Artista negro foi preso no último sábado (7) por roubo, reconhecido de forma não presencial, por foto em redes – segundo especialista, isso torna o processo nulo; comunidade do Fundão do Ipiranga organizou protesto
A comunidade do Jardim São Savério, na zona sul da cidade de São Paulo, tem unido forças desde o último sábado (7/5) para denunciar a prisão injusta de um dos artistas nascido e criado no bairro.
Diego Andrade da Silva, 34, mais conhecido por MC Di, seguia seus passos no rap, no funk e como goleiro nos times de futebol da região até ser enquadrado no último fim de semana por policiais militares que lhe informaram de um mandado de prisão e o levaram ao 26º DP (Sacomã).
À Ponte, a família conta que MC Di foi preso e condenado por um roubo que não cometeu e tenta provar sua inocência há mais de cinco anos.
Protesto exige liberdade
Na sexta-feira (13/5), junto com amigos e vizinhos, familiares do músico fizeram um ato pedindo a liberdade do MC. A manifestação teve início no mesmo local onde Di foi abordado e preso por policiais militares e percorreu ruas do Jardim Salvério e Parque Bristol, parando no campo onde Diego costumava jogar defendendo o gol de diferentes times da região.
Os mesmos policias que efetuaram a prisão de MC Di estiveram no final do ato observando os manifestantes. “Eles cometaram abusos. Colocaram o Di deitado no chão e o algemaram. Na hora, ele mesmo se entregou e disse que não tinha necessidade de ser algemado”, contou Thiago Trajano, primo do músico.
Os pais de MC Di estão muito abalados desde a prisão do filho. Natalino Medeiros da Silva não consegue conter as lágrimas ao falar sobre o filho.
Ele lembra que o rapaz trabalha com carteira assinada há mais de dez anos na mesma empresa e não precisaria se envolver em nenhum assalto: “Todo mundo aqui conhece ele. Uma pessoa honesta, trabalhadora, envolvido com cultura e esportes e agora a justiça quer tratá-lo como criminoso”.
Mãe de MC Di, a pedagoga Sônia Aparecida de Andrade Rosa Silva, 62, também lamenta a situação e conta que o filho é uma pessoa querida na comunidade, é pai de duas crianças de 2 e 9 anos e trabalhou desde cedo com carteira assinada: “Eu conheço meu filho, eu sei como eu criei os meus filhos. Eu e o pai dele sempre trabalhando, ninguém foi para o lado errado para poder criar eles e eu conheço a índole deles, o Diego sempre trabalhou”.
Sônia diz que não sabe de onde tem tirado forças para trabalhar como educadora em uma creche nos dias após a prisão do seu filho. Ela conta que fará de tudo para sensibilizar a vítima do assalto do qual o filho foi acusado para retirar a denúncia e mostrar que Diego Andrade não teve nenhum envolvimento com o crime: “Essa manifestação serve pra isso. Para a gente mostrar que o meu filho é uma pessoa de família, tem amigos, é trabalhador e nunca se envolveu com coisa errada”.
O barbeiro Douglas Andrade da Silva, 39, conta que em fevereiro de 2017 o irmão foi surpreendido com uma intimação do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), informando que ele estava sendo acusado de participar de um assalto ocorrido em 9 de janeiro junto com Hudson Henrique Zambotti Ferreira, que havia sido detido pelo crime no mês anterior. Ambos moravam na mesma região e já integravam o futebol de várzea da zona sul da capital paulista. “Fizeram aquela foto de time, em que fica um [jogador] em pé e outro abaixado, e acho que foi nessa foto que ligaram um com o outro”, diz.
Por conta de uma foto compartilhada no Facebook, MC Di se tornou suspeito para a polícia, passou por um reconhecimento irregular e foi alvo de um processo em que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) o condenou, em 2018, a seis anos e cinco meses de reclusão. Com os recursos da defesa negados, o caso transitou em julgado e agora o cantor cumpre a sentença no Centro de Detenção Provisória (CDP) IV de Pinheiros.
“Todo mundo que convivia com ele sabe da inocência dele e isso foi um baque para todo mundo aqui. Nas redes, no grupo de amigos que eu estou, não se fala em outra coisa porque está todo mundo indignado”, relata o irmão.
O protesto teve fim na Avenida Ourives, que faz divisa entre os municípios de São Paulo e São Bernardo do Campo.
Acusado e condenado com base em uma foto
O caso em que Diego foi acusado trata-se de um roubo que aconteceu por volta das 12h na Rua Major Diogo, na República, centro de São Paulo. Segundo o boletim de ocorrência, registrado no 04º DP (Consolação), uma cabelereira relatou que naquele dia 9 de janeiro de 2017 estava no carro a caminho de casa, após sair de uma casa de câmbio onde havia realizado uma troca de 1.300 euros, quando parou no semáforo e foi abordada por dois assaltantes que estavam em uma moto. Um deles dirigia a moto e o outro, que estava em posse de uma arma, pediu para que a vítima entregasse o “pacote” e roubou sua bolsa contento parte do valor trocado, seus documentos e cartões bancários.
No fim de janeiro, a Polícia Civil identificou Hudson Ferreira como um dos suspeitos que teria participação em roubos semelhantes. Chamada à 1ª Delegacia do Patrimônio do DEIC, a vítima o reconheceu por foto como sendo a pessoa que conduzia a moto no dia do crime e descreveu que o segundo assaltante era um homem “magro, pardo, de cabelos encaracolados cortados e usava aparelho nos dentes”. A partir de buscas nas redes sociais de Hudson, MC Di foi reconhecido por foto pela vítima em 14 de fevereiro de 2017, e posteriormente por reconhecimento pessoal na delegacia.
Durante o interrogatório, ambos negaram participação no crime. Diego disse que mantinha contato superficial com Hudson e alegou que naquele dia estava em sua residência, na zona sul da cidade, por estar de férias coletivas da empresa. Mesmo assim, o relatório final de investigação assinado pelo delegado Rogério Barbosa Thomaz apresentou o pedido de prisão preventiva, pelo qual a promotora Lúcia Nunes Bromerchenkel se manifestou a favor e denunciou os dois jovens pelo roubo. No dia 7 de maio, a juíza Patrícia Álvares Cruz, da 9ª Vara Criminal do TJ-SP, decretou a prisão de Hudson e decidiu que Diego responderia o processo em liberdade.
Nas audiências, a defesa de MC Di apresentou provas de seu emprego fixo como ajudante geral em uma empresa de dedetização onde atua há 10 anos, apresentou testemunhas sobre seu álibi e contestou a regularidade do reconhecimento fotográfico, que não seguiu os procedimentos previstos no Código de Processo Penal.
Em 16 de julho de 2018, a juíza Érica Aparecida Ribeiro Lopes e Navarro Rodrigues decidiu pela condenação de Hudson e Diego com base nos reconhecimentos realizados tanto na delegacia quanto em juízo. “Não há nenhuma evidência de que a vítima foi influenciada pelo fato de o réu não estar trajando o uniforme dos presos, ainda mais porque o reconhecimento em juízo não foi o único realizado pela vítima, que também reconheceu o réu pessoalmente na delegacia de polícia”, justificou a magistrada na sentença.
Tanto o recurso de apelação (para que uma decisão seja revisada ou anulada) quanto o pedido de habeas corpus apresentados pela defesa de MC Di foram negados pela Justiça e o mandado de prisão contra ele foi expedido em fevereiro deste ano.
Agora, a família de MC Di luta para buscar novas provas e poder contestar a decisão judicial. Desde criança, Diego mergulhou na cultura hip hop e sempre foi muito presente nos eventos que acontecem dentro da comunidade onde mora. No dia em que foi enquadrado, estava a estava a caminho de jogo do time Quem Tá É Nois, no qual atua como goleiro. “No sábado, quando eles o levaram, eu e o Douglas fomos para a delegacia. E ele [o Diego] ainda falou assim: ‘mãe, se eu soubesse, teria me apresentado para não passar por essa humilhação que estou passando”’, conta dona Sônia.
Reconhecimento é nulo, segundo advogado
A pedido da Ponte, o advogado André Alcântara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, analisou o processo e apontou que o primeiro reconhecimento que MC Di foi alvo, o fotográfico, não pode ser considerado como prova. “O STJ até já se manifestou dizendo que os reconhecimentos que não forem feitos de forma presencial, dentro dos padrões com quatro testemunhas, quatro pessoas que fossem comparadas, seriam inválidas e esse [caso] já começa assim. É um reconhecimento nulo”, explica.
A decisão que o advogado se refere foi dada em 2020 quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus a um homem que tinha sido condenado com base em um reconhecimento por foto ao entender que a prova não seria suficiente para condená-lo.
O advogado também critica a forma como Diego foi caracterizado suspeito do roubo, sendo achado pelo perfil de rede social do outro acusado, e a falta de uma investigação qualificada e responsável por parte da polícia. “A dinâmica que normalmente os investigadores fazem é a do ‘reconhece esse mesmo’, mesmo que depois coloquem mais três pessoas juntas, já foi o processo de mostrar antes a foto dele e criar vícios na testemunha, que já foi induzida a dizer que era aquela pessoa. É uma lógica criada para criminalizar pobres e para cumprir metas de prisão, de inquéritos concluídos.”
Outro lado
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP), do governo Rodrigo Garcia (PSDB), para questionar sobre o reconhecimento irregular, pelo qual Diego e Hudson foram alvos, se é um procedimento adotado pela delegacia e para saber quais outras provas foram produzidas para justificar a prisão do MC. A pasta encaminhou a seguinte nota:
“O caso foi investigado pela 1ª Delegacia da Divisão de Investigações sobre Crimes contra o Patrimônio (DISCCPAT) do Deic. Os suspeitos foram reconhecidos pessoalmente pela vítima como sendo os autores do crime. O inquérito policial foi concluído e encaminhado ao Poder Judiciário, não retornando mais à unidade. O indivíduo citado pela reportagem foi condenado pela Justiça, sendo a prisão realizada pelo 26º DP (Sacomã), em cumprimento a decisão judicial.”
O Ministério Público (MP) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) também foram questionados sobre o reconhecimento fotográfico de MC Di. O TJ encaminhou a seguinte nota:
“O Tribunal de Justiça não emite nota sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”
Já o MP afirmou que “o réu foi reconhecido pessoalmente pela vítima, foi denunciado, apresentou resposta a acusação na qual requereu a produção de provas e foi condenado, em primeiro grau, após ser reconhecido novamente, sob os Princípios do Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa, sendo que a r. decisão condenatória foi devidamente mantida pelo E. Tribunal de Justiça em segundo grau de Jurisdição.”