Escola, trabalho, saúde: pesquisa inédita revela a realidade da população trans de SP

    Levantamento feito pela Prefeitura de São Paulo aponta que perfil da população trans da cidade tem maioria de travestis e mulheres trans, jovens e negras, que deixaram de morar com a família precocemente

    II Caminhada pela Paz Sou Trans Quero Dignidade e Emprego de 2017, em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Levantamento inédito traz perfil de pessoas trans e travestis da cidade de São Paulo. A pesquisa foi feita em parceria do CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, com recursos de emendas do gabinete do vereador Eduardo Suplicy (PT).

    Lançado no Dia da Visibilidade Trans, a primeira fase do relatório, que contou com entrevistas de 1.788 pessoas, e foi elaborado entre 22 de dezembro de 2019 e 07 de novembro de 2020, com o objetivo de entender informações detalhadas de pessoas trans e travestis. As informações foram coletadas pessoalmente, antes da pandemia do coronavírus, e, posteriormente, por formulários e ligações.

    A ideia da pesquisa era ir para além dos dados de violência e assassinatos de pessoas trans e travestis e mostrar o perfil sociodemográfico, condições de trabalho, renda e saúde, vivências de situações de violência e cidadania da população trans residente do município de São Paulo.

    Além disso, o objetivo era retratar as condições de vida das pessoas entrevistadas, resgatando suas trajetórias de vida, passando por suas vivências familiares, laborais e também e sua militância na causa trans.

    O documento também apontou que a inexistência de um censo nacional da população trans dificulta o estabelecimento de relações entre o perfil da população trans e o da população em geral, seja no nível nacional, estadual ou municipal.

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    O perfil da população trans e travesti da cidade de São Paulo tem maioria de travestis e mulheres trans (70%), jovens de até 35 anos (70%), solteiras (70%), negras (57%), com escolaridade até o ensino médio (51%) e não se consideram religiosas (40%). Do total de pessoas entrevistadas, 75% deixaram de morar com a família precocemente e destas, 31% atualmente vivem sozinhas.

    A arquiteta Magô Tonhon foi uma das pessoas trans que cuidou da pesquisa e é uma das responsáveis pela segunda fase. À Ponte, Magô conta a importância do documento e lembra que será preciso empenho de parlamentares, reconhecendo que “nossas vidas não são banais e não estão abertas para a negociação”, para que a pesquisa tenha impacto.

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    “É uma pesquisa pioneira, nunca foi realizada no Brasil. Esse mapeamento vai dar subsídio para essas pessoas que compõem o legislativo poderem, em parceria com a sociedade civil, elaborar leis”, pontua Magô.

    A pluralidade de temas abordados na pesquisa, aponta Magô, é seu grande diferencial. “Em geral, se fala de pessoas trans e o uso de droga, pessoas trans e HIV, não um censo demográfico com questões tão amplas e abrangentes. Somos pessoas e somos muito complexas”.

    Para Magô, todas as informações levantadas no mapeamento são importantes, porque mostram a pluralidade das pessoas trans. Ela destaca dois pontos: saúde mental e a saída de casa. “É importante que tenha sido levantado os motivos para se procurar um tratamento psicológico ou psiquiátrico”.

    “O sair de casa por conta própria não é por que está tudo bem. É impossível se reconhecer trans dentro da casa que a gente vem. Eu não consigo me imaginar existindo Magô naquele ambiente. Nem toda violência é física, não precisamos do sangue escorrendo pela testa, há outras formas de impedir as nossas existências”, lembra.

    Mansur Bassit, coordenador de Políticas para LGBTI da Prefeitura de São Paulo, acredita também que a pesquisa deve trazer frutos positivos à população transgênero da cidade. “O Mapeamento Trans é muito importante, porque os resultados podem orientar a evolução das políticas públicas para essa população. Confirmou-se bastante o que os técnicos da Prefeitura que atendem as pessoas trans desde 2008 no primeiro Programa Operação Trabalho (POT LGBTI) já sabiam. Porém, com os dados mais preciso ajustes podem ser realizados para maior efetividade. O dado talvez mais surpreendente seja que 51% da população trans já tem o Ensino Médio completo e ele vai contribuir para que o foco do programa Transcidadania também atinja as pessoas para a conclusão do Ensino Superior”.

    Pesquisa detalhada

    A pesquisa conseguiu traçar um perfil de gênero, idade, escolaridade e raça da população trans e travesti da cidade de São Paulo. Das 1.788 pessoas entrevistadas, 23% de identificam como travesti, 23% homens trans, 48% mulheres trans e 6% pessoas não-binárias.

    Em relação à idade das pessoas entrevistadas, 36% tem entre 21 e 30 anos, 19% mais de 30 anos, 26% entre 1 e 10 anos e 18% entre 11 e 20 anos. Em relação à questão racial, 57% se autodeclara negra (34% parda e 23% preta), 38% se autodeclara branca, 3% indígena e 2% amarela. Outro ponto da pesquisa é a questão de religião entre as pessoas entrevistadas: 39% não possuem nenhuma religião, 23% candomblé ou umbanda, 21% católica, 8% evangélica, 7% espírita e 2% outras.

    Mais da metade das pessoas trans e travestis entrevistadas, 51%, concluíram o ensino médio, 20% cursaram até o ensino fundamental II, 18% até o ensino fundamental I e 12% possuem ensino superior. A pesquisa aponta que a evasão escolar acontece após reprodução de valores morais machistas, que rejeitam pessoas trans e, com isso, elas vivenciam bullying e de ridicularização.

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    A saída de casa é um ponto importante da pesquisa, que afirma que, em geral, a saída é motivada pela percepção de que a pessoa não tem ou não
    terá aceitação no núcleo familiar, caso se identifique com um gênero diferente ao de seu nascimento. Das pessoas entrevistadas, 49% saíram de casa entre 16 a 20 anos, 29% de 15 anos ou menos, 13% de 21 a 25 anos, 4% de 26 a 30 anos, 4% de 36 anos ou mais e 1% de 31 a 35 anos.

    Metade afirmou que saiu de casa por vontade própria, 52%. Entre os homens trans, 61% responderam que saíram de casa por contra própria, seguidos de pessoas não-binárias, com 52%, mulheres trans, 51%, e travestis 47%.

    Em relação à expulsão e conflitos familiares totalizam 47% das respostas. As pessoas não-binárias tem percentuais maiores, com 33%, seguidas de mulheres trans com 31%, travestis com 30% e homens trans com 28%. As travestis tem mais incidência de expulsão por conta das identidades de gênero: 24%. Na sequência, as mulheres trans (16%), as pessoas não-binárias (13%) e os homens trans (9%).

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    Em relação ao mercado de trabalho, que é um dos pontos mais sensíveis para pessoas trans e travestis, a pesquisa aponta 64% das travestis entrevistadas não possuem formação técnica, seguidas de 58% de mulheres trans, 51% dos homens trans e 41% das pessoas não-binárias.

    Quem tem formação técnica, em sua maioria, estão em atividades de serviço (saúde, embelezamento, alimentação, hotelaria e atividades domésticas), principalmente para as travestis e mulheres trans com formação profissional, em que atingem 27% e 23%, respectivamente. A formação na área de vendas e comércio também é uma característica significativa nas duas categorias, alcançando 18% dentre as travestis e 21% dentre as mulheres trans.

    Já os homens trans têm mais formação em ciências sociais e humanas (sociólogos, psicólogos, contadores, administração e marketing): 19%. Esse grupo também reúne uma parcela expressiva de travestis e mulheres trans (ambos com 15%) e pessoas não binárias (14%).

    Outro aspecto destacado são as ocupações remuneradas, que não são trabalhos formais: 46% das travestis entrevistadas e 34% das mulheres trans se declararam profissionais do sexo, acompanhantes e garotas de programa. A pesquisa aponta que esta é a principal variável sócio-ocupacional que distingue as identidades de gênero: homens trans afirmam que não exercem trabalhos sexuais e apenas 3% das pessoas não-binárias trabalham como profissionais do sexo.

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    Nos dois últimos grupos (homens trans e pessoas não binárias), as ocupações possuem um leque maior de atividades: as mais significativas estão em atividades do comércio, como vendedor e atendente de loja ou analistas de telemarketing (que representam 9% dos homens trans) e vendedor ambulante (que representa 8% das pessoas não binárias).

    A relação do tipo de ocupação principal, vínculo de trabalho e posse de formação se refletem na distribuição das pessoas trans pelas faixas de renda. Da totalidade da população trans entrevistada, há duas principais faixas de renda: de R$ 523,00 a R$ 1.045,00 (33%) e de R$ 1.046,00 a R$ 2.090,00 (34%).

    De acordo com a pesquisa, homens trans, destaca-se tanto a camada média baixa, isto é, de 1 a 2 de salário mínimo (37%), como também o percentual de pessoas que se declararam sem renda (10%). As travestis representam o grupo com maior percentual de pessoas que recebem até meio salário mínimo: 24%. E as mulheres trans apresentam uma distribuição parecida àquela encontrada na totalidade da população trans: 35% na primeira faixa e 34% na segunda. 11% das pessoas não-binárias declararam não ter renda.

    Saúde e saúde mental

    Um ponto de destaque no mapeamento é a relação de pessoas trans e travestis com a saúde. Entre mulheres trans e travestis, 85% disseram procurar e serem regularmente atendidas nos serviços de saúde. Entre os homens trans e as pessoas não-binárias, o percentual de atendimentos se reduz, mas continua elevado, em 80%.

    Metade das pessoas trans entrevistadas afirmam procurar regularmente os equipamentos ou serviços de saúde pela necessidade de realizar um tratamento específico e contínuo. Dentre os tratamentos citados estão: terapia hormonal (55%) e tratamento de DST/HIV (24%).

    Já em relação à medicina especializada, 46% da população entrevistada afirma frequentar a endocrinologia e 23% a psiquiatria ou psicologia. Dentre os homens trans e as pessoas não-binárias com vagina, 19% e 15%, respectivamente, passam por tratamento ginecológico.

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    A pesquisa afirma que, por conta da complexidade do processo de transição de gênero e aos possíveis problemas de saúde e emocionais decorrentes de intervenções corporais inapropriadas, os atendimentos psicológicos e psiquiátricos se destacam. Da totalidade da população entrevistada, 30% passam, atualmente, por algum tipo de atendimento psicológico ou psiquiátrico. Dentre os homens trans e as pessoas não-binárias, esse percentual é maior e representa 46% e 41%, respectivamente.

    Em relação aos motivos de 1.134 pessoas trans que passam ou já se submeteram a tratamento psicológico ou psiquiátrico, 47% têm depressão, 25% ansiedade combinada com nervosismo e estresse, 12% na pré e pós-cirurgia de redesignação sexual e 10% têm transtorno afetivo bipolar e outras síndromes, como esquizofrenia.

    Violência

    Apesar de não focar nas violências que pessoas trans e travestis enfrentam, a pesquisa aponta que a situação de extrema violência, física e verbal, está presente nas trajetórias das pessoas entrevistadas: 43% declararam já ter sido vítima de violência física devido à sua identidade de gênero.

    Entre as travestis, a frequência é maior e alcança 58%. Em segundo lugar, se incluem as mulheres trans cuja incidência de violência física atinge 45%, reduzindo-se para 39% em relação às pessoas não binárias e a 28% dentre os homens trans.

    De acordo com a pesquisa, os resultados obtidos reforçam os indícios de que a realização da atividade de prostituição aumenta a exposição de travestis e mulheres trans ao ambiente noturno e urbano, concorrendo para sua sujeição às situações de violência e vulnerabilidade.

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    Essa violência, segundo a pesquisa, está em todos os âmbitos da vida dessas pessoas trans e travestis. Dentre a população trans entrevistada, 39% relataram ter sido vítima de violência, nas ruas, por quatro vezes ou mais. Mesmo com o trabalho de conscientização e denúncia feita por entidades em defesa da população trans, aponta o mapeamento, sair às ruas com segurança e preservar a integridade física ainda são desafios para esse segmento da população.

    O ambiente escolar é o o segundo espaço em que mais ocorre violência física contra a população trans e travesti: das pessoas entrevistadas, 21% enfrentaram situações de violência física na escola por quatro vezes ou mais. O mesmo acontece no ambiente doméstico ou familiar em que a violência física alcança também o índice de 21%, na frequência de 4 vezes ou mais.

    Na sequência, aparecem os transportes públicos, em que a violência verbal é mais frequente: 14% indicaram violência “frequente” e 21% “às vezes”. Locais de trabalho e banheiros apresentaram um percentual significativo de menções de ocorrência frequente (16% e 17% respectivamente).

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