Para especialistas e integrantes do Judiciário, histórico de violência policial no Brasil e direito de defesa do suspeito exigem encontro presencial com juiz
As audiências de custódia, dispositivo previsto pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e considerado fundamental detectar violações sofridas por pessoas presas, podem passar a ser por videoconferência. Tudo isso por causa da pandemia do coronavírus. As audiências de custódia exigem que qualquer pessoa presa seja levada a um juiz em até 24 horas para que ele decida a real necessidade da manutenção da prisão.
O CNJ já colocou o tema na lista de votação e a utilização de vídeo se estende a toda e qualquer audiência, ao menos enquanto durar o isolamento social.
Na resolução, há a proposta de que as videoconferências substituam as sessões presenciais para evitar o contágio por coronavírus. Para isso, há uma série de regras para a realização, como garantia de conexão de internet de qualidade, gravação da audiência e salvamento do conteúdo em uma “nuvem”. A exceção são crimes inafiançáveis e crimes com agravamento de pena, que devem continuar acontecendo presencialmente.
O principal questionamento de especialistas e operadores do sistema de Justiça ouvidos pela Ponte é sobre a eficácia das audiências de custódias feitas online. A razão de ser desse mecanismo é justamente levar a pessoa presa até um juiz para que, além de definir a necessidade da prisão, ela possa dizer se foi vítima de agressões ou tortura por parte da polícia no momento da captura.
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Inicialmente, o tema seria debatido no dia 22 de junho, mas saiu da pauta e, até o momento, não foi recolocado. E nem há previsão. O texto a ser votado inclui também as audiências em geral.
Com relação à defesa do preso, o texto inclui uma conversa virtual da pessoa com seu defensor em espaço privado, sem que o juiz e o Ministério Público acompanhem o que for falado, como já acontece no rito das audiências de custódia presenciais. As testemunhas não podem ter contato uma com a outra dentro do sistema da audiência.
Segundo Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), é inconcebível alcançar o objetivo da audiência de custódia em um procedimento por vídeo. “Como o juiz fará isso [prevenção e combate à tortura] por um vídeo?”, questiona, ao mencionar possíveis marcas de violência e a insegurança da pessoa denunciar uma eventual violação.
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Na visão dele, as audiências de custódia deveriam ser encaradas como serviço essencial e, assim, ocorrerem presencialmente mesmo com a pandemia. “São três atores: juiz, advogado e promotor, além da pessoa. É possível fazer a audiência em um ambiente de distanciamento entre todos e seguir os critérios exigidos de higiene”, explica, citando que a limpeza do ambiente com “um pano com álcool” diminuiria de sobremaneira o risco de contaminação.
A visão do presidente do IDDD é compartilhada pela defensora pública Caroline Tassara, que comanda o Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria do Rio de Janeiro. Ela explica que as audiências por vídeo já são previstas em casos excepcionais antes da pandemia e “que devem continuar assim”. Ou seja: sendo exceção e não regra.
“O direito de presença do réu é essencial. O juiz, a partir dali, terá sua percepção ao formar sua convicção”, pontua a defensora. Ela considera grave a possibilidade de o trabalho online ser repassado também às audiências de custódia. Ela, inclusive, afirma que é melhor não ter do que ela ser feita pela internet. Para Caroline, existe o risco de as audiências de custódia online serem vistas como um sucesso e mantidas mesmo após a pandemia.
“[A audiência de custódia] Traz humanização que só é possível a partir do momento que se enxerga a pessoa ao vivo. Não pode ser substituído por uma tela de computador”, defende. Segundo Caroline, entre 2018 e 2019 houve diminuição de 20% nos relatos das pessoas presas de terem sofrido violência por policiais em prisões – a pesquisa foi feita pela própria Defensoria com os presos antes da realização das audiências.
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“O fato de a audiência existir promove uma mudança na cultura do esculacho policial. Antes, os policiais sabiam que não ia acontecer nada, a pessoa só teria contato com o juiz três meses depois. Agora, o magistrado enxerga uma marca no corpo no dia seguinte à prisão”, explica.
Desembargadora federal do Rio de Janeiro, Simone Schereiber é contra a digitalização de todas as audiências. Seu argumento é que há interferência direta na defesa do suspeito. “A presença da pessoa na sala é fundamental para o exercício do direito de defesa. Entre essas ações ter contato direto com o defensor técnico em audiências. Tem que ser em geral, não só nas audiências de custódia”, defende.
A magistrada cita, ainda, que o histórico “muito forte” de violência policial no Brasil ressalta a importância das audiências de custódia serem feitas presencialmente. “A pessoa custodiada sob guarda e tutela dos agentes policiais, em outro ambiente, não tem condição de o juiz a proteger para denunciar uma situação de tortura”, afirma. “É uma questão insolúvel. [Fazer por vídeo] Contribui com a impessoalização”.
Por outro lado, há magistrados defensores da proposta do CNJ – ainda em compasso de espera para votação. Ivana David, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera a realização destas audiências uma ferramenta importante para as garantias de defesa da pessoa suspeita por um crime, mesmo com o procedimento sendo feito por vídeo.
“Não consigo entender a motivação de se preferir que o preso não seja ouvido na audiência. Nenhum tribunal anula processo por falta dessa audiência”, diz, considerando uma “incoerência” essa decisão. Afirma existir a possibilidade de a pessoa ser condenada e a pena não mudar.
“Permitir a exceção é só um plus que define os direitos daquele que pede o direito de ser ouvido. [Sem a audiência] Se tira a possibilidade de se questionar [a prisão]. Não é a favor do réu, isso milita em prejuízo do acusado”, sustenta.
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