‘É um trauma eterno’, conta vítima de sequestro em Guararema (SP)

    Vinte dias após ação que terminou com 11 mortos pela PM, família feita refém sofre com medo e pesadelos; segundo moradora, homem morto por policiais ‘não queria se entregar’

    Marcas de tiros em um dos dois carros blindados usado pelo grupo | Foto: Reprodução

    As memórias da madrugada do dia 4 de abril de 2019 seguem vívidas no cotidiano de Vanderleia Vicente Gomes. Ela, o marido e a sogra foram feitos reféns por um dos mais de 25 suspeitos de tentar roubar duas agências bancárias em Guararema, cidade na Grande São Paulo. Uma ação da PM paulista matou 11 pessoas, entre eles o homem que invadiu sua chácara. Ainda não se sabe se houve algum excesso por parte dos policiais, mas o governador João Doria (PSDB) já os parabenizou por mandar “11 bandidos para o cemitério”.

    Vanderleia conta que o medo ganhou espaço desde então, bem como os pesadelos. “Não está tranquilo seguir a vida. Ainda ficamos bem apreensivos com qualquer barulho que ouvimos. Teve uma noite que entrou um carro de madrugada na estrada… Tudo para a gente é estranho e diferente, assusta e corre para a janela do outro quarto para ver. É um trauma eterno”, conta a mulher. No dia das mortes, a população só falava do assunto e apoiava a ação letal da polícia.

    Eram por volta de 2h da manhã quando o casal acordou com o som de tiros. Vanderleia pensava se tratar de rojões, mas o marido disse se tratar de disparos. Pediu para ligar e alertar a irmã, que mora em uma casa próxima. Não conseguiu falar com ela. Por volta das 4h, o casal acabaria envolvido na ação policial com 11 mortos, a terceira mais letal da história da PM paulista. Ela e a sogra, que também mora na casa, ficaram horas em um quarto ouvindo as negociações para rendimento.

    O suspeito – não está detalhado no B.O. (Boletim de Ocorrência) se ele foi identificado ou não – fez um porteiro refém e invadiu o local arrombando a porta. O marido de Vanderleia também foi rendido e assim permaneceu por quase duas horas, período entre a negociação do suspeito com os policiais e o desfecho, com sua morte. Ainda não há laudos técnicos que comprovem se a ação na chácara aconteceu conforme os protocolos da PM.

    Segundo a moradora, o homem tinha duas armas: um fuzil e uma pistola e estava irredutível. “Não queria se entregar”, diz. Tempo depois, aceitou entregar o armamento de maior calibre, mas manteve uma pistola apontada para as costas do marido de Vanderleia. Quando um policial chegou para comprovar que ele se entregaria na sequência de dispensar o fuzil, o viu apontando a arma para o morador.

    “Foi uma entrada consentida. Meu marido abriu a porta, o policial entrou e viu que estava armado com a pistola, tanto que ele disse: ‘Você fala que vai se render, manda abrir a porta e nos recebe com uma arma na mão?’. O policial falou isso. E os policiais insistiram para ele se entregar, ele falava que não iria”, conta a moradora, que estava no quarto com a porta fechada. Momentos depois, ela ouviu o disparo.

    “Só ouvi o barulho e não sei o que aconteceu. Não vi a cena. Ouvi meu marido vindo para o lado da porta, deu a entender que alguém empurrou ele. Meu marido falou que o policial o empurrou, então deu a entender que o policial sentiu que ele ia atirar, aí tirou meu marido da frente e…”, relembra Vanderleia, dizendo que o homem fez menção de atirar, conforme o marido a contou posteriormente.

    No processo de negociação, o homem pediu e conseguiu falar com sua família. Ligou para o irmão e a mulher com o celular do casal. A tentativa era de fazer uma chamada de vídeo, mas o sinal da internet em Guararema o impediu. “Ele não queria se entregar, o tempo inteiro ele pedia para ligar para a família dele. Ele estava conversando, abri a porta do quarto pra ouvir, falava alto. Parecia que o pessoal pedia para ele se entregar e ele dizia que não, ‘não vou me entregar’. Para a esposa, ele ligou e disse: ‘A casa caiu, a casa caiu'”, recorda Vanderleia.

    O morador da chácara tentou criar uma alternativa para o homem se render, dizendo que ele e o porteiro se algemariam com o suspeito para a polícia não executá-lo, como temia. “Ele estava bastante assustado, bem apavorado. Normal na situação que ele estava passando. De forma alguma ele queria se entregar. Mas estava com a pistola, eu vi a arma nas costas do meu marido. É o tipo de cena que nunca sai da cabeça, tanto que, quando empurraram a porta do quarto e vi que era o meu marido vindo, pensei: ‘pronto, atiraram no meu marido'”, continua.

    Boataria

    O caso transformou Vanderleia, o marido e a sogra em celebridades na pacata cidade de 28 mil habitantes no limite da Grande São Paulo com o interior do estado de São Paulo. Não que ela considere isso positivo. Ela conta que é comum ser parada na cidade para contar os momentos que testemunhou a negociação. E o pior é ter que encarar os boatos que sugiram dali por diante.

    Vanderleia conta que há quem diga por Guararema que o marido dela tinha uma arma na casa e, com o homem distraído, atirou nele para dar fim ao sequestro. “E tem um que fala uma coisa, outro que fala outra. Se aconteceu dentro da minha casa, quem pode dizer com toda certeza o que foi que aconteceu sou eu e meu marido, nós estávamos lá. Falam que teve troca de tiro, que meu marido tinha arma dentro de casa… Até isso comentaram. Imagina?!”, afirma a moradora, que teme virar alvo por conta da boataria.

    “Até falei para ele, por conta dessas conversas na cidade de que tinha sido ele que matou o cara, para ele procurar um repórter e conversar porque a gente ficou com medo. Começa a surgir boato de que ele tem arma dentro de casa, o medo da gente é esse”, diz Vanderleia, que entende a maior parte das pessoas. “É uma cidade pequena, o povo gosta de comentar, falar, estamos na rua e perguntam como foi, o que aconteceu… mais por curiosidade”.

    Relembre o caso

    Em 4 de abril, um grupo com pelo menos 25 homens pretendia assaltar duas agências bancárias em Guararema. O Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) de Sorocaba, interior de São Paulo, descobriu o plano e pediu suporte para a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) para evitar a ação. Junto do COE (Comandos e Operações Especiais), a tropa agiu apenas quando o grupo já havia iniciado o crime.

    Os PMs se dividiram em dois grupos, montando dois cercos: um na entrada da cidade e outro em uma estrada rumo à vizinha Água Branca. Ao verem os veículos blindados nos quais os homens estavam, os policias atiraram. Sete suspeitos morreram em um suposto confronto e outros quatro em locais separados. Um deles foi o homem que invadiu a chácara de Vanderleia e fez sua família refém.

    No mesmo dia, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), comemorou a morte das 11 pessoas em entrevista à Rádio Bandeirantes. “No próximo dia 10, no Palácio dos Bandeirantes, nós vamos homenagear esses policiais e outros que ao longo dos últimos 30 dias cumpriram a sua missão de defender os cidadãos de bem, defender o patrimônio privado e público, agindo contra bandidos. Bandidos que usam escopetas, fuzis e metralhadoras não saem para passear, saíram para assaltar e fazer vítimas, estão de parabéns os policiais que agiram e colocaram no cemitério mais 10 bandidos”, afirmou.

    A mesma atitude teve o presidente Jair Bolsonaro, que postou em seu Twitter: “Parabéns aos policiais da ROTA (PM-SP) pela rápida e eficiente ação contra 25 bandidos fortemente armados e equipados que tentaram assaltar dois bancos na cidade de Guararema e ainda fizeram uma família refém. 11 bandidos foram mortos e nenhum inocente saiu ferido. Bom trabalho!”

    Até o momento, não há provas técnicas sobre a ação. À época, o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano, adotou tom cauteloso sobre o tema e afirmou que só se posicionará com laudos técnicos finalizados. Benedito comparou a ação a uma outra, ocorrida em Campinas, interior de São Paulo, há aproximadamente um ano, quando 7 suspeitos, usando também armamento pesado, tentaram explodir caixas eletrônicos e foram mortos.

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