Justiça Militar decide soltar PMs acusados de matar e sequestrar David

    Juízes decidem que caso continua na Justiça Militar; para capitão responsável por inquérito na Corregedoria, não há dúvida de que os policiais cometeram crimes

    David Nascimento dos Santos, 23 anos, foi morto depois de ser colocado dentro de uma viatura do Baep, na periferia de SP | Foto: Arquivo Ponte

    Após um depoimento longo de três horas do capitão PM Rafael Casella, encarregado pelo Inquérito Policial Militar que apura o sequestro seguido de morte do vendedor ambulante David Nascimento dos Santos, 23 anos, o colegiado do Tribunal de Justiça Militar decidiu soltar os sete PMs presos preventivamente pelos crimes.

    O jovem foi morto na noite de 24 de abril de 2020, após ser abordado por policiais do Baep na Favela do Areião, na periferia da zona oeste da cidade de São Paulo, quando esperava um lanche que pediu pelo iFood. Seu corpo foi encontrado na Favela dos Porcos.

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    A última das quatro audiências do caso, realizadas por videoconferência por causa da pandemia do coronavírus, contou com a presença de cinco juízes da Justiça Militar, entre eles o responsável pelo caso, juiz Ronaldo João Roth, o promotor Edson Corrêa Batista, os réus e os advogados de defesa, e o capitão Casella.

    Segundo o Ministério Público e a Corregedoria da PM, os policiais do Baep 1º sargento Carlos Antonio Rodrigues do Carmo, 2º sargento Carlos Alberto dos Santos Lins, cabo Lucas dos Santos Espíndola, cabo Cristiano Gonçalves Machado, soldado Vagner da Silva Borges, soldado Antonio Carlos Rodrigues de Brito e soldado Cleber Firmino de Almeida sequestraram David Nascimento dos Santos e, na sequência, o mataram.

    Para confundir a perícia e tentar mostrar que David era, na verdade, quem procuravam, os policiais teriam trocado as roupas dele.

    Antes do depoimento do capitão Casella, os juízes militares decidiram, a pedido da defesa, se o caso deveria continuar na Justiça Militar. O advogado Mauro Ribas, que cuida da defesa dos PMs, afirmou na audiência que o correto seria o julgamento na Justiça Comum porque o caso foi um homicídio, não sequestro seguido de morte, como consta na denúncia do promotor Edson Corrêa Batista.

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    Ribas argumentou que a juíza Elia Kinosita Bulman, do Tribunal de Justiça de São Paulo, comarca de Osasco, se apresentou como competente para julgar o caso, já que o caso também é investigado paralelamente pelo DHPP. Elia foi a magistrada que presidiu o julgamento da chacina de Osasco, a maior da história de São Paulo, ocorrida em agosto de 2015.

    Isso causou irritação no juiz Roth, responsável pelo caso, que questionou como a juíza poderia ter essa certeza se não tinha acessado o processo da Justiça Militar. Por unanimidade, os cinco juízes militares decidiram que o caso é, sim, competência da Justiça Militar, já que se trata de um sequestro seguido de morte, crime previsto no Código Penal Militar.

    A dinâmica do crime, segundo a Corregedoria

    No depoimento, o capitão Casella detalhou como foi o processo de investigação da Corregedoria da PM que ele presidiu. “Essa investigação não teve um longo espaço de tempo, porém houve uma robustez muito grande em quase sete volumes de inquérito, onde foram produzidos todos os elementos possíveis”, iniciou o capitão.

    Ele afirmou que o tenente Gabriel Gonçalves dos Santos Camargo e cabo PM Edson Felix de Medeiros foram os primeiros a chegar no local, já que iniciaram a perseguição aos três suspeitos de roubar o motorista do Uber.

    Félix, que era o motorista, ficou na viatura com a vítima do roubo, enquanto o tenente Carmo foi a pé para dentro da Favela do Areião. Pouco tempo depois, outra viatura chegou no local, comandada pelo sargento Lins. Na sequência, segundo o relato de Casella, Félix apontou a viela, após dar as características dos suspeitos, e Lins entrou novamente na viatura.

    Na sequência, Lins entrou na viela com a viatura e os PMs comandados por ele abordaram um homem. Até esse momento, explicou o capitão Casella, a ocorrência foi normal e, a partir daí, começou a sequência de ações que culminaram na morte de David. “Temos essa abordagem normal, que é feita de modo rápido, em que a pessoa levanta a blusa e se percebe que não está armado. O que foge da normalidade é a questão do soldado Firmino sair da viatura e o abordado entrar no banco de trás e eles levarem essa pessoa embora”, detalhou. 

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    Segundo o capitão que investigou o caso, os PMs saíram dali e voltaram na entrada da favela, cerca de 1 km de distância, o que foi feito em três minutos. Quando retornaram ao local inicial, o sargento Lins questionou se aquela pessoa era um dos suspeitos. Nesse momento, veio a negativa de que os suspeitos estavam de calça e David vestia bermuda.

    Casella afirmou que não encontrou nenhuma testemunha que contasse que essa pessoa foi liberada próxima ao muro do trem, como declarou o sargento Lins. Ao longo do depoimento, o capitão afirmou que “todos os elementos colhidos na investigação foram em consonância para um problema”. Ele também destacou que ainda que as provas sejam provisórias, os elementos corroboram com as falas da testemunha protegida.

    Para o capitão, os policiais não seguiram nenhum procedimento operacional da Polícia Militar durante a ação. Em determinado momento, o capitão afirmou que o “o que o tenente [Camargo] disse [durante o depoimento] não condiz com o que aconteceu”. Ele detalha como foram os tiros que atingiram David.

    Segundo o relato do presidente do IPM, o sargento Carmo, que estava mais à frente, disparou dois tiros de fuzil, no centro estava o soldado Borges, que disparou duas vezes com uma pistola e o cabo Espíndola atirou uma vez com a pistola. Casella não soube precisar a ordem dos tiros, já que foi questionado inúmeras vezes pelo colegiado sobre a força que um tiro de fuzil tem e que, se fosse o primeiro disparo, dificilmente David permaneceria de pé.

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    Após o longo depoimento, os juízes fizeram duas votações: se o caso continuaria na Justiça Militar e se os PMs permaneceriam presos ou responderiam em liberdade. A primeira votação foi unânime: todos entenderam que o TJM era competente para julgar o processo.

    Já na segunda votação, o juiz Roth foi acompanhado apenas pelo capitão PM Moacir Mathias do Nascimento para manter a prisão preventiva dos réus. O major PM Joel Chen deu o voto de desempate, acompanhando os capitães PM Edgard Aicart Zullo de Castro e PM Andre Carvalho dos Santos para liberação dos PMs para responder em liberdade.

    O que dizem os advogados

    Raphael Blaselbauer, que representa a família de David, disse à Ponte que a defesa recebe a decisão do colegiado com “perplexidade”, já que “a prisão preventiva é um instrumento cautelar e não de antecipação de pena”. “Os motivos para a manutenção da prisão permanecem inalterados, sobretudo pela alta periculosidade dos réus e pela gravidade dos crimes praticados”, apontou.

    Blaselbauer destacou que é a revogação da prisão não foi feita em concordância pelo Ministério Publico ou pelo juiz Roth, “mas, sim, por parte dos policiais militares investidos na função de juízes para aquela ação penal militar”, criticou.

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    “Isso revela uma completa e absoluta falta de imparcialidade da Justiça Militar para julgar seus pares e acaba por desmoralizar o Poder Judiciário. Certamente utilizaremos de todos os instrumentos legais e processuais para revertermos essa decisão”, afirmou.

    Já Mauro Ribas, que cuida da defesa dos réus ao lado de Renato Soares do Nascimento, comemorou a decisão de revogação da prisão preventiva dos PMs. “É questão de justiça, porque não tem motivo algum para os policiais responderem esse processo preso”, argumentou.

    “Todas as vezes que eles foram solicitados para prestar depoimentos eles se apresentaram imediatamente e voluntariamente, além disso nenhuma testemunha foi ameaçada. Em regra, o processo penal tem a característica para que se responda em liberdade, a prisão é uma exceção”, completou Ribas. 

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    O defensor voltou a criticar a permanência do caso na Justiça Militar. “Em nenhuma hipótese isso deve continuar lá, porque é competência do Tribunal do Júri esse julgamento”.

    Ribas também criticou a ação da Corregedoria da PM na investigação do caso. “O depoimento do capitão Casella foi muito esclarecedor para a defesa, principalmente em pontos que mostram que a Corregedoria quebrou a cadeia de custódia das provas, impedindo que a defesa tivesse qualquer chance de questionar as provas do vídeo e das roupas, simplesmente porque eles as liberaram”, concluiu.

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