Idoso negro pede indenização ao Estado por ter sido preso e condenado sem provas

Francisco Carvalho, o Chico, foi absolvido de dois roubos por reconhecimento irregular que aconteceram em 2018; manco e com câncer na época, pintor ficou oito meses preso e agora família quer reparação

Chico (de camiseta branca e bermuda preta) ao lado da esposa Carmem (blusa estampada e short cinza), da mãe e dos irmãos em viagem à Bahia | Foto: Arquivo pessoal

“Foi um sofrimento muito grande”, resume o pintor Francisco Carvalho Santos, 64, os oito meses que passou preso ao ser acusado, e depois condenado, por dois roubos a um posto de gasolina e ter fugido a pé após um reconhecimento irregular feito pelos frentistas em 2018. Manco e na época com câncer no cólon, Chico, como é conhecido, enfrentou uma saga até ser absolvido dos crimes em 2021. Passados quatro anos desde que sofreu a abordagem policial que mudou a sua vida, agora ele quer reparação. “O Estado tem que reconhecer o erro que cometeu”, disse à Ponte.

Em março, a família entrou com uma ação judicial com pedido de indenização por danos morais no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). A advogada Debora Nachmanowicz, que representa Chico, argumenta que o Estado foi negligente desde o início. “Não houve uma investigação porque a única prova que sustentou tudo foi o reconhecimento irregular”, destaca.

Na época, em agosto de 2018, o pintor, que trabalhava de forma autônoma, estava a caminho de casa e passou próximo ao posto de gasolina. Os frentistas ligaram para a polícia acreditando terem visto o assaltante que teria cometido dois roubos, um que aconteceu dois meses antes e outro um mês antes. Segundo eles declararam no boletim de ocorrência, o suspeito era um homem alto, pardo, de cabelo parcialmente grisalho e armado que roubou o estabelecimento em junho e julho e fugiu a pé.

Os policiais tiraram uma foto do pintor durante a abordagem e mostraram para as vítimas, processo que contraria o artigo 226 do Código de Processo Penal, já que é determinado que na delegacia seja feita a descrição do suspeito e pessoas com características semelhantes sejam apresentadas. Ele também foi apresentado sozinho para as vítimas, o que também contamina o procedimento pela prática do show up, que é indicar apenas uma pessoa como suspeito e induzir a memória a encaixar aquele perfil à lembrança do que aconteceu.

O reconhecimento foi a única base da prisão e da condenação de sete anos de prisão de Chico que, na época, também tratava de um câncer com sessões de quimioterapia. O idoso ficou preso durante as investigações e só foi solto em 2019, após um pedido de liberdade provisória feito pela advogada, que usou reportagem da Ponte como parte da fundamentação. “Ele não foi preso em flagrante, ele foi preso muito tempo depois do crime. Também não passou por uma audiência de custódia que poderia ter visto a situação de saúde dele”, critica Debora.

“Ele não era e nunca foi uma ameaça à sociedade para ficar preso. Ele não tinha nenhum histórico de violência e, para ter uma prisão preventiva, você precisa de uma prova de periculosidade concreta. Estamos falando de um idoso, manco, que estava com câncer e não tinha nada [do roubo]”, aponta a advogada.

Os funcionários do estabelecimento disseram que as imagens de segurança do local teriam gravado os assaltos, mas, apesar de requeridas diversas vezes durante o processo, as filmagens nunca foram fornecidas. Debora conseguiu uma gravação de um prédio vizinho à residência de Chico que o mostrava saindo de casa para jogar o lixo fora e retornando depois no mesmo horário dos crimes, além de testemunhos de vizinhos e da patroa para quem o idoso prestava serviço. “É um caso em que existiam várias provas que poderiam ter sido produzidas na investigação e que o Estado simplesmente ignorou”, critica.

Além disso, havia a própria questão de saúde de Chico. “Ele teve que mudar o tratamento porque eles [a unidade prisional] não levavam ele para tomar os remédios e fazer a quimioterapia com a frequência necessária. Por sorte, ele conseguiu vencer o câncer, mas ele correu risco de vida numa cela superlotada, insalubre, tendo que dormir no chão”, argumenta Debora Nachmanowicz.

O pedido ao Estado é de pouco mais de R$ 133 mil reais, sendo R$ 100 mil pelos danos morais e o restante pelos gastos materiais que a família teve ao longo do processo e do período que o pintor esteve preso. A esposa, a faxineira Carmem dos Santos, 54, levava itens básicos de higiene e alimentação, o chamado “jumbo”, quando o visitava. O cálculo total leva em consideração a renda da família, que é autônoma, os gastos materiais e a jurisprudência dos tribunais para casos semelhantes de pessoas presas e condenadas injustamente que recorreram à Justiça para serem indenizadas.

“Dinheiro nenhum apaga essas cicatrizes que ficaram”, afirma Carmem. “Mas a gente conversou e decidiu que tinha que entrar, sim, com esse pedido de indenização porque foi muita coisa que a gente passou. Estamos em busca dessa vitória porque são milhões de pessoas que estão nessa situação.”

Para Chico, também é uma forma de ter o nome limpo pelo Estado. “Nossa família sempre foi correta, então foi uma situação de muita vergonha. Como você vai pagar por algo que não deve?”, questiona.

Ajude a Ponte!

Chico e Carmem pretendem voltar a morar na Bahia porque entendem que a idade já chegou e precisam de tranquilidade. “Eu já estou quase com 65 anos, na minha idade não tem mais como trabalhar”, afirma. Por outro lado, ficam orgulhosos de ver que o filho, que completou 18 anos, passou na faculdade e vai ser o primeiro da família a cursar o ensino superior. “Graças a Deus nossa família é uma família correta”, diz Chico.

O que diz o governo

Em nota, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) disse que o caso está sob análise, já que ainda não se manifestou no processo.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas