Julgamento considerou que Jonatas Santos praticou feminicídio com emprego de meio cruel que dificultou a defesa da vítima, e determinou 16 anos de prisão; Larissa Rodrigues, 21, foi morta a pauladas na zona sul de SP, em maio de 2019
Quando a manicure Rosângela Rodrigues de Lima, 55, desembarcou de Fortaleza (CE) na capital paulista, na última sexta-feira (11/06), não esperava que o Tribunal de Justiça de São Paulo já tinha um veredito pelo assassinato de sua filha, Larissa Rodrigues da Silva, 21, morta a pauladas em maio de 2019, na região do Planalto Paulista, na zona sul da cidade. “Era para ser três dias de júri, mas acabou sendo um só. Eu sempre venho acompanhar as audiências porque o que eu quero é justiça para minha filha”, declarou.
Por maioria de votos, o júri popular considerou Jonatas Araujo dos Santos, 27, culpado pelo feminicídio de Larissa, com emprego de meio cruel que dificultou a defesa da vítima. Ou seja, os jurados entenderam que a jovem foi assassinada pela sua condição de mulher e os excessivos golpes com um pedaço de madeira causaram a sua morte. A juíza Fernanda Salvador Veiga, do Foro Criminal da Barra Funda, fixou como pena 16 anos, nove meses e 18 dias de reclusão em regime fechado, negando-lhe recorrer da sentença em liberdade na quinta-feira (10/6). Cabe recurso à decisão. Jonatas segue preso.
Para a família de Larissa, porém, o resultado não foi totalmente satisfatório. “Pela crueldade que ele fez com a minha filha, eu achei que ele seria condenado a mais tempo”, disse Rosângela. “Estamos na dúvida se vamos recorrer ou não da condenação. Para mim ainda teve omissão de socorro porque demoraram para socorrer ela”, critica.
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Na época, em 4 de maio de 2019, na esquina da Alameda dos Tacaúnas com a Avenida Indianópolis, por volta das 22h, a transexual Kyara, então com 23 anos, declarou que ouviu uma gritaria na rua e que o motorista de um veículo Voyage prata estava discutindo com Larissa e outra transexual chamada Karla. Ele passou por elas e cinco minutos depois retornou ao local. “Ele passou com o carro, estacionou na rua de trás, voltou com o pedaço de madeira e atacou ela pelas costas”, contou à Ponte, à época do crime. Ela afirmou que o homem também mexeu na bolsa da vítima. “Eu reconheço ele. Não tem como esquecer”, pontuou. Karla disse à polícia que estava com Larissa na esquina, fazendo ponto, já que trabalhavam como garotas de programa, e que o homem passou de carro as acusando de terem lhe roubado. Eles discutiram, o motorista foi embora e voltou em seguida com um pedaço de pau. No depoimento, ela contou que o homem golpeou a cabeça de Larissa e continuou sendo espancada mesmo caída no chão. O homem ainda teria ido atrás de Karla, mas não a alcançou.
As amigas de Larissa, que também chegaram a fazer um protesto no 27º DP (Campo Belo), também reclamaram que o socorro teria demorado 1h30 para chegar e que a Polícia Militar impediu que pessoas se aproximassem da vítima. Além de que o SAMU (Serviço Móvel de Urgência) foi acionado porque Larissa estava viva ainda e chegou a ser levada ao PS Arthur Ribeiro de Saboya (Hospital Jabaquara), onde foi constatado o óbito. Larissa faleceu em decorrência de um traumatismo craniano.
Dois dias depois do assassinato, Jonatas compareceu voluntariamente à delegacia assumindo o crime. Ele alegou que era motorista de aplicativo e que, ao passar pelo local, viu uma mulher acenando para ele e perguntou se ele era Uber. Ao dizer que sim, ele afirma que ela entrou no carro e perguntou se ele queria fazer programa, o que ele teria negado e, em seguida, a mulher teria feito um movimento de se “aconchegar” nele e depois saiu do veículo. Jonatas afirma que, dali, foi a um posto de gasolina e percebeu que faltam R$ 205, tendo retornado àquela esquina e que encontrou Larissa ao lado de outra mulher e alegou que as duas passaram a ameaçá-lo, chutando a porta traseira. Ele disse que, em seguida, estacionou o carro em uma avenida próxima e pegou um pedaço de pau de uma construção no caminho para voltar para casa.
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Ele afirma que as duas se aproximaram dele e que deu uma paulada em Larissa e que a outra mulher tentou tirar o objeto de sua mão, agredindo a jovem novamente. Justificou que atuou em legítima defesa e que não tinha intenção de matar e que “retornou ao local com o pedaço de pau, exclusivamente com a intenção de defender-se caso Larissa e sua amiga viessem para cima dele” e que “não tinha ele ideia da força que utilizou ao desferir os golpes e nem a direção, estando arrependido do resultado de sua ação e que só agrediu aquela pessoa, pois estava com medo e nervoso naquele momento”. Foi então preso.
Decisão é um marco dos direitos
O Ministério Público Estadual, no entanto, denunciou Jonatas por homicídio com a qualificação de feminicídio, destacando que Jonatas teria premeditado o crime por ter retornado ao local com um pedaço de madeira a fim de golpeá-la de surpresa, dificultando sua defesa. “O crime foi cometido por razões da condição de sexo feminino, pois envolveu menosprezo e discriminação à condição de mulher da vítima. É que, embora do sexo biológico masculino, ela havia adotado identidade de gênero feminina. Consta que ela era conhecida e tratada socialmente como mulher, por seus familiares, amigos e pessoas com quem convivia”, escreveu o promotor Romeu Galiano Zanelli Junior.
O Luis Felipe Vizotto Gomes aceitou integralmente a denúncia do MPE, em maio de 2019, e manteve Jonatas preso preventivamente. Em outubro do mesmo ano, decidiu pronunciá-lo ao júri popular, ou seja, determinou que o acusado fosse julgado por um corpo de jurados proveniente da sociedade civil.
De acordo com dados do Dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020, o ano passado teve o maior número de assassinatos de mulheres transexuais e travestis desde o ano de 2017, quando começa a série histórica de pesquisas da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e do IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação). Foram 175 casos de transfeminicídios em todo o Brasil, enquanto 2019 registrou 124 assassinatos.
Para a pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo), Amanda Santos, a sentença ainda é uma exceção em casos de assassinatos de mulheres trans e travestis, mas possibilita que haja uma mudança de mentalidade dentro do judiciário brasileiro e que essa população seja reconhecida. “Esse resultado vem de encontro com as reivindicações da população LGBT, principalmente mulheres trans, porque há um reconhecimento de que o ser mulher abrange outras categorias”, explica. “Ainda existe uma dificuldade dos tribunais da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans porque acabam levando em consideração se houve a retificação do nome ou a cirurgia de redesignação sexual, mas a gente entende que havendo o reconhecimento daquela pessoa como mulher já é mais do que suficiente para que à ela sejam estendidas todas as garantias de direitos”, enfatiza. Isto é, para o judiciário brasileiro, tradicionalmente, a compreensão de uma transexual como mulher dependia de uma configuração de órgãos sexuais.
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Para Rosângela, a ausência da filha deixou um vazio enorme na família. “Quando ela morreu, uma parte de mim morreu junto, é muito triste, é muito duro”, lamentou, em entrevista à Ponte em outubro de 2019. Aos 17 anos, Larissa largou a capital cearense para viver em São Paulo e começou a fazer programas para ajudar a família e sempre mantinha contato.
A jovem foi morta a poucos dias do Dias das Mães e tinha planos, conforme lembrou a mãe em uma das idas às audiências. “Antes do mês de maio, ela me disse que queria fazer uma viagem comigo. Ela disse que iríamos para Natal, que estava vendo as passagens. Duas semanas depois ela me perguntou se eu acharia ruim se não fôssemos para Natal. Em seguida, ela ligou para a Rosana e disse que esse ano não passaria o Dia das Mães com a gente porque estava preparando uma grande surpresa. Pra mim, quando o caixão chegou, era a grande surpresa. Depois eu soube que ela queria reunir a família para levar na basílica de Nossa Senhora Aparecida, que ela era devota”, relatou à reportagem, na mesma ocasião.
Outro lado
A defesa inicialmente manteve a tese de que Jonatas usou o pedaço de madeira para se proteger das duas mulheres que teriam se aproximado e tentado atacá-lo quando estava passando pela Alameda Tacaúnas e que, pela vítima ainda estar com vida, mas o socorro ter demorado, houve uma “lesão corporal seguida de morte, bem como, a legitima defesa”, argumentando que ele não teria sido responsável direto pela morte da jovem. Logo depois da pronúncia ao júri popular, Jonatas trocou de advogados. A Ponte não teve acesso às argumentações da atual defesa dele.