Juíza marca audiência de manifestantes presos com capitão do Exército

    Em despacho, juíza confirma que posse de vinagre e instrumentos de primeiros socorros pode ser considerada indício de associação criminosa

    Botelho, sob a identidade falsa de Balta, é detido com os 21 manifestantes no CCSP em 4/9/16

    A juíza Cecília Pinheiro da Fonseca, da 3ª Vara Criminal do Fórum Criminal da Barra Funda, confirmou o recebimento da denúncia contra 18 jovens presos no Centro Cultural São Paulo (CCSP), em 4 de setembro do ano passado, acusados de associação criminosa e corrupção de menores, e marcou a primeira audiência do caso para 22 de setembro. Dos réus, 17 eram manifestantes que se preparavam para participar de um protesto contra o presidente Michel Temer (PMDB) na Avenida Paulista, junto com mais três adolescentes. Um outro é um estudante que havia ido à biblioteca do CCSP para pesquisar um livro sobre vinil e acabou preso junto com os demais.

    Em despacho emitido na segunda-feira (21/8), após ouvir a defesa dos jovens, Fonseca considerou que a denúncia apresentada pelo promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza, do Ministério Público de São Paulo, conseguiu apontar indícios de que o grupo detido no CCSP teria se reunido para destruir patrimônio público e privado e ferir policiais militares. O processo até agora ignora a atuação do capitão do Exército Willian Pina Botelho, hoje major, que havia se infiltrado entre os manifestantes com o nome falso de Balta, usando mentiras e assédio sexual como ferramentas para espionar movimentos sociais e grupos de esquerda.

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    Nessa fase do processo, chamada de instrução criminal, a juíza não entra no mérito da culpa ou da inocência dos réus, mas pode optar pela absolvição sumária deles, se entender, por exemplo, que os fatos narradas na denúncia do MP não constituem crime. Não foi o caso. A juíza concordou com a avaliação da Polícia Civil e do Ministério Público e considerou que o uso de roupas escuras e a posse de vinagre e materiais de primeiros-socorros podem, sim, ser considerados indícios de crime.

    “A denúncia narra, individualizada e detalhadamente, a conduta dos acusados, demonstrando, inclusive, seu possível modus operandi”, afirma o despacho da magistrada. “Certamente, como alegado pela defesa, portar máscara para se defender de gás de pimenta, capuzes e frascos contendo vinagre não pode caracterizar crime. Entretanto, quando tal conduta está supostamente ligada à associação visando a prática de danos qualificados, consistentes na destruição, na inutilização e na deterioração do patrimônio público e privado, e lesões corporais em policiais militares, não há como caracterizar, prima facie, a posse de tais objetos como meros atos preparatórios”, prossegue.

    Botelho na foto em que se exibia como Balta, no Tinder e, à direita, vestido com traje militar

    No dia seguinte à prisão, em 5 de setembro, os jovens passaram por uma audiência de custódia em que o juiz Rodrigo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo considerou a detenção dos jovens ilegal e determinou o relaxamento da prisão, comparando o comportamento da polícia no episódio à ditadura militar. A defesa de parte dos réus usou a decisão de Tellini para tentar demonstrar que a Justiça já teria analisado o mérito do caso, mas a juíza não aceitou a alegação — os advogados impetraram um pedido de habeas corpus com base no mesmo argumento, que até o momento foi negado pela Justiça.

    No seu despacho, a juíza aceita que a prisão dos jovens pela PM foi ilegal, mas considera que a apreensão de objetos, como vinagre e máscaras, ocorreu dentro da lei. “Assim, pelos indícios existentes, uma aglomeração de pessoas, vestidas de preto e portando máscaras, é evidente que a ação policial não foi ilícita, embora a prisão em flagrante tenha, conforme decisão exarada na Audiência de Custódia, sido realizada ilicitamente”, escreve Fonseca.

    Sobre Felipe Paciullo Ribeiro, o estudante que estava no CCSP para visitar a biblioteca e usar o wifi, a juíza afirma: “embora a defesa negue o envolvimento do acusado Felipe com os outros réus, tem-se que os objetos encontrados com o acusado são indícios fortes de seu envolvimento com os demais”. Os outros 17 jovens detidos, porém, afirmam que não conheciam Felipe e que ele não fazia parte da manifestação — informação confirmada pela família do estudante e por conversas registradas no Whatsapp.

    Os três adolescentes não foram denunciados pelo MP. Para os jovens, tanto a pena para associação criminosa como para corrupção de menores podem chegar a 4 anos de reclusão.

    Veja a cronologia do caso

    12/2014: Capitão de inteligência do Exército William Pina Botelho cria perfil no Facebook com o nome de Balta Nunes. Nos dois anos seguintes, usa a identidade falsa para para se infiltrar no aplicativo de paquera Tinder e em reuniões de movimentos sociais e militantes de esquerda.

    4/9/2016: Infiltrado como Balta, o capitão é detido pela PM junto com 18 jovens e três adolescentes reunidos no Centro Cultural São Paulo (CCSP) antes de um protesto contra o presidente Michel Temer. Na sequência, a polícia libera o militar. Botelho conta a conhecidos que subornou um delegado para ser solto.

    5/9/2016: Em audiência de custódia, juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo manda soltar os jovens detidos no CCSP e compara prisão de manifestantes à ditadura militar

    8/9/2016: Ponte revela que um infiltrado atuava entre os detidos no CCSP, com o nome falso de Balta Nunes, e que buscava conhecer manifestantes de esquerda por meio do Tinder

    9/9/2016: Ponte e El País revelam que Balta é, na verdade, o capitão do Exército William Pina Botelho.

    28/9/2016: Inquérito do delegado Fabiano Fonseca Barbeiro, do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), indicia os 18 jovens detidos no CCSP por associação criminosa e corrupção de menores. O indiciamento inclui os adolescentes.

    10/10/2016: Sindicância aberta pelo Exército conclui que Botelho agiu dentro da lei. Em seguida, o militar sai em férias de lua-de-mel no exterior.

    19/10/2016: O comandante-geral do Exército, general Eduardo da Costa Villas Boas, afirma à Jovem Pan que Exército atuou em “absoluta interação com o governo do Estado” de São Paulo na prisão dos jovens no CCSP.

    25/11/2016: Procedimento da Procuradoria de Justiça Militar em São Paulo também inocenta Botelho.

    15/12/2016: Promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza denuncia os 18 jovens por associação criminosa e corrupção de menores, sem qualquer menção ao capitão Botelho. A denúncia não inclui os adolescentes.

    19/12/2016: Em resposta a requerimento do deputado federal Ivan Valente (PSOL), Ministério da Defesa desmente comando do Exército e nega que a PM paulista soubesse da atuação de Botelho. Mais tarde, indagado a respeito pela Ponte, Exército fugiria três vezes da mesma pergunta.

    22/12/2016: Botelho é promovido a major “por merecimento” e vai trabalhar no Comando Militar da Amazônia.

    23/1/2017: Juíza Cecília Pinheiro da Fonseca recebe denúncia do promotor.

    21/8/2017: Após ouvir a defesa dos réus, juíza confirma recebimento da denúncia e marca a primeira audiência do caso para 22 de setembro.

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