Fran, das Mães de Maio: ‘piorou muito essa conduta racista e classista da engrenagem que a violência tem’

Assistente social e militante no combate à violência policial, Francilene Fernandes foi a convidada do oitavo episódio de Da Ponte pra Cá, série de lives da Ponte, e contou os frutos e as sequelas dos 15 anos dos Crimes de Maio

Os Crimes de Maio completam 15 anos sem solução e reparação às famílias das mais de 500 pessoas que morreram nas periferias do Estado de São Paulo, em maio de 2006. O massacre promovido pela polícia e por grupos de extermínio em retaliação aos ataques do crime organizado contra as forças de segurança deixaram mais vítimas em duas semanas do que os 21 anos de repressão da ditadura militar no Brasil. Para resgatar a memória de cada uma delas, o Movimento Mães de Maio transforma o luto em luta.

No Da Ponte pra Cá de quarta-feira (26), comandado pela repórter Beatriz Drague Ramos, recebemos a assistente social e ativista Francilene Gomes Fernandes para falar da luta de quem perdeu familiares para a violência de Estado. Ela também é doutoranda pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e estuda a importância da articulação entre mídias alternativas e os movimentos sociais no enfrentamento à violência policial. Por problemas técnicos, Debora Maria da Silva, uma das fundadoras das Mães de Maio, não pode participar da conversa como previsto.

Francilene não tem notícias sobre o paradeiro do irmão desde maio de 2006. Paulo Alexandre foi mais uma das vítimas de desaparecimento forçado durante o período do massacre. “O desaparecimento é na verdade um sequestro, que é feito pelo policial que deveria zelar pela segurança do cidadão e pelo nosso direito de ir e vir. Ele aborda a pessoa, age com violência, sequestra e a executa”, explica a assistente social sobre o assunto ser ainda pouco discutido.

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Neste mês, o Movimento Mães de Maio, a Defensoria Pública de SP e o Conectas Direitos Humanos denunciaram os desaparecimentos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Estudos sobre violência e luto

Francilene cursava o terceiro ano da faculdade de Serviço Social quando os Crimes de Maio aconteceram. Mas aquela não foi a primeira vez que a assistente social perdeu um parente para a violência. Sua irmã, Juliana, foi assassinada em 1998. “Para mim, o desaparecimento do meu irmão foi um divisor de águas na minha formação, foi um momento bem difícil”, recorda.

O assunto virou tema do trabalho de conclusão de curso da então formanda. Ela conta que se questionava sobre o sumiço do irmão na época, querendo entender o envolvimento da polícia e porque nada era feito sobre o caso. Na pesquisa, Francilene constatou que o desaparecimento é uma prática antiga das forças de segurança, sendo muito frequente no período da ditadura.

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No mestrado, Francilene aprofundou os estudos sobre os Crimes de Maio e o que eles representaram _segundo ela, a vingança da polícia que matou muitos jovens periféricos. Atualmente, Francilene trabalha no doutorado em que pesquisa as estratégias de combate à violência policial por movimentos sociais que acolhem as famílias das vítimas e as mídias independentes que fazem a cobertura jornalística dos casos, como a Ponte.

“Existe essa articulação. E essa articulação, no meu ponto de vista, é o que está salvando vidas. Não temos dados quantitativos e estatísticos sobre isso, mas com certeza se tivéssemos essa condição, conseguiríamos mostrar que isso constrange a polícia e o Estado a continuar agindo desse jeito”, afirma a assistente social.

Apesar dos avanços no debate sobre questões raciais e que envolvem a violência policial, ainda há um longo caminho para percorrer e ver mudanças efetivas na estrutura da sociedade. Para Francilene, um dos problemas é a falta de discussão sobre a própria realidade em que vivemos e o quanto naturalizamos essa situação. “O que nos causa muita estranheza é como a gente consegue se solidarizar e se revoltar legitimamente com mortes significativas, como a do George Floyd, que acaba de completar um ano, mas não conseguimos ver essa mesma indignação com os nossos mortos brasileiros”, lamenta.

“Nós [brasileiros] nos formamos como sociedade que está alicerçada no mito da não violência. É uma sociedade que nega o racismo, que nega o período escravocrata, que nega a dizimação indígena”, prossegue. Esse pensamento se perpetua até hoje e dificulta os questionamentos sobre o alto índice de mortes de civis, sempre envolvendo jovens negros e periféricos. “Em São Paulo, mais de mil civis mortos em falsos confrontos, ou confrontos forjados, são jovens executados sem nenhuma resistência”, exemplifica.

Combate à violência policial

Nos últimos 15 anos, Francilene avalia que a luta coletiva, principalmente promovida por famílias que tiveram suas vidas atravessadas pela violência, tem se destacado nas denúncias. “Como a Debora [das Mães de Maio] costuma dizer, é a marcha fúnebre de familiares. Esses grupos aumentaram consideravelmente. O próprio Estado nos construiu e a gente vem ressignificando essa construção como militante, pois não queríamos estar falando sobre violência, fomos obrigados a entrar nessa luta”, afirma.

Quando os Crimes de Maio completaram uma década, em 2016, foi criado a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado. O encontro reúne estratégias para buscar respostas e a reparação por parte do Estado para os crimes cometidos. Francilene acredita que um dos pontos principais para fortalecer essa articulação é o movimento ser independente, ou seja, não ter vinculação com partidos políticos. A sustentação da ação vem por meio de doações e projetos feitos por editais.

As Mães de Maio são pioneiras nessa luta. No fim do ano passado, o movimento deu mais um passo e protocolou um Projeto de Lei para apoiar vítimas de violência estatal em São Paulo, com orientações e auxílio psicológico e social. Essa cobrança e vigilância das mães é uma forma de combater os casos que, diariamente, têm se repetido no país.

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“É uma engrenagem da violência que começa com o policial disparando o gatilho, executando com vários tiros e alegando resistência [da vítima]. Passa pela Polícia Civil que não investiga direito, ignora o acontecido. Quando o inquérito é concluído, depois de ficarem prorrogando e não cumprirem os 30 dias, o Ministério Público arquiva, não cumprindo seu papel de ser fiscalizar a ação policial”, afirma Franciele.

A assistente social diz que mesmo com todo o trabalho para que o caso chegue na Justiça, poucos deles têm solução efetiva e cita a chacina de Osasco, na Grande São Paulo, como exemplo. Apesar de toda a visibilidade na mídia da ação policial, que deixou 23 mortos em 2015, e o trabalho do Ministério Público, o último julgamento inocentou os policiais envolvidos.

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“Infelizmente piorou muito essa conduta racista e classista de toda essa engrenagem que a violência tem, o que também envolve a Defensoria Pública. Nós, até hoje, quando precisamos dessas ações iniciais que são fundamentais, temos contado com a ajuda de advogados parceiros e militantes, pois não conseguimos chegar muitas vezes na Defensoria por várias questões”, conta.

Francilene também chama atenção para o abandono das autoridades e de parte dos movimentos sociais aos familiares após um tempo da violência contra seus entes, principalmente das mulheres que se tornam mães solteiras ou passam a viver sem auxílio dos filhos. “É uma dupla violência. Primeiro pela violência da perda dos nossos familiares e, depois, essa violência estatal. E também dentro da própria esquerda, que não nos dá esse apoio. Isso só prejudica a luta e fortalece o Estado“, pontua.

Mães de Maio: memória e resistência

A repórter Beatriz Drague Ramos destacou durante a conversa que os Crimes de Maio ainda não são classificados por boa parte da mídia e da própria sociedade como crimes de Estado. Um dos pilares do Movimento Mães de Maio é a luta para manter a memória sobre o que aconteceu com as 505 vidas tiradas em 2006.

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O intuito não só diz respeito aos cuidados com a dor e o luto das famílias, mas também ao fato marcante que é um massacre na história do país. Francilene cita algumas iniciativas que se consolidaram nos últimos anos. “Uma outra conquista do movimento é que nós temos desde 2013 o reconhecimento da semana estadual das vítimas da violência, todo ano, de 12 à 19 de maio. Em 2019, entrou para o calendário oficial da capital paulista”, conta.

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O cotidiano do movimento é um ato de resistência. Segundo Francilene, a pandemia piorou a situação e exigiu uma articulação maior. Diariamente, as integrantes recebem denúncias de violência policial e prestam apoio às famílias com orientações, ou até mesmo com questões básicas de sobrevivência, auxiliando com cestas básicas e moradia.

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