Juiz decide que não há provas para levar a júri PM que matou jovem negro

Igor Rocha Ramos foi morto com tiro na cabeça, aos 16 anos, pelo sargento Nelson Veiga; com decisão de juiz, caso pode ser arquivado se Ministério Público não recorrer

Igor Rocha Ramos tinha 16 anos | Foto: arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) determinou, na última quinta-feira (15/2), que o sargento da Polícia Militar Nelson Gonçalves da Veiga Almeida não deve ser levado a júri popular pela morte do estudante Igor Rocha Ramos, de 16 anos. O jovem negro foi baleado na cabeça após ter corrido de uma abordagem no Jardim São Savério, bairro da periferia na zona sul da capital paulista, em 2020.

O juiz Bruno Ronchetti de Castro decidiu impronunciar o PM, ou seja, entendeu que não existem indícios suficientes para que Nelson seja julgado por um tribunal do júri. Para o magistrado, há “dúvidas razoáveis” de que o sargento teve intenção ou assumiu o risco de matar Igor. Por outro lado, considerou que a versão de Nelson também não sustenta que ele agiu por legítima defesa e, por isso, não o absolveu.

A decisão de impronúncia significa que a Promotoria do Ministério Público ainda pode recorrer da decisão, fazer uma nova denúncia ou apresentar prova nova. Se isso não ocorrer, o policial deixa de responder pelo crime e o caso é arquivado.

O magistrado argumentou que há elementos na investigação, como as testemunhas ouvidas, que corroboram tanto para a acusação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) quanto para a defesa do policial.

O sargento foi acusado por homicídio qualificado por motivo fútil e com recurso que dificultou a defesa da vítima e por fraude processual, já que a suspeita é de que ele “plantou” uma arma para atribui-la a Igor. Se tivesse sido pronunciado, o policial responderia pelo crime em um tribunal de júri, formado por sete jurados da sociedade civil e destinado a julgar réus acusados de crimes dolosos (em que a pessoa tem intenção ou assume o risco) contra a vida.

“Portanto, embora existam elementos de convicção indicativos de que o réu agiu em legítima defesa, não há prova cabal da sua configuração, motivo pelo qual inviável a absolvição sumária. A pronúncia [decisão de levar o caso a júri], de outro lado, demanda elementos indicativos mínimos de que os fatos ocorreram da forma narrada na peça acusatória. A ausência de lastro probatório mínimo não implica na absolvição, mas na impronúncia [não levar a júri] do acusado”, escreveu o magistrado na sentença.

No Instagram, o escritório Oliveira e Campanini Advogados, responsável pela defesa do sargento, fez uma postagem apontando que Nelson foi inocentado, o que é falso, já que a sentença de impronúncia não significa absolvição nem condenação. Procurado pela Ponte, o advogado João Carlos Campanini declarou que “a decisão pela impronúncia põe fim ao processo caso não seja reformada via de recurso, com seu consequente arquivamento”.

A família de Igor e o movimento Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que acompanha o caso, souberam da decisão pela reportagem. A cobradora de ônibus Ana Paula Rocha, 47, mãe do adolescente, disse que gostaria que o MPSP recorresse da decisão.

Em 2022, uma praça próximo ao número 93 da Avenida dos Ourives, no Jardim São Savério, foi batizada com o nome de Igor após um abaixo-assinado.

Relembre o caso

No dia 2 de abril de 2020, por volta das 13h30, Ana Paula relatou à reportagem que havia pedido para o filho ir à padaria comprar cigarros, já que estava afastada do trabalho por ter se contaminado com a Covid-19. Não deu tempo nem do adolescente chegar ao estabelecimento: ela conta que dez minutos depois o filho estava morto.

Na época, testemunhas haviam relatado à Ponte que Igor subia uma travessa quando os PMs anunciaram a abordagem e o rapaz teria saído correndo. “O Igor tinha me falado que esse policial que o matou ameaçou ele, dizendo que quando colocasse a mão nele, não escaparia mais”, denunciou a mãe na época. De acordo com Ana Paula, ele havia se “ajeitado” depois de ter sido internado em 2019 na Fundação Casa por roubar um carro. Ela aponta que esse teria sido o motivo da ameaça, que teria acontecido dois meses antes.

Na ocasião, testemunhas relataram que o adolescente não estava armado e que policiais militares levaram câmeras de segurança da rua e ainda ameaçaram e agrediram as pessoas que protestaram logo em seguida à morte do rapaz. Um vídeo gravado por um morador gritando “mataram um menino inocente” mostra policiais segurando uma familiar. A mãe também havia mostrado marcas roxas na perna para a reportagem, denunciando ter sido agredida pelos policiais. A família, acompanhada da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, também realizou protestos.

Já no boletim de ocorrência, dois policiais do 46º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) disse que receberam um chamado sobre um “indivíduo armado” na Avenida dos Ourives. A viatura da dupla chegou antes da que havia sido designada para atender a ocorrência. No local, declarou que visualizaram “um indivíduo em atitude suspeita” que, ao ver a viatura, “empreendeu fuga a pé, correndo”. Em seguida, o sargento Nelson Veiga, do mesmo batalhão, saiu da outra viatura e foi atrás do rapaz que “chegou a cair no chão em um declive de acesso a Travessa Ruth de Cabral Troncarelli, mas se levantou e continuou a fuga”.

Segundo o B.O., o sargento Nelson Veiga relatou a um colega que, “ao se sentir na iminência de ser atingido por disparos de arma de fogo, pois o indivíduo apontou um revólver na sua direção, se viu obrigado a efetuar um único disparo com a sua pistola .40” para “salvaguardar sua vida e repelir injusta agressão”. O documento relata que foi apreendido um revólver calibre 38, com duas cápsulas deflagradas e duas intactas. Igor foi socorrido ao Hospital Heliópolis, onde morreu.

Porém, no curso das investigações da Polícia Civil, Nelson Veiga disse que, quando atingiu Igor, que caiu imóvel no chão, aproximou-se e “fez uma breve vistoria na cintura daquele indivíduo e não localizou o revólver”. Depois, foi à viatura solicitar socorro e que o local foi isolado porque a população teria iniciado um tumulto. O sargento também disse que ficou distante e só retornou com a chegada do Corpo de Bombeiros. Ele declarou que um soldado de nome Esposito teria lhe dito “olha, chefe, a arma, está embaixo dele” e que a recolheu “para não correr o risco de alguém pegar a arma sem que os policiais militares percebessem” e a levou à delegacia.

O bombeiro André Luiz Januário Espósito confirmou que atendeu a ocorrência, sendo que Igor “apresentava batimento cardíaco fraco, em seguida entrou em parada cárdio respiratória, sendo iniciada massagem reanimação”. Quando levantou o corpo do adolescente, afirma que viu a arma embaixo dele e que a entregou ao sargento. Outro bombeiro, de nome Heliton Santana, também disse que viu Esposito encontrar a arma.

Um motoboy, no entanto, disse que cruzou com Igor e viu o momento em que a viatura se aproximou e o jovem saiu correndo, “ingressando em uma viela e um dos policiais militares começou a gritar para que Igor parasse”. Em seguida, a testemunha disse que “parou sua motocicleta e caminhou até a entrada da viela, viu Igor correndo, com uma das mãos segurando a bermuda e um aparelho celular em outra mão, um policial militar em seu encalço, gritando que para que ele parasse, mas Igor continuou a correr e o policial militar efetuou um disparo, atingindo Igor, que veio a cair”.

O motoboy disse não ter visto nenhuma arma com o adolescente ou próximo do corpo dele e que, enquanto Igor corria, ele apenas virava a cabeça para trás, não tendo realizado movimento como se virasse para atirar. Contou, também, ainda teria ouvido de um PM da Força Tática “ô steve [jargão policial para designar outro policial], não tem nenhuma arma, não, ele está segurando o celular” e que saíram “cochichando”, entraram na viatura e saíram do local.

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O promotor Felipe Eduardo Levit Zilberman entendeu que a morte foi praticada por motivo fútil, por conta de o estudante ter corrido da abordagem, e por meio que dificultou a defesa da vítima, porque o tiro foi “efetuado de cima para baixo, pelas costas e sem que [Igor] pudesse esboçar qualquer reação”. Zilberman sustenta que o rapaz foi executado e que o sargento plantou uma arma no local. “Após a consumação do delito, Nelson apresentou às autoridades responsáveis pela apuração do fato o revólver calibre 38, numeração suprimida, como se tal arma estivesse em poder da vítima Igor, de modo a tentar justificar sua conduta. Tal inovação teve por desiderato induzir em erro o juiz no presente processo penal”, argumentou.

O promotor Felipe não está mais no caso. Quem pediu para que o sargento fosse levado a júri foi o promotor João Carlos Calsavara. A Ponte procurou a assessoria de imprensa do MPSP, que disse que “ainda não recebeu o processo para ciência da decisão”.

Já a defesa do PM sustenta que nenhuma das testemunhas, além dos policiais, viu como a dinâmica do disparo aconteceu, que o policial não tinha intenção de matar, pois deu apenas um único disparo para “cessar a iminente agressão”, e que não houve adulteração da cena porque os bombeiros disseram que viram uma arma embaixo da vítima. “Até porque, há algum tempo vem se instituindo em nossa sociedade uma certa e injustificável desconfiança da população com relação à Polícia Militar, de modo, inclusive, a inverter a credibilidade dos personagens da ocorrência, isto é, por muitas vezes a versão policial é considerada mentirosa, ao passo que se trata os meliantes e seus comparsas como se donos da verdade fossem e, pior, como se não estivessem em posição de aniquilar a vida do agente da lei que se dedica apenas a proteger a sociedade”, escreveu o advogado João Carlos Campanini.

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