‘Existe uma política de genocídio nas periferias do Brasil assim como existe a política de limpeza étnica na Palestina’

O nono episódio de Da Ponte pra Cá, série de lives da Ponte, recebeu as jornalistas e pesquisadoras Gizele Martins e Soraya Misleh para debater as semelhanças entre Palestina e Brasil na questão da militarização e na violência de Estado

No último mês de maio, Brasil e Palestina registraram mais episódios marcantes do ciclo de violência e militarização que seus territórios enfrentam há anos. A mais recente escalada de violência com bombardeios feitos por Israel na Faixa de Gaza vitimou ao menos 219 palestinos, entre eles muitas crianças. Em uma realidade semelhante, o Brasil registrou mais uma chacina em favelas do Rio de Janeiro. Uma ação policial na comunidade do Jacarezinho deixou 28 pessoas mortas.

Para debater a ligação da violência de Estado entre Brasil e Palestina, o Da Ponte pra Cá da última quarta-feira (9/6) recebeu as jornalistas Gizele Martins, moradora e articuladora do Complexo da Maré (RJ), e Soraya Misleh, coordenadora da Frente em Defesa do Povo Palestino. O diretor de redação, Fausto Salvadori, comandou a conversa no canal da Ponte e pontou no início da live como a militarização e as tecnologias de vigilância usadas por Israel contra o povo palestino têm atravessado fronteiras.

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Ambas as convidadas pesquisam e são impactadas com as políticas de policiamento e ocupação dos territórios brasileiros e palestinos. Gizele Martins é mestre Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas pela UERJ e autora do livro Militarização e Censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré. Jornalista palestino-brasileira, Soraya Misleh é mestre e doutoranda em Estudos Árabes pela USP e escreveu Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina.

Apesar dos recentes bombardeios registrados, Soraya lembrou que a violência é presente constantemente na Palestina há mais de 70 anos, mas a mídia não tem mostrado. Segundo ela, a chamada “nakba contínua”, ou catástrofe contínua, acontece desde a fundação do Estado de Israel em 1948 com o plano de partilha da ONU (Organização das Nações Unidas) para árabes e judeus.

“Foram expulsos cerca de 800 mil palestinos de suas terras, inclusive o meu pai e a minha família paterna, e destruídas cerca de 500 aldeias, inclusive a da minha família. Israel avançou naquele momento o seu projeto colonial. A aldeia que meu pai nasceu tinha dois mil habitantes e ela seria dividida ao meio com a recomendação de partilha da ONU, dando sinal verde para os planos de limpeza étnica”, disse.

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Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental são os territórios palestinos em que se encontram o foco da violência da ocupação israelense hoje. “Gaza está sob bloqueio desumano em que nada entra ou sai sem que Israel permita. Na outra parte da Palestina, a Cisjordânia, existe um regime institucionalizado de apartheid em que todos os direitos humanos são violados com um muro de 700 quilômetros de comprimento”, descreveu Soraya. A jornalista comentou também que o regime tem separado famílias e aumentado o número de refugiados em países árabes, que chega a cerca de 5 milhões de pessoas, quase metade da população palestina.

“O sangue palestino está sendo derramado todos os dias e o que sustenta isso é compra dessas tecnologias militares pelos governos e que derrama o sangue aqui no Brasil, promove o genocídio do povo pobre, negro e indígena”, reiterou Soraya, lembrando da morte da jovem negra grávida Kathlen Romeu durante ação policial no Complexo do Lins de Vasconcelos, Rio de Janeiro.

Brasil e Palestina na mira da militarização

Moradora da Maré, um dos maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro, a jornalista e pesquisadora Gizele Martins acompanha os casos de violência policial nas periferias. Ela contou durante o bate-papo que esteve na Palestina em 2017 a convite do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), que trabalha para cessar o apoio internacional a Israel e às instituições que promovem a opressão contra o povo palestino. O BDS também já atuou em conjunto com movimentos sociais liderados por mães de vítimas da violência policial no Brasil.

Na viagem, Gizele observou vivências semelhantes à do Rio, como a presença de ‘caveirões’, veículos blindados da polícia, e outras singularidades da vida dos palestinos sob territórios ocupados. “As armas que fazem do povo palestino um grande laboratório de política da morte, o maior laboratório feita por uma política israelense, são as armas que matam nas favelas e periferias do Rio de Janeiro”, afirmou.

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Outra analogia feita pela jornalista foi a presença dos postos de controles israelenses, os chamados ‘checkpoints’, e a época que a favela da Maré esteve ocupada por militares, durante o ano da Copa do Mundo de 2014 no Rio, em que os moradores tinham que apresentar a identidade para entrar e sair da comunidade. “A gente ainda vivência consequências da ditadura, dos autos de resistência, das chacinas que não param principalmente na baixada Fluminense e dos desaparecimentos forçados”, pontuou Gizele.

Ela afirmou que as violações também acontecem na falta de liberdade de expressão e em direitos básicos de sobrevivência, os quais são negados pelo Estado que não fornece e garante energia, água, saúde e educação de qualidade aos moradores das favelas e periferias brasileiras.

Tecnologias militares de Israel

Acerca das violações do Estado israelense, Soraya Misleh afirmou que boa parte da mídia acaba perpetuando a desumanização dos palestinos ao falar em terrorismo do Hamas. Segundo ela, apesar das críticas serem válidas, o Hamas é um partido político que resiste à uma ocupação na Palestina, uma atuação legítima prevista pelo Direito internacional e pela ONU.

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A jornalista descreveu o apoio financeiro internacional que faz de Israel a quarta maior potência bélica do mundo. “O imperialismo estadunidense fornece [a Israel], desde 2016, 3,8 bilhões de dólares ao ano. Eles têm interesse em manter isso, porque a Palestina é estratégica geopoliticamente. Ela é local de trânsito de mercadorias, ligando África, Ásia e Europa. Então, a ocupação dá muito lucro. Os nossos corpos ocupados, o sangue palestino derramado acaba servindo aos interesses políticos e econômicos”, explicou a jornalista sobre as tecnologias militares, pelas quais cerca de 70% são destinadas à exportação. Diante dessa problemática, o movimento BDS no mundo luta pelo embargo militar à Israel e por direitos fundamentais aos palestinos. A organização ajudou a pôr fim no sistema de apartheid na África do Sul.

De acordo com Soraya, essas mesmas tecnologias estão sendo vendidas para o Brasil. A aproximação diplomática com os Estados Unidos e Israel marcaram a participação brasileira em decisões de opressão aos Palestinos, como a partilha do território. “Nos últimos 15 anos, o Brasil se tornou o quinto maior importador de tecnologia militar israelense. Em 2008, o Brasil foi chave para que se assinasse o tratado de livre-comércio entre Mercosul e Israel. O que a gente vê é que isso se amplia com o Bolsonaro, que é o sionismo explícito na cadeira do Planalto”, afirmou.

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Soraya também chamou atenção para a forma de atuação dos governos estaduais que repetem as mesmas táticas de policiamento, invasão de casas e a compra de armamento de guerra vindos de Israel. “Na semana passada, estava na frente de Heliópolis [favela da zona sul de São Paulo] um blindado israelense, que é o que eles chamam de ‘guardiões’ e que passaram a comprar em 2015 e 2016. Quer dizer, dinheiro para isso são milhões de reais gastos. Existe uma política para as periferias de genocídio assim como existe a política de limpeza étnica na Palestina”, ressaltou sobre as políticas racistas praticadas.

Gizele analisou que os altos gastos com a militarização mostram uma escolha que não prioriza os investimentos em educação, moradia e saúde, nem mesmo durante a pandemia. “As escolas nas favelas do Rio de Janeiro vão até o ensino fundamental, não temos o ensino médio. Não tem por que uma política de Estado fazer com que a gente pare em determinada área de ensino. Eles controlam até o nível de escolaridade que a gente vai ter”, nota a jornalista. A presença do Estado nas favelas e periferias, segundo ela, se apresenta mais na política de policiamento que promove racismo e massacre contra pessoas negras e pobres.

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As jornalistas lembraram que a identificação entre Brasil e Israel também se apresenta no campo religioso. A instrumentalização da religião, segundo Soraya, tem interesses de ocupação e poderio israelense, e associa cristãos e judeus a acreditar em uma suposta realidade palestina que não se confirma. Gizele explica que, no Brasil, algumas igrejas neopentecostais fazem “um uso político e religioso sobre uma população [periférica], que é uma forma de controle e uma forma de apagar as identidades dessas pessoas. Alguns anos atrás, essas mesmas pessoas tinham outras religiões de matriz africana”, conta.

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Para Gizele e Soraya, é preciso pressionar os governos para romper com esses acordos bélicos e as políticas racistas. A campanha BDS tem crescido no mundo, principalmente na Europa e na América Latina. Elas acreditam que as lutas contra as opressões e em defesa da vida e dos direitos humanos devem ser internacionalizadas.

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