Declarações de Doria ‘contribuem para o aumento da letalidade policial’

    Primeiro ouvidor a não ser reconduzido desde que cargo foi criado, há 25 anos, Benedito Mariano afirma que incomodou o governador por sua ‘forma atuante’ de trabalhar

    As falas do governador João Doria (PSDB) contribuem para o aumento da letalidade policial. É o que afirma o ex-ouvidor da Polícia, Benedito Domingos Mariano, 61 anos, em entrevista realizada nesta terça-feira (18/2), 12 dias após o término da sua gestão e a sua não recondução ao cargo pelo governador João Doria (PSDB).

    Mariano cita como exemplo os elogios que o governador fez para um grupo de policiais militares que matou 11 suspeitos de roubo a banco na cidade de Guararema, na Grande São Paulo, cinco meses antes de um relatório da Ouvidoria apontar excessos em pelo menos 4 dessas mortes.

    “O governador elogiou a ocorrência sem conhecê-la, sem ter análise dos laudos técnicos da ocorrência como um todo. Eu acho que essa narrativa, indiretamente ou diretamente, contribui para o aumento da letalidade”, afirma Mariano. Para o ex-ouvidor, Doria “não prioriza órgãos de controle social da atividade policial”.

    Benedito fala com conhecimento de causa. Ele permaneceu no posto por sete anos, todos com tucanos no poder. Foi o primeiro a assumir a cadeira, criada pelo governador Mário Covas, em 1995, permanecendo até 2000. Sua volta se deu em 2018, com Geraldo Alckmin como governador.

    O ouvidor durante entrevista na sua casa, em Osasco (SP) | Foto: Caio Castor/Ponte Jornalismo

    Desde que o cargo foi criado, tornou-se uma tradição que os ouvidores permanecessem na função por dois mandatos seguidos. Doria rompeu com a tradição neste ano, ao decidir pela não recondução de Mariano. Não é apenas nisso que o atual governador tucano se diferencia dos demais, segundo Mariano.

    “Mario Covas priorizava órgão de controle social da atividade policial. O governo Alckmin também apoiava, não com a mesma ênfase do governo Covas. Mas o Doria não valoriza. Ele ainda não fez uma manifestação pública sobre as recomendações que a Ouvidoria fez”, afirma.

    Segundo o ex-ouvidor, entre suas recomendações está a contratação de especialistas e a criação de um núcleo na Polícia Civil para conter a quantidade de suicídios entre os servidores: “As recomendações da Ouvidoria são para melhorar a atividade policial. Se quer valorizar os policiais, tem que cuidar dos policiais”. Além das recomendações ele cita que durante toda sua gestão ele optou por trabalhar a favor da redução na letalidade policial.

    Na análise do ex-ouvidor, sua não recondução ao cargo ocorreu por conta de sua posição firme na busca de punição aos agentes que teriam cometido abusos ou se envolvido em casos de corrupção. “Eu trabalhei em favor da redução na letalidade policial. Eu acho que não fui reconduzido pela forma atuante que trabalhei na ouvidoria. Incomodou. É legítimo ele escolher qualquer um dos três [postulantes ao cargo de ouvidor], mas eu fui o mais votado, tinha apoio inclusive das polícias”, pondera.

    A Ouvidoria da Polícia paulista foi a primeira criada no Brasil. Ao contrário das Corregedorias das Polícias Militar e Civil, que têm poder de punição, mas não independência, pois fazem parte da estrutura policial, a Ouvidoria não tem poder de punir policiais, mas possui independência. O ouvidor é escolhido pelo governador, mas somente a partir de uma lista tríplice fornecida pela sociedade civil, através do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).

    ‘Deselegância absurda’

    Mariano, que por formação é sociólogo e mestre em Ciências Sociais pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), disse que João Doria deveria tê-lo avisado anteriormente sobre sua saída, e esperado até o dia 7 de fevereiro para publicação no Diário Oficial e não no dia 6 como foi feito.

    “Ele foi de uma deselegância absurda. Eu estando no cargo e ficar sabendo às 8 horas pelo Diário Oficial. Fui demitido no último dia de governo. O governo cometeu um erro, me tirando um dia de mandato”, afirma.

    Sem o aviso prévio, ele afirma que a transição ficou prejudicada. “É delicadeza fazer a transição. Podia ter me avisado dez antes que eu comunicava a equipe”, conta, com semblante chateado.

    “Governador não me recebeu nenhuma vez”, afirma Mariano| Foto: Caio Castor/Ponte Jornalismo

    A tristeza também é demonstrada quando, durante a entrevista concedida em sua residência na cidade de Osasco, na Grande São Paulo, é questionado sobre seu contato com o atual chefe estadual: “Nenhuma. Eu fui duas vezes entregar o relatório público trimestral da Ouvidoria no Palácio [dos Bandeirantes]. Pedi encontro com o governador, mas ele não recebeu nenhuma vez”, detalha.

    Na visão dele, a diminuição da letalidade policial tem como base principal mecanismos como a Ouvidoria e não discursos populistas. “Quando o governo não cria mecanismos eficazes para diminuir a letalidade e ainda tem uma narrativa de uma ação mais repressiva por parte da polícia, ele evidentemente não dialoga com a diminuição da letalidade”, diz.

    O sociólogo contou que esteve na sede da ouvidoria para realizar a transição com o novo ouvidor Elizeu Soares Lopes e, além de desejar boa sorte, deixou-lhe um recado. Segundo Mariano, o que disse para seu sucessor foi o seguinte: “Se você mantiver a Ouvidoria atuante como órgão de controle vai ter sempre meu apoio. Se fizer uma Ouvidoria café com leite, que não assume com rigor necessário o órgão de controle, você vai ter um crítico”.

    Outro lado

    Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa de João Doria não respondeu às críticas do ex-ouvidor e se limitou a encaminhar um trecho de uma entrevista na Globonews, na qual Doria afirma que “é um direito do governador escolher na lista tríplice” e que a não recondução de Mariano “não foi nem para punir e nem para prejudicar”.

    Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que “todas recomendações da Ouvidoria, assim como as de outros órgãos, são avaliadas pelas áreas técnicas das instituições e implementadas de acordo com a viabilidade legal e orçamentária”, segundo sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress.

    Sobre os casos de suicídios, a pasta alegou que “ambas as corporações também oferecem suporte e atendimento psicológico aos seus agentes”.

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    […] por trás dessa crescente letalidade entre as polícias. “Temos essa posição política do governo estadual e do governo federal [de Jair Bolsonaro] que o policial tem uma certa licença para matar”, […]

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