Tira e cartum foram retirados da plataforma sem explicações: “Falar de racismo é bater de frente com um muro de privilégios”, diz Triscila Oliveira, corroteirista de “Os Santos”
Uma tirinha, parte de uma série que fala sobre racismo e privilégios da branquitude rica do Brasil, foi retirada de uma rede social sem maiores explicações. O mesmo aconteceu com um cartum, que mostrava como a polícia age em bairros periféricos e bairros ricos.
Ele foi inspirado no vídeo divulgado pela Ponte em que PMs foram humilhados pelo empresário Ivan Storel ao irem atender uma denúncia de violência doméstica em Alphaville. Falar de racismo em um país racista não é fácil. Mas desenhar pode ser pior.
Além das censuras aos conteúdos antirracistas, os artistas têm outra coisa em comum: as críticas ferrenhas aos discursos e posicionamentos de Jair Bolsonaro (sem partido). Com isso, recebem discursos de ódios dos apoiadores do presidente diariamente.
As censuras em obras que denunciam as mazelas sociais brasileiras não são de hoje. Em abril de 2018, Gidalti Moura Júnior, autor do livro “Castanha do Pará” (2016), que trazia na capa uma ilustração de uma violência policial, foi retirado de uma exposição do Parque Shopping Belém, no Pará.
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Em setembro de 2019, Marcelo Crivella (PRB), prefeito do Rio de Janeiro pediu que os organizadores da Bienal do Rio recolhessem a HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças”, que continha um beijo entre dois homens na capa. Para Crivella, o conteúdo apresentado, no caso o beijo, era impróprio para menores.
Um das produções que vem sofrendo censuras desde dezembro é a série de tirinhas “Os Santos“. As tirinhas contam a vida de uma família branca e rica, típica da elite carioca, que tem uma família negra de empregados. As desigualdades de raça, classe e gênero são comumente ilustradas nesse trabalho.
O projeto foi idealizado pelo ilustrador Leandro Assis, em dezembro de 2019. Antes, ele fazia críticas aos eleitores de Bolsonaro em “Bolsominions”. Quando decidiu criar “Os Santos”, Assis chamou Triscila Oliveira para assinar os roteiros da série com ele, que entrou no projeto em janeiro.
A primeira ilustração derrubada no Instagram foi a tirinha 4, intitulada de “O anjo“. Depois de contestar a derrubada do conteúdo, o post voltou para o ar. O mesmo não aconteceu com a tirinha 17, intitulada “Minha alma”. “Assim como na série anterior, eu comecei a sofrer ataques. Recebi várias denúncias e o Instagram derrubou o conteúdo”, conta o ilustrador.
“O Instagram te avisa, mas te dá uma justificativa muito vaga, de que o post está sendo excluído por não respeitar as diretrizes da comunidade. Você tem uma chance de recorrer, mas não pode argumentar, simplesmente pode dizer que houve um erro”, aponta Assis.
Ter o conteúdo retirado sem justificativa, aponta o ilustrador, é frustrante. “Eu entendo que o Instagram precisa manter um ambiente minimamente civilizado, sem incitamento ao ódio, sem discurso intolerante. Também entendo que é difícil, em um universo de pessoas postando coisas, cuidar das denúncias”, pontua.
“Mas o que é muito complicado é quando você vê dois pesos e duas medidas acontecendo claramente. Teve um momento em que eu achei que era pessoal. Muitas pessoas que me seguem, contam que, para me encontrar no Instagram, é preciso digitar o meu perfil todo. O que não acontece com outros perfis. Sem contar que eu sou constantemente bloqueado. Não posso curtir ou comentar as coisas no meu próprio perfil”, lamenta.
Com a retirada dos conteúdos, Assis passou a encaminhar por mensagem direta para os seguidores a tirinha censurada, já que muitos leitores acompanham a série em ordem cronológica e perceberam que a tirinha 17 desapareceu da plataforma.
Assis conta que, diante do cenário político e social do país, suas inspirações são baseadas em situações reais. “Temos um presidente que defende uma perseguição às minorias desde antes da eleição, que se mostra racista, que se mostra intolerante, e isso permite que, parte da população, que é intolerante, que é racista, volte a falar e agir da maneira que sempre fez”.
Ele comenta a morte de Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Souza, morto aos cuidados da patroa da mãe, Sarí Gaspar Côrte Real. “É um caso trágico, que reflete o que é a elite brasileira, apegada aos privilégios, de manter uma classe, a maioria da população, como serviçal, com uma mentalidade escravocrata que ainda é muito presente”.
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As tirinhas, aponta o ilustrador, têm o poder de mudança. “Os meus seguidores me falam que desenhando as pessoas entendem. Há pessoas que votaram no Bolsonaro, que não concordam com o que eu costumo dizer, mas dizem que as tiras ajudaram a pensar melhor em certos pensamentos, atitudes, que viram de uma nova perspectiva uma coisa que não tinham enxergado ainda”.
Triscila Oliveira, corroteirista da tirinha, conta que percebeu a dificuldade de trabalhar dentro da plataforma Instagram ainda em 2018, durante as eleições presidenciais, quando realizava trabalhos de ciberativismo. O alcance das postagens d’Os Santos, conta Triscila, tem caído constantemente. “Um alcance de 1,5 milhão baixa para 200 mil de um dia para a noite”, exemplifica.
“Já são mais de 600 milhões de brasileiros na plataforma, então podemos fazer reais mudanças através de produção de conteúdo. Mas o Instagram não dá entrega nas postagens e isso prejudica demais”, argumenta.
“Blogueiras fitness, brancas, padrão europeias tem um alcance absurdo. Enquanto gente preta, até mesmo blogueiras pretas, não chegam nem aos pés. Estamos falando de um país extremamente racista e existe essa diferença de alcance”, avalia.
Falar de racismo e causas sociais na internet incomoda. Para Triscila, isso ainda é uma herança escravista. “Para muita gente, existe esse viés racista de que o lugar do preto é na miséria, é na favela, é na periferia, é nas margens da sociedade. Eles não conseguem enxergar que não existe debate de raça sem classe e de classe sem raça”.
A roteirista aponta falhar na postura antirracista que vem crescendo nas redes sociais, inclusive no Instagram. “Falar de racismo é bater de frente com um muro de privilégios, mas muitas pessoas não querem tomar responsabilidade desses privilégios, porque todos eles foram construídos em cima do racismo”.
“Para você ser antirracista, para você estar do lado de pessoas que estão produzindo conteúdo antirracista, permanecendo ali diante de tanta censura, é necessário trabalhar, se mover para fora da sua zona de conforto. E ninguém quer isso”, conclui Triscila.
‘É o pior momento desde a ditadura’
Quem também vem sofrendo censuras no Instagram é o cartunista e chargista baiano Gilmar Barbosa, criador do perfil “Cartunista das Cavernas“.
Recentemente, Gilmar fez uma crítica sobre o empresário Ivan Storel, 49 anos, morador de Alphaville, condomínio de luxo de Santana do Parnaíba, na Grande SP, que humilhou um policial militar que foi atender um chamado de violência doméstica na casa dele: “Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”.
A charge retirada da plataforma foi um trabalho rápido e feito para apontar o que a situação já mostrou: como a PM age em bairros ricos e nas periferias.
Gilmar conta que achou o vídeo tão absurdo que, imediatamente, desenhou. “Na periferia, a gente vê o descontrole de alguns elementos da polícia, que têm problemas de questões emocionais. A PM é uma classe que sofre com baixos salários, pressão psicológica, que são desestruturados. É uma estrutura de polícia completamente falida”, aponta.
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Esse é o pior momento para produzir conteúdo crítico ao governo Bolsonaro e com críticas sociais, conta Gilmar, desde que começou a trabalhar com charges em 1984.
“Da eleição [de Bolsonaro] para cá, venho sofrendo ameaças de censura e perseguição, principalmente quando caímos na rede dos fanáticos bolsonaristas. Eles tentam de todas as maneiras, usando todas as ferramentas, te intimidar, tirar o post”, conta.
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Agora, afirma o cartunista, “tudo está escancarado”. “A gente tem uma ferramenta importantíssima que é o celular. Temos jornalismo independente, artista independente que estão escancarando todas as opressões. As pessoas defendem as suas posições, racistas e discriminatórias, de peito aberto”.
Para ele, antes a imprensa, de certa forma, controlava as informações e, muitas vezes, sob a égide de interesses políticos. “Só estamos vendo e reportando tudo aquilo que já acontecem há muito tempo, todas essas desigualdades raciais e sociais”, aponta.
‘Retirar conteúdo crítico é muito grave’
Para Paulo José Lara, assessor de projetos no programa de Direitos Digitais da ONG Artigo 19, que defende a liberdade de expressão e de acesso à informação, só em último caso pode haver restrição à liberdade de expressão de manifestações artísticas.
“É óbvio que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, ninguém pode sair por aí dizendo o que passa pela cabeça sem sofrer alguma consequência. Mas é importante saber que ela também não é um direito isolado. Para compreender quais são as abrangências da liberdade de expressão, precisamos entender o contexto de tal sociedade”, explica.
Como o Brasil está passando por um momento “extremamente difícil e perigoso politicamente, com ameaças à ordem democrática e à liberdade individual”, afirma Paulo José, a análise das expressões devem ser feitas em cima desse contexto.
“Qualquer manifestação, artística, estética, cultural, tem que ser compreendida dentro do contexto em que ela é produzida. Especialmente esse tipo de manifestação não deve sofrer censura nenhuma, de nenhum tipo de veículo e muito menos das redes sociais”, argumenta.
Ele afirma que é preciso tomar cuidado com a hegemonia monopolística que essas empresas de internet tomaram. “Elas tomaram uma dimensão extremamente grande, pautando o debate público e, diversas vezes, de forma não saudável. Existem uma série de abusos, que vão desde discursos de ódio, com misoginia, racismo e etc, e que precisa ser olhado com cuidado”.
“A liberdade de expressão garante um debate, o princípio fundamental garante um debate saudável e qualificado, permite que as pessoas tenham suas posições. Então o princípio é a liberdade de dialogar, de compreender, de ensinar. Não o de ofender, caluniar”, defende.
Paulo José argumenta que o usuário deve ter mais facilidade para dialogar com as plataformas, que precisam ser mais claras em processos de responsabilidade e transparente em suas políticas.
“O usuário comum não tem a mesma influência de interferir nesses processos do que uma pessoa pública, uma autoridade ou uma empresa. A abertura de canais para o usuário, para que ele consiga fazer as apelações e ter as reparações do erro cometido, é fundamental”.
“Quando as pessoas falam que são empresas privadas e que elas que decidem o que pode ou não pode, não é exatamente assim. Você tem legislações nacionais e regulamentos universais que tem que ser obedecidos. Não é por ser uma empresa privada que ela não tem que respeitar os preceitos legais da liberdade de expressão”, aponta.
Por isso, explica, a retirada dos conteúdos foi irregular, pois “mostram um retrato caricatural de fatos que aconteceram na sociedade brasileira”.
Para Paulo José, a função central da cultura é justamente provocar determinadas reflexões. “As manifestações artísticas têm que ser especialmente protegidas quando tratam de uma situação social que o Brasil está inserido, que é o racismo estrutural, a violência policial, a divisão escandalosa entre as classes sociais. Nesse momento, com um governo que não se preocupa em remediar as situações, impedir o conteúdo relacionado à crítica é muito grave”, conclui.
Outro lado
A reportagem procurou o Instagram, via assessoria de imprensa, questionando a motivação da retirada dos conteúdos citados no texto. Em nota, o Instagram informou que errou ao remover os conteúdos e informou que ambos foram restaurados. “Pedimos desculpas”, completou a nota.
Em caso de retirada de conteúdo, a plataforma informou que todos os detalhes sobre como apelar uma decisão do Instagram podem ser encontrados na página de violação de políticas.
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