“Diferentemente de PF e Civil, PM é completamente avessa a críticas”

    Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College (EUA), afirma que PMs de SP veem como inimigos todos aqueles que questionam a conduta de policiais

    Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA, e especialista em segurança pública
    Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA, e especialista em segurança pública. Foto: Arquivo pessoal

    Rafael Alcadipani é professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, dos EUA. Há anos, acompanha o trabalho de policiais de São Paulo, e crava: “A Polícia Militar de São Paulo tem um padrão de intimidação com as pessoas que ela considera como inimigas”. Esses inimigos, de acordo com o especialista em segurança pública, podem ser, desde pesquisadores e jornalistas, até testemunhas-chave de casos que envolvem crimes praticados por PMs.

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    Para o professor, “existe um padrão claro de intimidação na PM”. E, de acordo com ele, “Na Polícia Civil, não há isso muito claro. Na militar, é um traço muito claro. O rapaz entra como oficial, com 17 anos, na polícia. Toda a formação dele é feita dentro da polícia. E a defesa da PM é muito forte”, afirma.

    Para ele, há níveis diferentes de intimidações feitas por policiais, classificadas como: soft, media e hard. “Na soft, um professor ou jornalista falou uma coisa que não concordo – emitimos nota e vários PMs entram em contato. Na média, é quando esse soft tem um tom mais ameaçador. E na hard, as ameaças são de morte, principalmente contra testemunhas chave de crimes contra policiais.

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    “Existe uma lógica. Ninguém pode questionar a PM. Ela é soberana. Se você faz isso, vira inimigo. Você só é legal se fala bem da Polícia Militar. A PM é completamente avessa a críticas, diferentemente das outras corporações. As outras também não gostam. Ninguém gosta de ter o seu trabalho questionado, mas a lógica institucional de ameaça de morte é gritante na PM” afirma.

    Para o especialista, “todo questionamento à PM vira ofensa pessoal, é levado como um ataque à pessoa”. De acordo com ele, “a consequência disso é uma naturalização de práticas altamente questionáveis e que muitas vezes prejudicam a sociedade, especialmente os mais pobres”.

    PMs gostam de posar em fotos de alguns manifestantes, mas não aceitam bem as críticas
    PMs gostam de posar em fotos de alguns manifestantes, mas não aceitam bem as críticas

    Confira, abaixo, a íntegra da entrevista com o especialista em Segurança Pública:

    Ponte Jornalismo – A Polícia Militar tolera críticas?
    Rafael Alcadipani – A PM tem extrema dificuldade em aceitar questionamentos às suas práticas organizacionais e de seus membros. Todas as instituições têm dificuldades em receber críticas. Mas, no caso da PM, esta dificuldade é exacerbada. Questionamentos às suas práticas e ações são vistas como “não isentas”, “discriminatórias” e “feitas por pessoas que nada sabem de polícia”. É como se apenas membros da PM soubessem o que é fazer polícia e o que é certo e errado. Trata-se de uma corporação cuja lógica organizacional é de dividir o mundo entre “amigos” e “inimigos”. Uma vez que você entra na pecha de “inimigo” você deve ser desacreditado, destruído. E pior ainda: muitos dos membros da PM, principalmente os oficiais, não conseguem separar a identidade de quem eles são da identidade da corporação. Com isso, todo questionamento à PM vira ofensa pessoal, é levado como um ataque à pessoa. É claro que há muitos PMs que estudam fora da PM, possuem títulos acadêmicos, mas como eles entram na força muitos jovens, muitos deles com 17-18 anos, momento em que as pessoas constroem a identidade de quem elas são, elas crescem com a ideia de que a PM é aquilo quem ela são e terminam por idolatrar a organização. Este tipo de questão já foi amplamente tratada na literatura acadêmica – o texto de Max Pages “O Poder das Organizações” mostra isso muito bem. Ao fim e ao cabo, temos uma instituição de cultura muito forte e que em larga medida “cega” muitos de seus membros. A consequência disso é uma naturalização de práticas altamente questionáveis e que muitas vezes prejudicam a sociedade, especialmente os mais pobres. No meu ponto de vista, isso é uma pena, pois a população passa a não confiar na PM, como inúmeras pesquisas de opinião mostram, e muitos policiais sofrem quando, por exemplo, se aposentam e não fazem mais parte da força. Há muita gente séria e competente na PM, mas esta amalgama entre quem a pessoa é e quem a corporação é as tornam praticamente cegas para os problemas da corporação.

    Ponte Jornalismo – Por quê?
    Rafael AlcadipaniPrimeiro, pelo fato de as pessoas que comandam a polícia entrarem muito jovens na corporação e serem educados exclusivamente dentro da corporação, com pouco contato com o mundo externo. Segundo, porque organizações de cultura forte tendem a ter este tipo de comportamento, pois é fundamental para se manter a coesão interna e não deixar que os problemas internos venham a tona, é preciso ter “inimigos” externos. Terceiro, porque a PM em São Paulo parece ter um traço identitário de ser o “Exército Paulista” e exércitos, diferentes de polícias, precisam se forjar na lógica do “inimigo”. Além disso, é preciso calar as vozes que questionam, pois, se o questionamento externo atingir o cerne da corporação, a situação pode se complicar. Isso porque o tratamento aos praças é péssimo, eles sofrem muito dentro das polícias militares e uma ideologia e uma cultura forte são fundamentais para que não ocorram questionamentos à forma que são tratados.

    Ato de secundaristas na Escola Estadual Caetano de Campos - Foto: Daniel Arroyo
    Ato de secundaristas na Escola Estadual Caetano de Campos – Foto: Daniel Arroyo


    Ponte Jornalismo – Isso é padrão exclusivamente da PM de SP?
    Rafael Alcadipani –
    Embora toda organização tenha dificuldades para lidar com críticas, a PM de São Paulo é particularmente refratária neste respeito. A PM do Rio de Janeiro, apesar de todas as suas dificuldades, é muito mais aberta em relação a ser questionada. Há uma tradição de pesquisas dentro da PMERJ e muitos de seus comandantes possuem uma visão muito mais aberta e arejada. A PMMG é uma polícia que tem um grande respeito da sociedade local e tende a ser muito mais aberta também. A PMSP precisa evoluir muito neste quesito. Para se ter uma ideia de como a PMESP é fechada. Na maioria dos estados brasileiros e no mundo todo, o Corpo de Bombeiros não existe dentro da estrutura da polícia, pois o bombeiro requer habilidades, treinamentos, orçamentos e equipamentos específicos. Em São Paulo, os bombeiros ainda são parte da PM, o que mostra a sua maneira fechada e refratária de ver o mundo e concentrar poder.

    Ponte Jornalismo – Polícia Civil e Polícia Federal também não toleram críticas?
    Rafael Alcadipani –
    A Polícia Civil e a Polícia Federal têm em comum a característica de que a sua cúpula hierárquica teve sua formação como policial em um momento em que são já adultos. Um delegado de polícia já fez 5 anos de direito e geralmente teve uma grande experiência fora da polícia, ele vira policial com sua identidade já bem mais sólida. Além disso, o caráter civil das duas forças faz com que elas atuem menos da lógica do “combate ao inimigo”. Via de regra, Policias Civis e Policiais Federais são os primeiros a criticar e a questionar as suas instituições. Diferente da PM onde uma pessoa que fizer uma crítica pública a corporação pode ser punida. Nas PMs, praças têm muita dificuldade de ter suas vozes ouvidas. É completamente inconcebível que em 2016 uma pessoa seja punida por problemas em seu fardamento ou então que sofra ataques morais devido ao corte de cabelo ou como fez a barba. Isso muito pouco acontece nas polícias de caráter civil onde a liberdade de expressão de seus membros é muito mais respeitada.

    Ato do Povo Sem Medo - Foto: Daniel Arroyo
    Ato do Povo Sem Medo. Foto: Daniel Arroyo


    Ponte Jornalismo – Qual a diferença entre essas corporações e a PM?

    Rafael Alcadipani – Crio que o caráter civil. O militarismo em si eu não vejo como problema. O problema eu considero é termos em prática um militarismo muito antiquado.

    Ponte Jornalismo – Você fala sobre intimidações soft, média e hard praticadas por PMs. Qual a diferença entre cada uma dessas ameaças?
    Rafael Alcadipani – Via de regra, a PM possui uma estratégia de intimidação das pessoas que questionam suas atitudes e seus atos. Quando uma pessoa com proeminência pública e que está no andar de cima da pirâmide social brasileira faz algo que desagrada a PM, ela responde com notas e questionamentos tentando desacreditar esta pessoa. Coisas como “você não é isento”, “você nunca fez polícia” etc. Há estratégias menos softs, que podemos chamar de média, em que há uma intimidação mais explícita. Por exemplo, quando o jornal “Folha de S.Paulo” questionou todos de PMs em que eles apontavam armas em redes sociais, a sequência foi que inúmeros policiais tiraram fotos apontando armas que eram direcionadas à Folha. Ou quando um delegado de polícia toma uma ação contra um PM e inúmeros dos seus colegas cercam a delegacia como uma forma clara de intimidação. As estratégias hard ocorrem quando pessoas vão testemunhar contra mal feitos praticados por policias e são fisicamente ameaçadas. Estas três estratégias, eu considero, fazem parte de uma lógica de cultura organizacional e construção de identidade organizacional que constituem uma “intimidação ao inimigo”. Novamente, a realidade é muito mais complexa do que isso, há muitos policiais que não fazem e não aceitam isso, mas a lógica da cultura organizacional sempre se impõe.

    Foto: Daniel Arroyo
    Foto: Daniel Arroyo

    Ponte Jornalismo – É comum as pessoas que sofrem essas ameaças não terem coragem de reagir?
    Rafael Alcadipani – Sem dúvida alguma, as pessoas têm medo de testemunhar contra PMs. Isso é público e notório. Ninguém quer ser encarado como “inimigo” por uma força policial que em alguns estados da federação é um 4º poder. Veja, PMs estão dentro de Assembleias Legislativas, Tribunais de Contas, Tribunais de Justiça, Palácios de Governo, Gabinetes de Secretários. Veja o poder que esta corporação possui. É urgente que cada uma destas instituições tenha um corpo de segurança independente. A pessoa que faz a sua escolta e a sua segurança sabe tudo de sua vida.

    Ponte Jornalismo – Como mudar esse tipo de pensamento, de ameaçar quem não concorda com a PM, dos policiais?
    Rafael Alcadipani – Este é um longo caminho que passa por uma mudança de cultura organizacional, mudança esta difícil de ser feita. É urgente mudar a formação dos policiais. Ela tem que ser muito menos endógena, ou seja, policiais precisam necessariamente ter parte de sua formação fora dos quartéis, principalmente na graduação. Segundo, é urgente que muitos dos  policiais da cúpula notem que a PM não é uma propriedade dos oficiais. Ela é da sociedade. Talvez, se tivéssemos várias policias e a cúpula pudesse mudar, haveria uma noção menor de que a polícia pertence a estas pessoas. Isso ocorre nos EUA, por exemplo. Terceiro, a sociedade precisa cobrar mais de seus governantes que eles não invistam majoritariamente nas PMs. Hoje, as polícias civis em quase todo o Brasil foram praticamente sucateadas. A prevalência de uma única força policial faz muito mal à democracia e à sociedade.

    Ponte Jornalismo – É possível que algum dia a taxa de aprovação e confiabilidade da PM seja positiva?
    Rafael Alcadipani – A PM faz um trabalho muito importante para a sociedade e diariamente ajuda milhares de pessoas, salva vidas etc. Há ainda muita gente inteligente e bem formada dentro das PMs. Porém, a PM precisa entender que não adianta fazer campanha publicitária “você pode confiar” quando no dia a dia a população não sente isso na pele. A população só vai acreditar na PM quando ela agir de maneira diferente. Este é um longo caminho que vai ter que passar pela diminuição da do poder corporativo das PMs na segurança pública no Brasil.

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