Em 26 de junho de 2016, Caio Muratori disparou contra carro roubado em perseguição e acertou Waldik Gabriel Chagas na nuca
A Justiça de São Paulo acatou denúncia do MPE (Ministério Público Estadual) para que o GCM (Guarda Civil Metropolitano) Caio Muratori se torne réu no processo pelo assassinato do garoto Waldik Gabriel Silva Chagas, então com 11 anos, em 26 de junho de 2016. Muratoni responderá em fase de pronúncia por homicídio qualificado, crime com pena de 12 a 30 anos de prisão. Após ouvir testemunhas, réu e provas, a Justiça define se ele irá, ou não, a julgamento em júri popular.
De acordo com a denúncia do promotor de Justiça Bruno Orsini Simonetti, o guarda extrapolou suas funções ao perseguir o carro roubado, “transgredindo o regulamento” da GCM e atirou sabendo que poderia matar. “O denunciado, de forma consciente e voluntária, assumiu o risco não permitido de matar um dos seus ocupantes [do carro] e outras pessoas que transitavam pelo local, denotando indiferença em relação à vida e à integridade física alheias”, sustenta Simonetti.
Era uma manhã de domingo quando Valdik e dois adolescentes roubaram o veículo, modelo Chevette, de cor prata. Na Rua Saturnino, em Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade de São Paulo, o garupa de uma moto viu a viatura e avisou o GCM que um carro havia sido roubado. Na Avenida Doutor Guilherme de Abreu Sodré, altura do número 90, os agentes encontraram o Chevette, afirmam ter dado sinal de parada, mas os jovens fugiram atirando, segundo a versão oficial. Caio estava com outros dois guardas na viatura, mas somente ele ordenou a perseguição e atirou.
Durante a ação, Caio disparou quatro vezes na direção do Chevette, acertando um disparo no vidro traseiro e, em seguida, na nuca de Waldik. A perseguição teve fim na rua Regresso Feliz, 131, próximo a uma quermesse. Os dois adolescentes fugiram correndo. Frequentadores da festa cobraram os guardas para que resgatassem a criança que agonizava dentro do carro. Socorrido, Waldik morreu antes de chegar ao Pronto Socorro da região.
A perícia feita no veículo indicou que apenas um disparo foi feito, de fora para dentro do Chevette, que estava com suas janelas fechadas durante a perseguição. Os peritos não encontraram arma dentro do carro roubado, conforme versão apresentada pelos guardas.
Segundo o promotor Simonetti , o GCM Caio Muratori cometeu o crime “com emprego de meio capaz de gerar perigo comum, na medida em que o denunciado efetuou disparos de arma de fogo em via pública de bairro com circulação de pessoas”, sustenta, posteriormente cobrando a “devida fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração”.
A juíza Débora Faitarone recebeu a denúncia e reconheceu, em decisão no dia 3 de outubro de 2019, que os elementos apresentados pelo MP são suficientes para o GCM responder pelo crime em júri popular. Ainda não há confirmação de data para o julgamento.
“Agora terá início a instrução do processo na vara do Júri, com os depoimentos do réu e das testemunhas. Também serão analisadas as provas do inquérito policial. Depois pode ocorrer a pronúncia e o acusado ser submetido a julgamento por um júri popular”, explica o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana).
Faitarone é criticada por integrantes do MP por faltar com “imparcialidade” em casos envolvendo policiais militares e agentes de segurança. A magistrada é responsável por rejeitar denúncia de cinco PMs que mataram o garoto Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, em perseguição policial em 2 de junho de 2016, mesmo mês da morte de Valdik. Ítalo também havia roubado um carro e morreu com um tiro que o acertou no olho esquerdo. Os PMs deram a mesma versão de que o garoto, que dirigia um carro modelo Daiahatsu, disparou contra eles enquanto dava fuga na polícia.
Para o promotor Fernando Bolque, a magistrada fez uma “análise de mérito” ao rejeitar a denúncia dos PMs Otávio de Marqui – que seria responsável pelo tiro fatal – e Israel Renan Ribeiro da Silva por homicídio e fraude processual, e os outros três policiais – Daniel Guedes Rodrigues, Lincoln Alves e Adriano (sem identificação completa) – por fraude processual.
“Não posso dizer isso [que ela protege PM], mas o que ficou bem claro no processo, na minha manifestação, é que em casos específicos envolvendo policiais militares, ela tem uma certa tendência a rejeitar”, explica Bolque.
Na decisão que recusou a denúncia, Faitarone criticou entidades de direitos humanos por não “preservarem” os direitos dos policiais, além de “só acompanharem os processos de crimes dolosos contra a vida quando os réus são policiais militares”, argumentou Débora.
Além de Ítalo e Waldik, outro jovem morreu após perseguição policial a carro roubado em junho de 2016. Dois dias antes de Waldik morrer, Robert Pedro de Melo Oliveira Batista da Silva Rosa, de 15 anos. Ele roubou um carro em Guaianazes, bairro que faz divisa à Cidade Tiradentes, e caiu em um córrego durante a perseguição.
Ao tentar fugir da Polícia Militar pela janela do veículo, Robert recebeu três disparos dos policiais da Força Tática: um na boca e dois no peito. A família do jovem conseguiu liberar seu corpo para enterro mais de 48 horas após a morte pois ele constava no IML (Instituto Médico Legal) como “indigente”.
Os jovens repetiram crimes cometidos por jovens como Chico Buarque, que, quando pivete na década de 1960, furtou carro por duas vezes e levou surra e foi ameaçado por policiais. Moradores do Pacaembu, área rica da capital paulista, eles tiveram destino diferente de Ítalo, Waldik e Roberto, moradores da periferia.
À época das mortes, a SSP (Secretaria da Segurança Pública), explicou que “o DHPP instaurou inquérito policial para investigar a morte em decorrência de intervenção policial ocorrida na Cidade Tiradentes, na zona leste da capital. O veículo roubado passou por perícia e foi devolvido para a proprietária. A investigação segue em andamento pela Divisão de Homicídios. A Corregedoria da PM acompanha, como é praxe neste tipo de ocorrência”.
Prefeito de São Paulo em 2016, Fernando Haddad (PT) classificou a atuação da GCM como “equivocada“. “Eu conversei longamente com o comandante da guarda (inspetor Gilson Menezes) e com o secretário de Segurança Urbana (Benedito Domingos Mariano). E os dois entendem que a abordagem foi equivocada. Não se justificava, talvez, a perseguição e muito menos os disparos”, declarou Haddad, em entrevista à Rádio Estadão.
A Ponte questionou a Prefeitura de São Paulo, comandada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB), se Caio Muratori permanece como integrante da tropa e se o processo gerou alguma sanção interna e aguarda um posicionamento oficial.