFBA

    “Como um dos coordenadores da linha de pesquisa de Estudos Trans, Travestis e Intersexos do NuCuS, eu estive envolvido em alguns desses processos. Eu percebi que havia uma grande evasão de estudantes trans que estava prejudicando a continuidade dessa linha de pesquisa, porque as pessoas trans que entravam para pesquisar logo saiam”. 

    Com a surgimento do seminário, coletivos e linhas de pesquisas sobre gênero se fortaleceram dentro da UFBA. “Falei que precisávamos pensar, então, em mais espaços trans dentro da universidade. Além dessa linha de pesquisa, que é um dos espaços trans dentro da UFBA e que serviu para conectar o grupo de estudos NuCus ao Desmonte, o NuCus foi muito importante para a continuidade do Desmonte. Muitas das pessoas pesquisadoras do NuCus hoje constroem o Desmonte, que é outro espaço estudantil transcentrado. É um espaço que tem prioridades para essas vivências”, conta.

    Hoje, continua o pesquisador, o Desmonte é uma comunicação mútua entre Grupo Porra, NuCus e o grupo A Cor da Bahia, da professora Rasbeca Quincuê, que trabalha questões étnico-raciais na UFBA. “Temos essas três frentes para trabalhar gênero, sexualidade e deficiências. O NuCus tem várias linhas de pesquisa: gênero, cidades, sexualidade, lesbianidades, raça, educação”.

    “Surgiu na dança, com essa importância artística muito grande, mas depois do primeiro evento tivemos conquistas importantes. Recebemos convites para levar o Desmonte para outras instituições, outras universidades, outros cursos e para fora da academia. Cursos como biologia, direito e medicina nos procuraram. É um evento interdisciplinar”, avalia.

    Foto: Ian Habib/UFBA

    Ian cita um momento simbólico da primeira edição do Desmonte, que define bem a vida de corpos trans na UFBA. A performer Pérola havia solicitado duas mesas grandes para uma performance dela, que contaria com 50 velas e 20 litros de leite. Era algo inovador, mas que trazia riscos. Todos sabiam e entraram nessa. “Mas não tínhamos dinheiro, porque o Desmonte é feito sem verba institucional. Falamos que tínhamos uma mesa muito grande, mas que era usada pelos professores. Aí a professora Carmen liberou que usássemos. Pérola performou em cima da mesa dos professores em uma sexta-feira 13 de noite”.

    “Felizmente, ou infelizmente, a mesa se desmontou durante a performance. Isso é muito simbólico porque temos poucas pessoas trans na instituição e uma travesti preta, performando em cima da mesa dos professores, desmontou a mesa. O Desmonte é sobre isso, é sobre as mesas que possivelmente vão se desmontar até que a gente consiga entrar. Antes eu falava que tínhamos que chutar portas, agora eu falo que algumas mesas precisam ser desmontadas”, argumenta Ian.

    Além da permanência estudantil trans, das múltiplas conexões que servem para ampliar as redes de apoio, uma das discussões que nasceu do Desmonte é o uso dos banheiros para pessoas trans. “Essa discussão ainda está aberta porque é uma discussão muito complicada. Mas a diretoria da Escola de Dança, dentro do processo de reforma que está sendo ampliada, se sensibilizou com a questão e resolveu levar isso para outras pessoas responsáveis e decidiram construir banheiros que abrigam diversidades”.

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    “A gente entende que os banheiros não resolvem questões trans de uma forma geral, porque é importante que as pessoas trans sejam respeitadas com os gêneros de identificação, que a gente garanta os direitos das pessoas trans usarem os banheiros, mas pode-se considerar que a construção desse banheiro já é um movimento institucional. Não é fácil fazer um banheiro do nada. É um primeiro movimento de abertura e de diálogo”, pontua Ian.

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