Há 20 anos frequentando o centro de SP, Antonio Carlos Nascimento se tornou ‘a voz do fluxo’ contra a violência de Estado. Ele morreu no sábado (13) e ganhou homenagens na região
“Pra quem não me conhece, Kawex”. É assim que Antônio Carlos Nascimento, 53 anos, começava a cantar as letras que compôs e pelas quais se tornou conhecido, contando sobre “um mundo que não distingue amor da maldade”, ao narrar sobre a sua vivência na região da Luz, na capital paulista, conhecida pejorativamente como Cracolândia. Os versos, que foram entoados em coro pela primeira vez em 2017, no entanto, perderam no último sábado (13/2) seu criador.
O rap “São Paulo à Noite, O Mundo se Divide em Dois“, gravado naquele ano, virou um hino e um grito de protesto contra a violência policial pelos frequentadores do fluxo, como chamam as ruas do bairro onde há uso e comércio de drogas, após a megaoperação realizada em maio de 2017 pelos governos municipal e estadual que gerou terror entre moradores, com bombas e gás lacrimogêneo lançados pelas forças de segurança, além de imóveis que quase foram totalmente demolidos com gente dentro.
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Nos seus 20 anos frequentando o local, o MC decidiu condensar em seu nome artístico a trajetória: Kawex é um acrônimo das palavras kombat, argument, war, extreme, que representam, em tradução livre, “combate e argumentos numa guerra extrema”. Porém, não foi pelo rap que o médico e palhaço Flávio Falcone o conheceu quando passou a atuar em programas do governo destinados à dependência química na região. “Em novembro de 2012, a primeira pessoa que me abordou foi ele porque eu estava com um pandeiro na mão”, lembra.
Foi também por causa do instrumento que a reportagem da Ponte o conheceu numa roda de samba feita pelos frequentadores da área na então recém reformada Praça Julio Prestes, em dezembro de 2018, e que, segundo eles, eram proibidos de usar. O samba, para Kawex, era uma forma de se conectar ao pai, que perdeu o trabalho durante o governo Collor (1990-1992) e acabou sendo vítima de um acidente vascular cerebral. A família não tinha como pagar hemodiálise para o tratamento. “Foi um sofrimento grande que eu não esqueço e que acabou me levando para o crime”, relembrou na época. “Meu pai tinha uma oficina mecânica aqui no centro e teve um dia, quando eu tinha 12 anos, que eu fui acompanhar as rodas de samba que a minha família ia e comecei a batucar. Aí eles notaram que eu sabia cantar”, contou.
Em meio à invisilidade social, foi nesse espaço que Falcone encontrou talentos. “Para nós é uma perda muito triste porque ele era uma voz que falava por si mesmo, que criticava a sociedade capitalista em que vivemos e o quanto as pessoas que vivem ali têm de potência”, aponta o psiquiatra. “Não é à toa que ele ficou conhecido como ‘Sabotage da Cracolândia’, ele era uma liderança, um formador de opinião e uma voz para além dos muros invisíveis que se criam perante aquela população”, prossegue.
Em uma das peças de teatro que Falcone criou em conjunto com a população dali, chamado “Dr. Palhaço e o Fluxo”, Kawex chegou a ser detido a caminho para o espetáculo em que ia se apresentar em maio de 2019 por causa de uma condenação por desacato a autoridade. Ele havia sido preso em 2014 ao ter respondido a um PM que tinha agredido verbalmente uma mulher, segundo testemunhas na época. Com o processo, foi condenado e recebeu uma “sentença restritiva de direitos”, ou seja, a Justiça de São Paulo decidiu que ele deveria pagar uma multa no valor de um salário mínimo. Como ele não cumpriu a ordem, já que não tinha como pagar o valor, a pena foi convertida em prisão de sete meses em regime semiaberto, o que ocasinou a prisão de 2019. Porém, um grupo de pessoas acabou se juntando para fazer uma vaquinha e quitar a multa, culminando na liberdade do rapper.
Foi na época em que passou pelo sistema carcerário que Kawex contou que passou a ter conhecimento dos seus direitos e que isso se refletiu nas letras que compôs. “Na cadeia a gente só tinha acesso à Bíblia e ao Código Penal. Os próprios presos não conhecem a Lei de Execução Penal e eu já fui punido lá dentro várias vezes por tentar pedir uma condição humana de tratamento que já é previsto em lei”, pontuou à Ponte. “Eu frequentava um grupo de teatro no semiaberto e por causa de uma falta disciplinar, me tiraram do grupo. Me colocaram para construir gaiola de passarinho. Me diz se isso é reeducação de preso?”, contestava.
Em novembro de 2018, ele chegou a gravar um album com suas músicas e continuava participando de eventos e apresentações de rap feitos por projetos que atuam na região da Luz. Nos últimos seis meses, Falcone conta que Kawex participava de seu projeto de redução de danos para pessoas com dependência química chamado Teto, Trampo e Tratamento, em parceria com o Ministério Público do Trabalho. “A gente conseguiu um quartinho para ele num hotel no centro, ele trabalhava entregando marmitas e estava muito melhor que antes”, relatou o médico à reportagem. Ele também fazia alguns eventos de música na Praça Princesa Isabel em que Kawex também cantava.
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De acordo com o educador social e artista visual Raphael Escobar, que também atua com projetos na região, ele e Falcone ficaram sabendo da morte do rapper no domingo (14/2) à noite. “Ele era uma pessoa que sempre acordava cedo, dava bom dia para todo mundo e o pessoal do hotel estranhou que ele não apareceu. Quando entraram no quarto, já encontraram ele sem vida”, afirmou. Kawex tinha epilepsia. O velório foi realizado com recursos adquiridos do Projeto Birico, que dá visibilidade a artistas da região.
Nesta quinta-feira (18/2), ativistas e moradores da região decidiram fazer um cortejo em homenagem ao rapper no Teatro de Contêiner, no centro da cidade, colando um lambe-lambe com a foto de Kawex.
O movimento A Craco Resiste, que denuncia violações de direitos humanos no território, emitiu uma nota de pesar na segunda-feira (15/2). “A passagem de Kawex é silêncio, é a falta de uma voz que se levantou contra as injustiças do nosso tempo. Era o rap com raiz na rua que conta as histórias de uma cidade partida e um mundo dividido. Foi a cabeça erguida fazendo frente à guarda, à polícia e a todas as autoproclamadas autoridades, togadas ou de gravata”, diz trecho.
“Ele se tornou uma figura que quebra o estereótipo de usuário zumbi que tentam colocar nas pessoas, muito politizado que fazia uma contranarrativa muito potente contra o descaso do poder público”, declarou Escobar.