Há dez anos, fotógrafo perdia a visão de um olho ao ser atingido por uma bala de borracha durante os protestos contra a tarifa de transporte público no centro de São Paulo; uma década depois, ele segue esperando reparação do Estado
São Paulo amanheceu no dia 13 de junho de 2013 sob uma ameaça nada velada — pelo contrário, figurava nas páginas dos principais jornais da cidade. No dia do quarto ato do Movimento Passe Livre (MPL) pela redução das tarifas do transporte público na capital paulista, que havia subido de R$ 3,00 para R$ 3,20, para ônibus, metrô e trens, a grande imprensa estava à beira de pedir o sangue dos manifestantes.
O centenário O Estado de S. Paulo (Estadão, para os íntimos), veículo da velha elite paulista, saiu-se com um editorial verborrágico, bem à sua maneira, classificando o comportamento dos manifestantes como “vandalismo” que “aterrorizava” a população e que havia “ultrapassado todos os limites”. A receita para conter a tal “fúria” era a mesma de sempre, que ainda não parece ter mudado: mais violência policial. “A atitude excessivamente moderada do governador [Geraldo Alckmin, à época no PSDB, hoje vice-presidente da República pelo PSB] já cansava a população. Não importa se ele estava convencido de que a moderação era a atitude mais adequada, ou se, por cálculo político, evitou parecer truculento. O fato é que a população quer o fim da baderna — e isso depende do rigor das autoridades”, anotava o texto do Estadão. O título? “Chegou a hora do basta”, sem ironia.
A sempre metida a moderninha Folha de S. Paulo (ou apenas Folha, para os descolados) não destoou do concorrente. Na capa, estampou uma imagem do PM Vanderlei Vignoli, de fronte sangrando e apontando sua pistola para o fotógrafo Victor Drago enquanto agarrava a blusa de um manifestante prostrado no chão. Na página 2, o editorial, mais sucinto do que a concorrência, se saía com um título que ficaria para os anais das interpretações equivocadas do jornalismo oclinhos: “Retomar a Paulista”.
O texto em si é uma pérola da histórica desconexão entre o pensamento da direção Folha e as vontades populares: “[Os manifestantes] são jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados. Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça. O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista. O que vidraças de agências bancárias têm a ver com ônibus?”. Hoje, dez anos depois, 67 municípios brasileiros contam com tarifa de transporte gratuita para toda a população. Outra bandeira do editorial que hoje soa inacreditável é uma defesa da proibição de protestos que fechassem a avenida Paulista, por ser uma “artéria vital da cidade”, “em cujas imediações estão sete grandes hospitais”.
O discurso parecia jogo mais combinado que aposta de Pix na série C do Campeonato Goiano de futebol. Diretamente de Paris, onde pleiteava São Paulo como sede da Exposição Universal de 2020 (sim, é o que você leu), Alckmin declarava que “é intolerável a ação de baderneiros e vândalos” e acrescentava: “Isso extrapola o direito de expressão. É absoluta violência, inaceitável”. Fernando Haddad, então recentemente eleito prefeito da capital pelo PT e hoje ministro da Fazenda, fazia coro: “Os métodos [dos manifestantes] não são aprovados pela sociedade. Essa liberdade está sendo usada em prejuízo da população”. Era a senha para sentar o dedo da PM sobre os manifestantes — a imprensa já tinha prometido que passaria um pano do tamanho do bandeirão do Corinthians, não importa o que acontecesse.
Ledo engano. A avaliação de Alckmin de que a violência resolveria seus problemas provavelmente se baseava na campanha contra o aumento das passagens de 2011, que durou um mês e acabou se esvaindo sob forte repressão. Na mesma toada, o PT parecia enxergar no MPL e seus associados uma juventude “revoltada” que perderia fôlego rapidamente — ainda que os protestos tivessem participação da Juventude do PT municipal. A estratégia não contava com dois fatores importantes: a resiliência do MPL e o poder cada vez mais difuso das redes sociais.
Criado em 2004 como Comitê de Luta Contra o Aumento, o MPL se inspirava na Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador em 2002. Explosão espontânea de massas, a revolta não chegou a baixar a tarifa na capital baiana, mas acendeu a chama. Por dois anos seguidos, em 2004 e 2005, o MPL havia liderado uma campanha vitoriosa contra o aumento das passagens em Florianópolis, a chamada Revolta da Catraca, ao entender que o bloqueio contínuo de certas vias (no caso da capital catarinense, uma simples ponte) geraria estresse suficiente no trânsito para que a população dobrasse o poder público. Antes de 2013, o movimento já havia mapeado que, a fim de parar São Paulo, bastava o bloqueio de outro punhado de vias: nominalmente, a Avenida Paulista, a Avenida 23 de Maio e a Marginal Pinheiros.
Em 2013, a dupla Haddad-Alckmin deu um presente ao MPL que não poderia ser ignorado. De costume, em todo o Brasil, aumento de tarifa de transporte público se dá entre dezembro e janeiro, exatamente para evitar qualquer revolta de estudantes em férias de verão. Naquele ano foi diferente. O antecessor de Haddad na prefeitura, Gilberto Kassab (PSD) — hoje um dos homens fortes do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) — havia congelado o aumento durante o ano de 2012, na tentativa de eleger o aliado José Serra (PSDB) como prefeito. Fernando Haddad, afinal vitorioso, tinha como meta deixar superávit nas contas públicas paulistas, na esperança de se reeleger em 2016.
O caminho que escolheu para isso no mínimo questionável: resolveu pelo aumento da tarifa, em consonância com o governo estadual, nos fins de maio de 2013. O MPL, que há anos já fazia um forte trabalho de base em escolas públicas da extensa periferia paulistana, não podia deixar a oportunidade passar. Com uma massa muito mais densa de estudantes presentes nas escolas, o jogo estava dado.
Para além disso, as redes sociais, que já haviam caído no gosto do público brasileiro (o Orkut e o Fotolog que o digam), fervilhavam. O hoje moribundo Facebook estava em acelerada ascensão, e os smartphones deixavam de ser objeto de luxo e chegavam à mão de mais e mais pessoas. Cada vez mais pipocavam pelas redes vídeos que desmentiriam a versão de que a PM era “moderada” em sua violência contra os manifestantes. Inspirados na Primavera Árabe, também impulsionada pelas redes sociais, e com certo asco da brutalidade da polícia paulista desde a “desocupação” com tons de massacre do Pinheirinho, em janeiro de 2012 em São José dos Campos, esses novos atores de uma esquerda não-organizada aumentavam as hostes progressivamente a cada ato do MPL.
Ao mesmo tempo, era visível o crescimento do apoio, a cada protesto, de pessoas presas dentro de ônibus, gritando pelas janelas — afinal, o trânsito não era muito pior que um costumeiro dia de chuvas no verão paulistano. A título de comparação, a segunda manifestação daquele ano tinha deixado 226 quilômetros de congestionamento, enquanto em 8 de março deste ano o recorde foi de 1.206 quilômetros de lentidão. No terceiro ato, em 11 de junho de 2013, sob forte e fria precipitação, Mayara Vivian, militante do MPL, conta que olhou para trás, viu a multidão que não desistia de marchar, e entendeu: “vamos vencer”. Grande mídia, capital e Estado estavam completamente cegos a esse movimento. É nessa correlação de forças que a Batalha da Paulista de 13 de junho foi travada.
Era só mais um Silva
Filho de uma imigrante baiana analfabeta, Sergio Silva cresceu à beira do Riacho do Ipiranga, na zona sul de São Paulo, o mesmo cantado na abertura do Hino Nacional, mas que para ele nunca tiveram margens plácidas, ao contrário: as frequentes enchentes do riacho acabaram roubando a memória visual da sua família. “Eu cresci numa família muito pobre, sou o filho mais velho de sete. Quando a minha primeira filha nasceu, fui procurar imagens minhas de infância. Mas as poucas fotografias que eu tinha da minha família, que minha mãe também tinha da gente pequeno, foram embora nesse rio de lama que é trazido pelas enchentes e pela falta de estrutura, pela falta de investimento público. Foi assim que me veio a vontade de fotografar: peguei uma câmera Cybershot emprestada e registrei tudo que pude das minhas filhas.”
Anos depois, já trabalhando na operação de planilhas de Excel em uma multinacional, chegou ao entendimento que deveria seguir sua vocação pela imagem. “Fui conduzindo essa vida cotidiana, tradicional de um peão, trabalhando numa firma e nos tempos, nas horas vagas, ali, tendo a fotografia como um hobby. Fui fazendo cursos gratuitos, no Sesc, em Casas de Cultura”, conta. Depois de receber para fotografar festas infantis e eventos institucionais com uma câmera de iniciante (uma Canon Rebel X, já ultrapassada na época), largou o emprego estável e foi tentar a sorte como fotógrafo. Contra a magra féria da vida de freelancer jornalístico, tateava a profissão garantindo a renda através da produção de imagens institucionais.
Ao mesmo tempo, Sérgio começava a meter as caras no fotojornalismo, como repórter freelancer da FuturaPress, agência de fotografia que empregava freelancers que recebiam (muito pouco) por imagem comprada por veículos de imprensa. Era um um trabalho que o atraía pela oportunidade de fazer o tipo de trabalho que mais o interessava, no calor da realidade e das ruas. “Eu sempre fui um moleque de rua”, é como se define.
Em 2013, morador da periferia de Osasco (Grande SP), Sérgio ainda não havia testemunhado nenhum dos atos do MPL até aquele 13 de junho, mas sentia que a luta era importante e, dentro dos seus limites como fotojornalista mal pago de uma agência, tinha vontade de contar uma história diferente da que lia nos grandes jornais e via na TV. “Acompanhando os noticiários que a própria imprensa fazia, tinha esse clima de condenar aquela manifestação”, lembra, ressaltando como, por sua origem social, Sérgio tinha uma outra visão, pois conhecia na pele como a pauta por um transporte público decente era importante. “Não ter dinheiro para pagar a passagem, pedir para o motorista para entrar por trás, ou passar por debaixo da catraca, sempre foi muito a minha vida”, lembra.
No caminho de ônibus para a capital, recebeu a ligação de um amigo, alertando para o clima tenso que já circulava nas redes sociais. “Esse meu amigo nunca tinha feito uma ligação telefônica para mim. A gente se encontrava com muita frequência. Ele estava muito preocupado com esse clima de repressão que estava acontecendo nas manifestações e me perguntou se eu estava na manifestação. Ele imaginava que eu já estava lá e eu disse que não, mas que estava a caminho. E ele me falou: ‘Toma cuidado que acabou de dar uma notícia da polícia, está prendendo jornalista lá’”. Não esperava o que estava por vir.
A batalha simbólica pela Paulista
O fatídico quarto ato do MPL na capital paulista em junho de 2013 teve sua concentração em frente ao Theatro Municipal, na República, centro da cidade. Os protestos do movimento contavam com fatores que irritavam a PM sobremaneira, ao mesmo tempo em que atraíam manifestantes que não se viam representados em atos políticos de rua mais tradicionais. Além de recusarem o uso de caminhões de som para dirigir a marcha, nunca se pedia permissão prévia para se realizar um ato, e o trajeto era combinado em cima da hora, em uma curta assembleia, com as informações transmitidas por meio de um “jogral”.
Apesar disso, o objetivo parecia bem claro: ocupar a Avenida Paulista. Mais do que uma via importante na divisão entre o centro e a zona sul da cidade, fincada bem no meio do “centro expandido”, como mostravam as opiniões dos jornalões, era um objetivo simbólico importante, uma queda de braço entre as forças da “ordem” e a turma da “baderna”.
A PM estava preparada para um feroz jogo de gato e rato. Ainda na concentração, aconteciam as primeiras prisões: policiais revistaram manifestantes carregando mochilas e usavam qualquer pretexto para deter. O jornalista Piero Locatelli, então na Carta Capital, foi um dos detidos na concentração. A infração: carregar uma garrafa de vinagre, substância que na época se acreditava que amenizaria os efeitos do gás lacrimogêneo (hoje já é mais comum que se compartilhe a informação correta, de que a melhor solução é lavar nariz, boca e olhos com água em abundância).
O ato tentou driblar os bloqueios da PM, seguindo para a Avenida Ipiranga, mas virando à esquerda para a Rua da Consolação, outra via importante que daria acesso à Paulista, no topo de um morro. Ali, já toparam com resistência da polícia, enquanto guardas civis cercavam o perímetro da Praça Roosevelt, recém-reformada e já um point dos skatistas locais. “Nós vamos para a Paulista”, explicavam os líderes destacados para negociar a passagem. “Vocês não entenderam: vocês não vão chegar na Paulista”, prometiam os negociadores da PM.
A manifestação passou, mas por apenas uma quadra. Na encruzilhada da Consolação com as ruas Caio Prado, Cândido Mota Jr e Maria Antônia, palco de um histórico embate em 2 de outubro de 1968 entre estudantes da Universidade de São Paulo (USP), que militavam contra a ditadura militar, e alunos da Universidade Presbiteriana Mackenzie, apoiadores do regime, a Tropa de Choque arreganhou seus metafóricos dentes contra o ato do MPL. Nova parada, nova tentativa de negociação. Alguns manifestantes sentaram na via. De repente, o som ensurdecedor de uma bomba de “efeito moral”. Em seguida, várias delas, muitas, e mais gás lacrimogêneo e balas de borracha. A polícia estava distribuída por todas as ruas, preparando uma emboscada. Começava o massacre.
A munição de elastômero (nome técnico da bala de borracha) consiste em um cartucho de espingarda calibre 12 (o mais poderoso da categoria) com uma ponteira de látex duro. A bala viaja a 240 metros por segundo, e a recomendação dos fabricantes é que seja usada contra alvos a 20 metros de distância, mirando nas pernas. Tais recomendações, que constam inclusive em um documento secreto da PM paulista obtido pela Ponte em 2014, são frequentemente violadas, como podem atestar as várias vítimas que perderam a visão desde que as forças de segurança do estado inauguraram essa macabra estatística ao tirar a visão olho esquerdo do fotojornalista Alex Silveira em maio de 2000 — justamente para reprimir um protesto de professores na Avenida Paulista. Em instantes, Sérgio passaria a figurar entre esses números.
Na primeira saraivada, o fotógrafo se escondeu atrás de uma banca de jornal, na esquina da Rua Caio Prado. Quando os sons diminuíram, Sérgio, que havia chegado tarde e pegou a manifestação já marchando, resolveu tentar registrar mais imagens. Ao se aproximar da esquina, apontou a máquina fotográfica para uma fileira de PMs carregando escudos do outro lado da rua e fez dois ou três cliques. Quando baixou a câmera, sentiu uma dor lancinante e teve a visão apagada. “Ali entendi que eu estava cego”, conta.
Prostrado no meio da rua enquanto as pessoas corriam ao seu redor, Sérgio voltou a ser atingido. Dessa vez, pelo que ele classifica como “um anjo”. Professor de história na rede pública estadual e dirigente sindicalista, Severino Honorato procurava um lugar para se esconder da selvageria policial quando tropeçou em Sérgio, que gritava de dor. Vendo o rosto do fotógrafo sangrando, entendeu rapidamente que a situação era grave. Precisavam agir rapidamente. “Coloquei o braço dele no meu ombro e saí carregando”, lembra Severino, apontando para a considerável diferença de altura entre os dois.
Embora a Santa Casa estivesse mais próxima, o caminho até o hospital estava bloqueado pela PM, então a solução foi caminhar até o Hospital Nove de Julho, particular e mais distante. Desceram a Caio Prado, pegaram o escadão do Belvedere Avanhandava e subiram a Avenida 9 de Julho em direção à fatídica Avenida Paulista, um trajeto de quase dois quilômetros, que levou 40 minutos. Sérgio conta que pensava o tempo todo que iria desmaiar de dor, enquanto Severino tentava equilibrar e manter em pé o fotógrafo de 1,80m. Acima de suas cabeças, bombas e mais bombas seguiam estourando em torno de toda a região da Rua Augusta.
Ao chegarem no hospital, Severino lembra que a equipe de atendimento parecia assustada com o estado de Sérgio: não era o tipo de violência com a qual estavam acostumados a lidar. Sérgio recebeu curativo, morfina para a dor e passou por exames básicos. Em menos de duas horas, chegou um diagnóstico informal: “um médico veio falar comigo e disse ‘infelizmente seu amigo não vai voltar a enxergar”‘, rememora Severino. Restaria ao professor esperar a chegada da então companheira de Sérgio, que estava num voo vindo de Brasília, para então pegar seu ônibus rumo ao Capão Redondo, na periferia da zona sul da cidade, onde até hoje mora e dá aulas, numa viagem de quase duas horas.
Enquanto Sérgio sofria em seu leito, esperando uma transferência para o Hospital de Olhos Paulista, logo ali do lado a Avenida Paulista era ocupada apenas por viaturas e a tropa da cavalaria da PM, que andava de um lado para o outro da via, atirando bombas de efeito moral no mais absoluto vazio. A cena rendeu o hoje vintage meme “polícia fecha a Avenida Paulista para impedir manifestantes de fechar a Paulista”. Se contrapondo à tática do MPL batizada de “hidra” pela Vice Brasil, onde os protestos que sofriam resistência policial se dividissem e tentassem seguir por outras ruas, a PM simplesmente decidiu transformar a região entre a Consolação e a 9 de Julho numa praça de guerra. Ninguém estava a salvo, nem as pessoas em suas próprias casas: um vídeo de grande circulação na época mostrava um policial atirando uma granada de gás dentro da janela de um apartamento na Praça Roosevelt.
O saldo de destruição foi imenso. As 506 balas de borracha e 938 bombas de gás lacrimogêneo (sem contar cassetetes e bombas de efeito moral) que a PM paulista admitiu ter usado em 13 de junho de 2013 deixaram, nas contas do MPL, ao menos 150 feridos, entre manifestantes, transeuntes e jornalistas. Entre os repórteres da Folha de S. Paulo, que havia bradado pela “retomada” da Paulista, sete ficaram feridos.
A mais grave foi Giuliana Vallone, videorrepórter da TV Folha, que estava em um estacionamento na Rua Augusta quando também foi atingida no olho por um PM das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). “Ele apontou a arma para mim. Jamais achei que ele iria atirar”, contou na época. De óculos, Giuliana teve a sorte de não perder a visão, mas as imagens de seu rosto ensanguentado e seu olho direito muito inchado rodam o Brasil e o mundo, se tornando a cara da violência policial de junho de 2013 e levando centenas de milhares às ruas de São Paulo na semana seguinte, no talvez maior protesto contra a agressão estatal (e mais um monte de outras pautas desconexas) já visto na história brasileira. O Estado havia definitivamente vencido a batalha simbólica pela Paulista, mas não imaginava que isso lhe custaria a própria guerra.
Bala de borracha cega, mas não cala
O tiro foi tão violento que, além de perder a visão, Sérgio sofreu duas fraturas na face. O globo ocular esquerdo ficou íntegro, mas toda a estrutura dele se fragmentou. Com o tempo, o humor vítreo, líquido espesso que sustenta o formato do órgão, começou a vazar, e o olho, a atrofiar. Em novembro de 2013 Sérgio passou por uma nova cirurgia para remover o que lhe restou da vista esquerda e implantar uma prótese. O tiro também trouxe uma consequência financeira pesada, na forma de uma conta no valor de R$ 3.894,67 cobrada pelo Hospital Nove de Julho — equivalente, hoje, a quase R$ 9 mil.
Para além da dor física e do longo processo para se adaptar à nova deficiência, que cria limitações invisíveis para pessoas com a visão íntegra nos dois olhos, Sérgio ainda tinha um outro trauma com o qual lidar: o medo. Por um ano, não voltou à rua para fotografar: “Eu sempre era interrompido pela dor, pelo peso do trauma, pela coragem de ir para a rua, coragem de pegar a câmera e sair na rua ainda com o olho ferido”. Foi com a insistência de amigos que retomou Res furtiva, um projeto artístico que tinha junto com outros camaradas.
Pior ainda era ver polícia. Qualquer viatura na rua lhe dava medo. Fantasiava que os policiais o reconheceriam como o fotógrafo que fora cegado em junho. “A minha sensação era de que os policiais olhavam para mim sabendo quem eu era, sabendo o que tinha acontecido, que aquilo era a minha culpa. Por muito tempo, se eu saísse na rua, voltava para casa ainda na luz do dia, não esperava anoitecer”.
O primeiro protesto que fotografou desde a violência sofrida foi um desafio auto-imposto por Sérgio. Ele escolheu cobrir, sem avisar ninguém, a marcha de 20 de novembro de 2014, dia da Consciência Negra, um ato que conta costumeiramente com um forte aparato policial, apesar de ser historicamente pacífico por parte dos manifestantes. “Eu queria que essa minha coragem fosse desperta naturalmente, através desse meu desejo. Cheguei lá, encontrei muitas pessoas queridas assim que também ficaram surpresas ali com a minha presença, enquanto outras que não falavam mas olhavam, sabiam o que tinha acontecido comigo”.
Por um momento, Sérgio esqueceu da presença policial, mas no final do ato, enquanto fotografava parte dos manifestantes que ficou para trás, se deparou com várias viaturas da Força Tática, fração do policiamento ostensivo da PM responsável por muito da violência de junho de 2013. “Aquilo me deixou novamente naquele estágio de medo, de ir para a calçada e ficar mexendo no celular, de costas, de cabeça baixa, com medo de ser reconhecido de medo, com medo de que eles pudessem fazer alguma coisa para mim.” Mas a inspiração e a coragem foram renovadas de uma maneira inusitada: a visão de uma lixeira.
“Tinha um estêncil pichado com a frase ‘Por que o senhor atirou em mim?’, que era um protesto pela morte do Douglas [jovem morto por um PM em São Paulo em outubro de 2013]. Eu fiquei olhando para aquela frase, para as viaturas e pensando: eu perdi um olho, mas tem gente ainda criança perdendo a vida por conta da violência do Estado. Eu não vou deixar de fotografar”, conta, exemplificando um dos seus motes desde que perdeu o olho: “bala de borracha cega, mas não cala”.
Um de seus primeiros projetos após a agressão foi uma série de fotografias que ainda mantém, chamado Piratas Urbanos, onde retrata os mais variados personagens, que vestem um tapa-olho sobre a vista esquerda, mostrando para as pessoas como é a sensação de enxergar com apenas um olho e ao mesmo tempo servindo como um protesto contra a violência que sofreu. Nomes como o do fotógrafo Sebastião Salgado e do político Eduardo Suplicy já vestiram os tapa-olhos de Sérgio.
Foi no lançamento de uma pequena exposição da primeira produção dessas imagens que conheceu André Caramante, um dos fundadores da Ponte. Sérgio se emociona ao lembrar que foi na Ponte que voltou a trabalhar com fotojornalismo, a convite de André.
“Uma das primeiras pautas que eu fiz foi com a Maria Teresa Cruz [ex-editora da Ponte]. A gente foi cobrir uma ocupação de um imóvel no Brás durante a madrugada, e eu lembro que foi muito tenso. Eu nunca esqueço desse encontro, do que as pessoas estavam passando para ter onde morar. A luta de outras pessoas e dos próprios movimentos me fizeram colocar a minha dor pessoal num outro lugar, um lugar mais calmo, mais quieto. Parei de ficar sentindo somente a minha dor. E também fui fazer parte dessa luta coletiva”, pondera o fotógrafo.
O que a justiça não vê
Para além das marcas físicas e psicológicas, dez anos depois Sérgio ainda segue tendo que lidar com a persistência da Justiça em não reconhecer a responsabilidade do Estado pela violência que sofreu. Na área criminal, as investigações da Polícia Civil e da Corregedoria da PM nunca deram em nada. Na área civil, Sérgio completa dez anos em busca de reparação, mas até hoje, para ele, a Justiça tem se mostrado tão cega quanto indiferente.
A cada decisão da justiça, uma decepção diferente. Primeiro, a justiça negou as tentativas de Sérgio para obter, em caráter liminar (provisório), o valor para pagar os gastos que tivera com o Hospital Nove de Julho. Acabou tendo de pagar do próprio bolso os estragos provocados em sua carne pelo Estado. A primeira decisão sobre o mérito do seu pedido de indenização veio somente em 10 de agosto de 2016: nesse dia, o juiz Olavo Zampol Júnior, da 10ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, disse que a culpa do tiro no olho de Sérgio era… do próprio Sérgio.
“No caso, ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as consequências do que pudesse acontecer”, escreveu o juiz Olavo ao justificar que a atitude do fotógrafo havia excluído a responsabilidade do Estado.
Na mesma decisão, Olavo negou os pedidos da defesa para que o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, responsável pela perícia no olho de Sérgio, respondesse perguntas adicionais sobre os ferimentos, o que poderia gerar mais provas que indicassem que os danos haviam partido de uma bala de borracha da PM. É que, para o juiz, essas provas simplesmente não importam: “Mesmo que houvesse provas de que o ferimento experimentado pelo autor tenha sido provocado por bala de borracha disparado pela polícia, ainda assim, não haveria de se cogitar da pretendida indenização”, escreveu na sentença.
A decisão do juiz Olavo seguia uma linha muito parecida com que o mesmo Tribunal havia decidido para o caso de Alex Silveira, quando, em 2014, os desembargadores consideraram que era dele “a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima”, ao perder a vista para uma bala de borracha em 2000.
Alex e Sérgio se viram pela primeira vez em julho de 2014, num encontro promovido pela Ponte. Alex fez questão de posar vestindo o tapa-olho dos Piratas Urbanos. “É difícil fotografar você, cara. A carga emocional…”, soltou Sérgio. Os dois fotógrafos, cada um do seu lado da lente, choraram. Ambos sabiam que seus destinos haviam sido ligados pela trajetória de uma bala de borracha disparada por uma PM cega para o sofrimento que provoca.
Em junho de 2021, a defesa de Alex conseguiu uma reviravolta no Supremo Tribunal Federal, quando o plenário da corte condenou o Estado de São Paulo a indenizar o fotógrafo e considerou que a decisão anterior, dos desembargadores paulistas, “viola o direito ao exercício profissional, o direito-dever de informar”.
Os advogados de Sérgio esperavam que a decisão, de repercussão geral, pudesse favorecê-lo, mas sabiam que a situação dele havia se complicado um pouco mais. É que, em 2017, o mesmo TJSP havia arrumado outro argumento para não indenizar Sérgio. Agora os desembargadores já não o culpavam por ter sido baleado, mas colocavam em dúvida que isso tivesse ocorrido. Em 29 de novembro daquele ano, o voto do relator Rebouças de Carvalho, com a concordância de Décio Notarangeli e Oswaldo Palu, afirmou não haver “nexo de causalidade entre o dano produzido ao autor e a prova de que o ato danoso tenha efetivamente sido praticado por agente público”.
Os advogados levaram o caso de Sérgio para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde os ministros decidiram que, diante da nova jurisprudência aberta pelo STF, o processo deveria ser devolvido ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Em abril deste ano, o tribunal manteve a decisão anterior, alegando, mais uma vez, que não existe “nexo causal” na violência sofrida por Sérgio — ou seja, que seria impossível provar que o ferimento foi causado por uma bala de borracha disparada por um PM. “É uma de decisão tão violenta quanto o policial que atirou”, comentou Sérgio na ocasião. Mas isso não apaga as esperanças de seu amigo Severino, que acredita que o STF deve eventualmente decidir a favor do amigo: “Vai ser a vitória não só do Sérgio como de todos aqueles que defendem os direitos humanos, a liberdade de expressão, a liberdade de manifestação”.
Outra luta que nasceu da violência de 13 de junho de 2013 parece mais distante de ser vitoriosa. As chamadas “armas menos letais” seguem sendo utilizadas de maneira indiscriminada pelas forças de segurança. Uma liminar de outubro de 2014 chegou a proibir a PM paulista de utilizar balas de borracha na repressão de protestos, mas foi derrubada em poucas semanas. Em 3 de dezembro do mesmo ano, uma lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) proibindo o uso desse tipo de munição, mas foi vetada por Alckmin no dia 19 daquele mês. E os cartuchos de elastômero não foram as únicas armas “menos letais” que continuaram arrancando olhos: na mesma esquina onde Sérgio foi alvejado a estudante Deborah Fabri também perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingida por estilhaço de bomba de gás disparada pela PM paulista, durante protesto contra o então presidente Michel Temer, em agosto de 2016. Em abril deste ano, o estado de São Paulo foi condenado a pagar R$ 130 mil reais a título de indenização para ela.
Um sonho azul da cor do mar
Em 2018, Sérgio voltou a se sentir entre a vida e a morte. Acometido por uma apendicite com complicações, ficou internado por 13 dias em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) — durante seis dias, respirava apenas com a ajuda de aparelhos. Com o corpo inteiro paralisado após uma parada bronco-respiratória, se perguntava: “será que vou escapar dessa vez?”.
Porém a recuperação, lenta, veio. E com ela, um sonho novo, ainda no leito do hospital. “Eu não sou muito de lembrar dos sonhos, mas tive um sonho que eu estava no fundo do mar, fotografando. Quando eu acordei de manhã e vieram meus familiares me visitar no hospital, eu falei: ‘quando eu sair daqui, eu vou fazer a fotografia subaquática’”.
Isso despertou novos planos na vida de Sérgio, que já testou um pouco das águas da nova ambição. “Fiz um mergulho numa região bem rasa, uns dois anos atrás, ainda preciso aprender mais, mas já senti um pouco como é a imagem debaixo d’água. Além de um novo mundo se apresentar daquelas vidas que existem ali, a imagem também é diferente. Tem muita distorção, tem muito reflexo, tem escuridão e também tem muita luz”, conta.
O fotógrafo identifica um diálogo entre a inspiração inicial da sua carreira, de guardar as imagens que as águas das enchentes do Riacho do Ipiranga levaram, e esse seu novo desejo. “Essa água, essa lama e o que me agita por dentro desde moleque, sem o saber, é o que me faz de alguma maneira também é isso lutar em outros espaços, em outros territórios, mas sempre com um pouco com essa indignação dessas águas, que arrastam e apagam a memória das pessoas.”