A antropóloga e professora de segurança pública da UFF Jacqueline Muniz faz uma análise das polícias, da violência de Estado e dos efeitos das operações policiais no Brasil em live da Ponte
Desde o começo da pandemia de Covid-19, as operações policiais nas favelas e periferias do Brasil se tornaram centro do debate sobre a letalidade policial. Na última quinta-feira (15/7) a Ponte recebeu uma especialista que deu uma verdadeira aula sobre o assunto: a antropóloga e professora adjunta do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz. A live comandada pela repórter Beatriz Drague Ramos, no canal de Youtube da Ponte, esclareceu como o país tem registrado altos índices de violência e um recorde de letalidade policial, como registra o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2020, divulgado neste mês.
Jacqueline Muniz pesquisa sobre segurança pública e polícia há mais de 20 anos. É graduada em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutora em Ciência Política. Atualmente ministra aulas na UFF, é sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Durante sua carreira já trabalhou como diretora da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Rio de Janeiro em 1999 e como pesquisadora do Ministério da Justiça em 2003.
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A escolha da antropóloga em estudar a fundo os direitos civis está ligado ao que ela acredita para a sociedade. “Segurança é a pavimentação de um futuro, é abundância de amanhã. É a gente poder sair do imediato do nossos medos e poder circular livres pela cidade exercendo nossas identidades, construindo os nossos pertencimentos e não ficando confinados ou isolados seja na zona sul ou na periferia. O lugar da segurança é o lugar de possibilitar os nossos sonhos e a realização deles no aqui agora”, diz.
Acerca do papel da polícia, Jacqueline ressalta que “essa é uma ferramenta fundamental para garantir a administração pacífica de conflitos entre pessoas que são diversas, que tem capitais políticos, econômicos, sociais e culturais diferentes”.
Monitorar para controlar
No início da conversa, Jacqueline relembrou uma das primeiras pesquisas sobre letalidade policial feita no Rio de Janeiro entre 1995 e 1996, coordenada pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião), e uma outra que inaugurou a metodologia de pesquisa de vitimização policial e demais agentes da lei, em 1997. Em ambas, a antropóloga participou e constatou que há 20 anos os números de policiais mortos e da violência policial já eram mais altos que os padrões internacionais registrados.
Ela ressalta que as instituições já apresentam políticas falhas na circunstância em que policiais morrem trabalhando. “Acidentes e incidentes de trabalho estão informando problemas sérios na política da instituição, no modo de gestão e na mentalidade”, destacou sobre a naturalização destas mortes e a falta de conhecimento sobre a magnitude do problema.
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Nesse sentido, a falta de monitoramento da violência, do racismo, da LGBTfobia, segundo Jacqueline, acaba por não orientar as políticas públicas de segurança e as tragédias humanas se repetem. “É uma banalização da vida da periferia até porque a maioria dos policiais, sobretudo da Polícia Militar, vem da periferia. A maioria da polícia do Rio de Janeiro é não branca e de origem humilde”, prossegue.
No governo do Rio em 1999, Jacqueline esteve na equipe que implementou o Instituto de Segurança Pública (ISP), voltado para análise de dados, e o modelo de uso progressivo da força. “Nós sofremos de autonomização predatória do poder de polícia e de baixa governabilidade. Não se tem mecanismos de controle da ação policial e é intencional não ter”, analisa a professora sobre a falta de controle das polícias dos diferentes âmbitos federativos.
Para ela, os dados de hoje, como mostra o Anuário estatístico do FBSP, não tendem a mudar se a lógica destas instituições não for revista. O controle externo das polícias passa também pelo aprimoramento das corregedorias e ouvidorias. Apesar de o Brasil ter avançado em algumas questões, segundo a professora, temos uma resistência que vem do próprio Estado.
“Crime nenhum tem competência ou capacidade de sabotagem nas ações do Estado. Bandos armados não têm como enfrentar a estrutura do Estado. Ao contrário, eles são constituídos pela guerra. A guerra cria grupos armados”, afirma, ao exemplificar o desligamento de programas como o de apoio psicológico a policiais.
A falta de governabilidade das polícias
A especialista avalia que a falta de governabilidade das polícias é também um projeto político. Existem métricas, até mesmo feitas pela própria antropóloga em conjunto com o professor Domício Proença Júnior, que possibilitam medir o desempenho policial, por exemplo. “Vazio de polícia é a multiplicação de domínios armados. Por isso a democracia inventou a polícia. O nosso problema aqui [no Brasil] é que as polícias se tornaram estatais e não públicas, sofrem de baixa institucionalidade e transparência. O porão decisório fica no escuro”, explica.
“O que possibilita a criação de poder privatista do poder de polícia para fins e projetos de poder particulares, que se traduzem em corrupção, violência, na organização de uma economia política e itinerante do crime que é bilionária e que retroalimenta como caixa dois as campanhas eleitorais”, completa. O consenso e participação de agentes estatais viabilizam que periferias e favelas do Rio de Janeiro fiquem submetidos a grupos armados, indica a professora.
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Outro fator determinante é a falta de conhecimento da população no geral sobre as regras de policiamento, ou seja, os procedimentos de abordagens e protocolos a serem seguidos pela polícia. Jacqueline Muniz afirma que a ação policial é previsível, regular e esperada, portanto, é possível o controle tático das operações. Além disso, a antropóloga diz que é preciso dar suporte aos policiais pois estes adoecem e registram altas taxas de suicídio entre eles.
“Em democracias, é o poder civil que comanda a espada e não é a espada que comanda o poder civil. Exatamente para evitar golpes, evitar tiranias, governos policiais e a milicialização”, esclarece a docente.
Operação e letalidade policial
Durante a conversa a especialista explica que existem cinco modalidades de policiamento público e estatal: emergência, operações policiais, patrulha, investigação e inteligência. Além das demandas do cotidiano, as polícias atuam com planejamento e estatísticas para reduzir o tempo de resposta à população. Um grupo especializado é direcionado às operações especiais e forma o corpo tático “para reverter situações altamente desvantajosas e agir com superioridade de meios”. Estes procedimentos são usados por exemplo na guerra às drogas.
No entanto, a professora faz uma ressalva e comenta o envolvimento de agentes estatais na economia política do crime que vai além das drogas. “É uma economia bilionária pois transforma serviços essenciais em serviços ilegais. Os gatos de luz, a água, a banda larga, a TV a cabo, os transportes alternativos. Todos os serviços urbanos essenciais são terceirizados e administrados pelo crime e é pago taxa a eles”, esclarece.
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As operações são limitadas em tempo e espaço devido ao gasto e a mobilização do policiamento ostensivo que elas geram. A repressão feita pela polícia, para a professora, não produz efeito de durabilidade e controle de território e é pontual. Ela analisa que os resultados e as repetições destas operações mostram uma ineficiência. “Se ela cria cenário de desordem, de incerteza e de violência, a quem ela serve?”, questiona.
Em julho, a chacina do Jacarezinho completa dois meses. A operação policial, que aconteceu no dia 6 de maio na comunidade, deixou 27 civis e um policial civil mortos e se tornou a mais letal da história da cidade do Rio de Janeiro. Dias depois, Gilberto Amancio de Lima, mais conhecido por Gibinha, morador da Favela da Felicidade na zona sul de São Paulo, foi morto a caminho do trabalho por policiais civis em uma operação. E, mais recentemente, em 8 de junho, a jovem grávida Kathlen Romeu também foi mais uma vítima da violência policial no Complexo do Lins, zona norte do Rio.
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Estes casos são exemplos dos protocolos falhos e da falta de estudos de controle da ação policial, até mesmo individual, nas operações para que não haja letalidade. A professora Jacqueline lembra que a ação feita no Jacarezinho era adiável por ser uma operação programada, uma demanda que vem da própria polícia e do poder judiciário e não da sociedade, além de considerar que estamos em uma pandemia.
O planejamento destas práticas são vantagens táticas do uso de força policial e impedem o abuso de autoridade e a espetacularização em torno da ocorrência segundo a professora. “Tem que obedecer a critérios como legalidade e oportunidade da ação, para saber qual parâmetro tático será usado, o conhecimento do terreno, a superioridade em números e de armamento, necessidade de apoio, fator surpresa, conhecimento dos grupos armados locais, meios de comunicação, minimização dos riscos e equipamentos de proteção”, lista Jacqueline.
Para a professora, a ausência destes protocolos geram insegurança na população e até mesmo nos próprios policiais. “Não existe a ideia de um crime ‘organizado’ sem a contribuição de agentes estatais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Produzir insegurança está dando certo porque é um projeto autoritário de poder que tem funcionado muito bem contrariando a cidadania, os direitos e a vontade de liberdade e igualdade que todos nós temos”, observa.
Jacqueline considera que a letalidade policial, que tem atingido principalmente a população negra, o medo generalizado e a criminalização em periferias e favelas não podem ser normalizados. “Operação policial é importante e tem parâmetros para ser feita. Por outro lado, isso tem que ser transparente, público e sob o controle da sociedade”, conclui.