Júri absolve PMs que mataram jovens negros com 30 tiros

Jurados entenderam que o sargento André Chaves da Silva e o soldado Danilton Silveira da Silva atuaram em legítima defesa; advogado usou calúnia de promotora contra Mães de Maio durante a defesa

Momento em que policial militar atira na direção dos jovens que estavam dentro do carro | Foto: Reprodução

Como se fosse a conquista de um título de Copa do Mundo, os policiais militares que ocuparam todo o espaço destinado ao público pularam das cadeiras e gritavam em comemoração quando o juíz Paulo Fernando Deroma de Mello, da 3ª Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, leu a sentença na noite desta segunda-feira (1/8).

Por maioria de votos, o sargento André Chaves da Silva, 47, e o soldado Danilton Silveira da Silva, 28, foram absolvidos pelas mortes de Vinícius Alves Procópio, 19, e Felipe Barbosa da Silva, 23, após uma perseguição policial no bairro de Santo Amaro, na zona sul da cidade de São Paulo, em 9 de junho de 2021. O caso ganhou repercussão após a divulgação de um vídeo da dupla disparando contra as vítimas dentro de um carro diversas vezes.

O Conselho de Sentença, formado por sete pessoas da sociedade civil, entendeu que os acusados dispararam e mataram os dois jovens, mas agiram em legítima defesa. Os PMs, que estavam presos desde junho do ano passado, também tiveram o alvará de soltura assinado em seguida. No plenário onde aconteceu o julgamento, não era permitido nenhum tipo de registro, mas a reportagem viu alguns policiais filmando o momento em que se abraçavam e festejam o resultado na frente dos jurados.

À Ponte, a promotora Thais Ferreira disse que vai avaliar se vai ou não recorrer da decisão. Ela, que passou a atuar no caso nesta semana, sustentou que os policiais tentaram “fazer justiça com as próprias mãos” e não atuaram em legítima defesa. “Houve um excesso no número de disparos que foram feitos contra as vítimas já caídas, que não tiveram chance de defesa, que é o que aparece no vídeo”, declarou. “Dizem que bandido bom é bandido morto, mas não existe pena de morte no Brasil. Então, quem é o bandido?”

A advogada Patricia Vega, que representa a família de Felipe e atuou como assistente de acusação, argumentou que o fato de os dois rapazes terem cometido um assalto não justifica a abordagem que receberam. “Ninguém está falando que o Felipe e o Vinícius eram santos, eles entraram realmente numa empreitada criminosa, e naquele dia fizeram besteira”, disse. “Não estou desmerecendo o trabalho anterior que o André e o Danilton fizeram, mas naquele dia, naquela abordagem, deu ruim. Foi um ato de execução porque as vítimas não esboçaram nenhum ato de reação”.

Os laudos necroscópicos feitos pelo Instituto Médico Legal (IML) indicaram 14 tiros em Felipe, que estava no banco do motorista do Ônix, e 14 tiros que atingiram Vinicius, que estava no banco de trás. A perícia recolheu no local 19 cartuchos compatíveis com munição .40, que é a utilizada pela Polícia Militar e cada pistola tem capacidade para 15 tiros. Os policiais apresentaram dois revólveres, um Taurus calibre 32 e um Rossi 380, atribuídos aos jovens. Os revólveres têm capacidade para seis tiros cada um e não soltam cartuchos, como acontece com pistolas, quando são disparados. Um cartucho picotado de calibre 380 foi encontrado no banco ao lado do corpo de Vinicius e outros três íntegros próximo a Felipe. Os PMs apontaram que Vinicius teria tentado atirar, mas a arma falhou, o que gerou o cartucho picotado.

Os dois policiais disseram que atuaram em legítima defesa. “A opção do confronto nunca foi minha, nunca foi nossa, não é o que a gente deseja”, afirmou o sargento André Chaves. “A gente agiu como preconiza o POP [Procedimento Operacional Padrão]. Todos os policiais já tinham visto o vídeo, mas quando a imprensa passou [em TV e sites] que pediram nossa prisão”, prosseguiu o soldado Danilton Silveira.

Os advogados João Carlos Campanini, que representou André, e Celso Vendramini, que defendeu Danilton, culparam a imprensa pela acusação que recaiu sobre os dois por terem exibido um trecho da ação que não começou com os disparos. “Esses homens estão presos por causa da imprensa. Estamos vivendo uma inversão de valores, uma bandidolatria, em que os policiais são colocados como bandidos”, declarou Campanini. “Se eles [PMs] não tivessem atirado, quem estaria aqui era o Felipe e o Vinicius que ia dizer que é vítima da sociedade, que é pobre, que é da favela… Pelo amor de Deus, eu fui pobre e não virei bandido.”

Ele justificou que a ação não foi uma execução porque os PMs precisavam continuar atirando até “neutralizar a capacidade de combate” das vítimas. “É a teoria dos 10 segundos de morte: o policial só vai parar de atirar quando o bandido largar a arma. Não teve execução porque só teve dois tiros letais no Felipe e três no Vinícius, não teve tiro na cabeça. E quer saber? Morreu foi tarde, porque se levantar arma para o policial, é bala. Foi escolha deles morrer porque poderiam ter largado a arma”, prosseguiu.

“Eu não sou a favor de pena de morte, não sou a favor de execução”, falou Vendramini. “Mas quem conhece bandido sabe o que eles são capazes de fazer hoje em dia. Se ele levantar arma contra o policial, que tome tiro.”

Calúnias a movimentos sociais

Os advogados, especialmente Campanini, para sustentarem sua tese, criminalizaram entidades que atuam com denúncias de violência policial, as quais chamou de “defensores dos direitos dos manos”. Primeiro disse que um ouvidor das polícias ligado ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe) foi condenado por forjar denúncias mediante pagamento da facção criminosa PCC.

No entanto, nenhum ouvidor foi preso ou condenado por isso e sim um ex-vice-presidente do conselho, em 2017. Também disse que o presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Ariel de Castro Alves, “enche o saco” em toda a ocorrência que envolve denúncia contra policial e que era para os jurados “abrirem os olhos” porque ele já foi conselheiro do Condepe.

Depois, mencionou uma declaração de 2015 em que uma ex-promotora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), Ana Maria Frigério Molinari, lançava calúnias afirmando que havia recebido a informação de que o Movimento Independente Mães de Maio seria formado por mães de traficantes, que, após a morte de seus filhos, em maio de 2006, teriam passado a gerenciar pontos de venda de drogas, com o apoio do PCC.

Ele já havia exibido o vídeo dessa declaração durante o júri da Chacina de Osasco, em fevereiro de 2021 e até hoje o movimento social busca responsabilização da promotora sobre o caso. “Os bandidos que morreram eram donos das biqueiras, então o que o PCC fez e falou para aquelas senhoras? ‘O dinheiro que seu filho recebia do tráfico de drogas, eu vou continuar bancando para a senhora desde que toda a vez que tiver ocorrência envolvendo Polícia Militar vocês vão lá e botam a boca no trambone'”, disse Campanini.

Entenda o caso

Vinícius Alves Procópio, 19, e Felipe Barbosa da Silva, 23, foram mortos após uma perseguição policial no bairro de Santo Amaro, na zona sul da cidade de São Paulo, em 9 de junho de 2021. A investigação do caso, que de início era tratada como legítima defesa a partir do boletim de ocorrência, tomou uma outra direção quando um vídeo feito por uma testemunha que gravou parte da ação dos policiais militares viralizou nas redes sociais e serviu de base para que o sargento André Chaves da Silva, 47, o soldado Danilton Silveira da Silva, 28, e o cabo Jorge Baptista Silva Filho, 44, fossem presos cinco dias depois. Nas imagens divulgadas, é possível ver os dois PMs atirando diversas vezes pelas portas abertas de um Chevrolet Ônix branco e sem aparente reação de quem estava dentro do veículo.

As prisões foram decretadas tanto pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a pedido do delegado Fernando Moyses Elian, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, quanto pela Justiça Militar, solicitadas pelo capitão Rafael Oliveira Casella, responsável pelo inquérito policial militar (IPM). Foi na decisão do tribunal militar que surgiu a informação sobre a quantidade de disparos que atingiram os dois rapazes: 30.

O juiz Ronaldo Roth argumentou que os PMs “se afastaram do seu dever funcional, com a abordagem de veículo em descumprimento ao POP [procedimento operacional padrão], realizando aproximadamente 15 disparos cada, causando 27 perfurações em um civil e 23 perfurações no outro, colocando em dúvida a credibilidade da instituição Polícia Militar, o que, demonstra a necessidade da prisão para a garantia da ordem pública”. Dos três, André e Danilton permaneceram presos no Presídio Romão Gomes até o julgamento.

Segundo o boletim de ocorrência, tudo começou quando um homem de 49 anos relatou ter sido roubado por dois homens armados que o abordaram quando estava estacionado com seu Peugeot na Rua Alexandre Dumas. A vítima disse que um deles, que seria Felipe e teria entrado no banco de trás, estava armado com uma pistola. Vinicius teria ficado na porta do motorista para que a vítima não fugisse e também estaria armado (a vítima não soube dizer que tipo de arma), e depois também entrou pela porta traseira do veículo.

A dupla, de acordo com o homem, roubou sua aliança, três cartões de crédito e a chave do carro. Em determinado momento, os dois tentaram fazer com que ele fosse para o banco do passageiro, mas por estar muito nervoso não conseguiu e caiu quando abriu a porta. Em seguida, os dois fugiram e entraram em um Ônix branco que estava estacionado a frente e teriam entrado pelas portas de trás, o que indicaria, acredita a vítima, de que teriam mais pessoas que conduziam o veículo, e saíram sentido Avenida João Dias.

No depoimento, consta que essa vítima reconheceu Felipe e Vinicius como os assaltantes por fotos, mas no inquérito não consta que tipo de imagem serviu para o reconhecimento. O fato de o homem dizer que um deles estaria com uma pistola e não revólver também gerou desconfiança e acusação por fraude processual, num primeiro momento. Os pertences da vítima foram encontrados na cena do crime, com Felipe e Vinícius.

Vinicius e Felipe, mortos por PMs na zona sul de SP no dia 9 de junho | Fotos: Reprodução

O Ônix que os jovens estavam, segundo a investigação da Polícia Civil, pertencia a uma mulher que trabalhava como motorista de aplicativo e foi roubado no dia anterior da ocorrência, em 8 de junho de 2021, mas a proprietária apenas acionou a PM sobre o caso trinta minutos após a morte de Vinicius e Felipe. Ela também nunca apareceu para formalizar a ocorrência. Uma pessoa que teria presenciado o assalto ao dono do Peugeot acionou a polícia via 190 e os policiais identificados como soldado Novais e soldado Fernandes iniciaram a busca.

Ao localizar o veículo com os jovens em “atitude suspeita”, os policiais teriam tentado realizar uma abordagem. O veículo parou e duas mulheres teriam descido pelas portas da frente do carro. Os rapazes, então, assumiram a direção do Ônix e continuaram em fuga, só parando depois de colidir em um Honda Fit e, na sequência, em um poste de iluminação. Foi na Rua Rubens Gomes Bueno que aconteceu o acidente e, depois, a abordagem por parte da equipe de André, Danilton e Jorge. As mulheres não foram encontradas.

Os três PMs relataram que Felipe desembarcou do Ônix acidentado com uma arma na cintura. Jorge era responsável pela direção da viatura. André teria dito para que o rapaz largasse a arma e ele não teria obedecido e que, “diante da iminente agressão”, André e Danilton efeturaram disparos e Felipe caiu dentro do veículo, em cima do banco do motorista. Depois, quando Danilton foi abrir a porta de trás do Ônix para “averiguar seu interior”, disse que Vinicius, “com um revolver em punho, o qual ao ver o policial efetuou um disparo que acabou falhando”. O PM, também apontando “injusta agressão”, disparou contra ele. O sargento e o soldado relataram que recolheram as armas porque a dupla estava com sinais vitais e acionaram o socorro. O cabo Jorge disse não ter presenciado parte dos disparos por estar de costas, na retaguarda junto à viatura.

A mulher que estava no Honda Fit foi socorrida e à Polícia Civil disse que se abaixou quando começou a ouvir disparos, não tendo visto o que aconteceu. Outra testemunha, que estava em um ponto de ônibus, relatou que não viu ninguém sair do Ônix e ficar de pé do lado de fora, tendo reparado que a pessoa do banco do motorista fazia movimentos para abrir a porta e que a viu “portando uma arma prateada em uma das mãos”.

Depois, quando a pessoa estava tentando sair do carro, a testemunha ouviu diversos disparos e se jogou no chão, não tendo visto o ocupante do carro apontar arma e disparar “pois a arma estava apontada para o chão”. Ela reconheceu um dos revólveres apreendidos como sendo a arma prateada que viu.

A esposa de Felipe disse em seu depoimento que o marido trabalhava como motoboy e que, na noite de 9 de junho, recebeu uma ligação do esposo por volta das 19h20, em que foi possível ouvir “moiô, moiô, eles vão matar a gente”. Segundo ela, o marido contou onde estava e se despediu, dizendo que amava a esposa e a filha. Ele ainda teve tempo de pedir para que ela avisasse a família do amigo sobre o que estava ocorrendo.

Preocupada, a mulher explicou que seguiu para o endereço mencionado pelo esposo e que no meio do caminho recebeu três ligações de número não identificado, que ora informava que seu marido estava morto e ora que estava preso. Durante o depoimento, a jovem contou que assim que chegou ao local um PM apresentou uma foto de Felipe perguntando para ela quem era, momento em que se desesperou. Assim como a companheira de Felipe, o irmão de Vinícius contou que a todo momento eram ameaçados pelos policiais para que deixassem a região do assassinato.

Tanto a Polícia Civil quanto o Ministério Público Estadual concluíram que houve uma “execução”. Os promotores Fabio Tosta Horner e Thomás Mohyico Yabicu apontaram que “os indiciados perpetraram crimes gravíssimos, já que, no exercício de função pública de segurança, mataram de forma impiedosa, em verdadeira ‘execução’, duas pessoas que estavam no interior de um veículo, sem que pudessem esboçar qualquer reação defensiva”.

O Ministério Público ainda destacou que os acusados forjaram a cena ao dizerem que as vítimas tinham dois revólveres. A acusação para os três foi de homicídio qualificado por motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa das vítimas, além de fraude processual. A juíza Leticia de Assis Bruning acolheu a denúncia e os tornou réus.

No entanto, no decorrer das audiências, Jorge foi solto, em setembro do ano passado, a pedido da defesa e com manifestação favorável do Ministério Público. O cabo Jorge era quem conduzia a viatura e foi preso dias depois dos colegas. Justamente pelo fato de ser o motorista e não ter desembarcado do veículo, a magistrada entendeu que foram “enfraquecidos” os indícios de participação dele no crime. Esse entendimento permaneceu também quando os promotores fizeram as suas últimas considerações para que Bruning decidisse se os acusados seriam ou não julgados por um júri popular.

Tanto o Ministério Público quanto a juiza entenderam que o cabo Jorge não auxiliou os outros PMs, além de não ter efetuado disparos, e ter seguido o procedimento operacional padrão. Também concluíram que não ficou comprovado o crime de fraude processual, ou seja, de que André e Danilton forjaram a cena e plantaram as armas, já que a única inconsistência foi a vítima do roubo ter dito ter visto uma pistola com um dos assaltantes e foram apreendidos dois revólveres. Com isso, Danilo e André foram pronunciados a júri popular apenas pelo crime de homicídio qualificado por motivo torpe e por recurso que dificultou a defesa das vítimas, em 6 dezembro de 2021.

“Nesse sentido, os elementos de prova não excluem de plano a versão acusatória de que o delito teria sido praticado por motivo torpe, consistente no fato de que os réus teriam matado as vítimas para fazerem ‘justiça com as próprias mãos’, relativamente a condutas ilícitas anteriores, supostamente praticadas por elas; e com emprego de recurso que dificultou a defesa das vítimas, que teriam sido colhidas no interior de um veículo automotor, depois de terem colidido com outro automóvel e um poste, estando, assim, sem condições de ação ou de reação”, argumentou a juíza.

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A advogada Patrícia Vega, que representa a companheira de Felipe e atuou como assistente de acusação, ingressou, em março deste ano, com um processo de indenização por danos morais junto a um pedido de pensão alimentícia contra o Estado, já que o rapaz deixou uma filha de dois anos. Essa ação judicial ainda está em tramitação no Tribunal de Justiça. “No presente caso, levo em consideração que a vítima era jovem e foi brutalmente assassinada por policiais. A morte de um criminoso por policiais já
seria ato reprovável, passível de reparação por danos morais. A morte de inocente, tido por criminoso, traz grande revolta e humilhação aos familiares, ensejando indenização um tanto maior”, argumentou Vega.

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