Discurso de repressão aos pancadões é antigo: ativista conta que, em campanha, tucano tentou aproximação com organizadores de funk e descumpriu promessa
O governador do estado de São Paulo, João Doria (PSDB), após algumas horas do massacre de Paraisópolis, ainda no domingo, cobrou em sua conta do Twitter uma “apuração rigorosa” dos fatos. Nesta segunda-feira (2/12), no entanto, mudou um pouco o discurso: “A letalidade não foi provocada pela Polícia Militar. E sim por bandidos que invadiram a área onde estava acontecendo o baile funk. Não podemos inverter o processo”, disse, em coletiva de imprensa. “Não teve ação da polícia no sentido de invadir o baile funk. Tanto é fato que o baile continuou. Não deveria, não deveria sequer ter ocorrido, porque ele é ilegal, ele fere a legislação municipal”, prosseguiu.
Os ataques aos pancadões estão no discurso de Doria há mais tempo. No dia 18 de janeiro de 2018, quando ainda era prefeito da cidade de São Paulo, o tucano inferiu que os organizadores de pancadões eram ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital) e criticou abertamente o baile da DZ7, onde as 9 pessoas foram mortas, em entrevista à Rádio Bandeirantes. O único exemplo citado nominalmente por Doria é justamente o baile realizado em Paraisópolis.
“Pancadão é uma praga. É triste, mas é essa a realidade. A prefeitura orientou os 32 prefeitos regionais, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e a PM a combater os pancadões especialmente nas periferias. Paraisópolis, por exemplo, é um caso sistemático”, declarou o então prefeito que, na época, informou que pediu à Polícia Civil do Estado de São Paulo investigações para barrar as festas.
Quando ainda estava em campanha à prefeitura, Doria sinalizou um desejo de pactuar com organizadores de bailes funk para falar sobre o projeto “Funk SP”. Segundo Darlan Mendes, ativista de direitos humanos e que presidiu o “Rolezinho da Cidadania”, o tempo mostrou que a ação do político era uma intenção eleitoreira, já que, pouco depois de assumir a prefeitura, Doria deixou de lado esse debate e partiu para o ataque.
Após um dos “rolezinhos” que aconteciam no primeiro semestre de 2017 no Parque do Ibirapuera, com apoio da prefeitura, o tucano chegou a dizer que os frequentadores do evento, majoritariamente da quebrada, tinham depredado os banheiros recém-reformados, como mostra reportagem da Band.
Na visão de Darlan, tudo é uma tentativa constante de criminalizar a juventude negra, pobre e periférica. “A gestão precisa parar com aquela história de toda vez que fala ‘funk’ automaticamente fala a palavra droga e sexo. A juventude não tem grana para nada então vai pra rua mesmo. Se junta para fazer baile da rua e se divertir um pouco. É assim que funciona”, comenta o ativista. “Não adianta o rico olhar para o favelado e falar que tem que ser de determinado jeito. Tem que ouvir a favela, a comunidade, ouvir a gente. Eles nos enxergam como um problema porque a gente não se cala. O que esse e outros governos estão fazendo é travar uma guerra”, define.
Para ele, o episódio de Paraisópolis reflete justamente esse conflito. “A política do atira para matar só serve para o jovem preto, da periferia e porque o moleque está com uma roupa tal e a polícia identifica ele como vagabundo. E quem fica vivo acaba carregando para o resto da vida a marca da repressão e o medo. A Gabi é um exemplo”, afirma Darlan.
O funkeiro cita a história de Gabriella Talhiaferro que, em 10 de novembro, foi atingida por uma bala de borracha disparada por um PM e ficou cega. Gabi estava indo a um baile funk em Guaianases, zona leste da capital paulista. “Ela morre de medo quando vê alguém de farda. A gente deveria olhar para a polícia e não ter medo, mas respeito e gratidão. Mas desse jeito dá?”, critica.
Darlan lembra que o mesmo batalhão que feriu Gabriella, o 28º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), deixou outra pessoa cega e no mesmo contexto de repressão aos pancadões, há seis anos. “Os nove mortos, a culpa é do governador João Doria. Ele é a autoridade máxima e precisa ser responsabilizado. É simples, né?! O policial fala que teve a perseguição e não precisa provar”, afirma, em referência à versão oficial de que as mortes aconteceram por culpa de dois suspeitos em uma moto que entraram no baile funk atirando contra os PMs.
Darlan sugere a criação de galpões em terrenos públicos que caibam bailes grandes e que sejam geridos pela comunidade, sob a supervisão do governo, para fomentar a economia local. “Não adianta proibir se não der uma saída para os jovens. Essas ações como a de Paraisópolis reforçam uma narrativa de que há dois lados: o dos jovens e o da polícia como se fossem inimigos, coisa que não deveria ser. Não adianta fazer a babaquice de falar que vai combater o baile funk com musica clássica”, disse.
Paraisópolis é a segunda maior favela de São Paulo, onde vivem 100 mil pessoas. A Rede Nossa São Paulo publicou uma nota pública sobre o episódio do último domingo destacando alguns dados sociais do Mapa da Desigualdade, produzido anualmente pela entidade: a comunidade não possui nenhum equipamento público de cultura, mantém o maior tempo de espera por uma consulta com clínico-geral na rede pública de saúde do município – 75 dias, sendo que a média da cidade é de 19 dias – e não possui salas de shows ou concertos.
Lastro repressivo
Não é situação pontual, nem restrita a uma ou outra região, as ações truculentas aos até então chamados pancadões. Doria ainda era prefeito paulistano e seu antecessor e padrinho político, Geraldo Alckmin (PSDB), estava no comando do estado, quando Lucas Miranda da Silva, 21 anos, foi morto durante a dispersão de um baile funk na zona norte. A Ponte acompanhou o caso, que aconteceu em agosto de 2017 no Jardim Carombe, Brasilândia.
O boletim de ocorrência do caso contava apenas com a versão dos policiais e indicava que eles haviam sido chamados para dispersar o “fluxo” onde acontecia o pancadão e que Lucas teria sido baleado antes da chegada da PM, versão que se assemelha muito ao caso de Paraisópolis. Uma testemunha, que é amiga da vítima, conta uma história diferente e destaca que o beco onde estavam era sem saída, o que causou um tumulto ainda maior. “Começou o corre-corre, parecia um formigueiro porque nesse beco só tem uma saída. O pessoal ficou desesperado. Cada um correu para um lugar e gente perdeu o Lucas de vista. De repente, vi um cara no chão com a cara toda ensanguentada. Demorei a perceber que era meu parceiro”, explicou o jovem, que na época tinha 17 anos.
No dia 28 de maio de 2018, Douglas Gomes Viana, 18, foi morto a tiros no baile funk conhecido como “Bailão do Porto”, no Jardim Porto Velho, região do Grajaú, extremo sul da cidade de São Paulo. Testemunhas afirmam que uma viatura da Força Tática, tropa especializada para dispersar multidões, chegou no “fluxo” disparando na direção do jovem.
Em 17 de novembro do ano passado, três pessoas morreram pisoteadas durante uma ação policial em um baile funk, dessa vez no bairro dos Pimentas, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Marcelo do Nascimento, 34 anos, Mikaela Maria de Lima Lira, 27, e Ricardo Pereira da Silva, 21, morreram. O caso aconteceu no baile do Vermelhão.
De acordo com a garçonete Bruna Santos Portugal, que ficou ferida na ação, a PM chegou pela Rua Prates lançando bomba e gás em uma atitude que ela definiu como “desproporcional”. “Eu estava com meus amigos perto do palco e, mais ou menos umas 3h, o MC Kapela subiu para cantar e nisso eu só ouvi um ‘olha a polícia!’ e já vieram atirando bomba, gás e todo mundo se desesperou e saiu correndo”, lembrou, à reportagem da Ponte, na época.
Oportunidade na quebrada
A grande movimentação proporcionada pelo Baile da DZ7, que atrai pessoas de vários cantos da capital e Grande São Paulo, passou a ser uma possibilidade de renda na comunidade. Há outros bailes menores que também acontecem e giram a economia local. Em entrevista à Ponte, uma comerciante, que pediu para não ser identificada por medo de represálias, decidiu estender o seu horário de trabalho e aos sábados abre a sua lanchonete durante a madrugada. Sem o baile, afirma a comerciante, as vendas cairão muito.
“Com os bailes a gente vende muito mais. Sempre teve abuso da polícia, mas a polícia está muito mais violenta com o governo Doria, principalmente desde a morte do sargento. Eles [os PMs] têm que pedir com educação pra gente fechar, mas eles nunca têm. Eles perguntam se temos alvará, mas nunca temos alvará aqui. Aí eles já chegam com falta de educação. Chegam falando ‘pode fechar, acabou tudo’. Aí fechamos e ficamos nessa de abrir e fechar”, detalha.
No dia 1º de novembro de 2019, o sargento da PM Ronald Ruas Silva morreu baleado em ação na favela de Paraisópolis. Ruas, de 52 anos, foi baleado em troca de tiros e não resistiu, morrendo no dia seguinte. A morte gerou ações diárias na comunidade por um mês até o caso do massacre, ocorrido na madrugada do dia 1º de dezembro.
