MC Salvador da Rima: violência policial ‘só confirmou o que eu já canto’

    Funkeiro foi agredido por policiais com a prática proibida de estrangulamento, mas delegado Sandro Tavora ignorou agressão e autuou a vitima — por desacato. “Pensei que seria morto”, contou o MC

    MC Salvador abraça José Ivanildo da Silva, dono da casa invadida pela PM | Foto: Ponte Jornalismo

    Depois de ser enforcado por policiais militares com um mata-leão, golpe proibido desde julho do ano passado, e passar quase oito horas detido no 67º DP (Jardim Robru), autuado por desacato, o músico Fábio Gabriel Salvador de Araújo, o MC Salvador da Rima, 19 anos, finalmente saiu da delegacia por volta das 19h30 deste sábado (27/2), sobre os braços de fãs e amigos.

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    Juntos, o músico e o grupo se aglomeraram e cantaram um dos funks mais conhecidos do MC , Vergonha pra Mídia: “Olha, o tormento é um tapa na cara/ Poucas ideias, vergonha pra mídia/ Tem que colocar o cuzão do Datena no ar/ E falar que os mandrake deu perdido na polícia”. Muitos não usavam máscaras.

    Do distrito policial, Salvador foi direto para uma casa na Rua Moisés Alves dos Santos, no Itaim Paulista, na zona leste da capital paulista, onde o conflito com a PM teve início, por volta das 12h, e que acabou invadida por policiais. Emocionado, o funkeiro pediu desculpa aos donos da residência, a auxiliar de enfermagem Regina Aparecida Morais Mesquita da Silva, 52, e o técnico de som José Ivanildo da Silva, 48, “por causa do transtorno”.

    O casal abraçou o músico. “Aqui é sua casa. Nós estamos do seu lado, filho”, disse Regina. Ela própria conta ter sido agredida pelos PMs. “Esses policiais invadiram a minha casa e me empurraram e jogaram spray de pimenta. Eu sou recém transplantada e estou com uma hérnia imensa e me empurraram. Isso não é justo”, havia desabafado, horas antes, nas redes sociais.

    As violências tiveram início por volta de 12h, quando policiais da 1ª companhia do 29º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano chegaram à rua. O MC e um grupo de amigos estavam reunidos diante da casa de Regina e José, ouvindo música em um carro estacionado, enquanto se preparavam para uma partida de futebol que jogariam dali a pouco. Segundo a mulher e empresária do artista, Kelly Araújo, os PMs pararam e pediram o documento do automóvel que tocava funk. Quando ela foi entregar a documentação, os policiais teriam visto o MC no portão da casa e foram atrás dele, invadindo a residência sem mandado judicial e iniciando as agressões. 

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    “Isso [agressão] não me abalou, só confirmou o que eu já canto”, disse MC Salvador da Rima à Ponte. O músico tem diversas composições narrando violências policiais sofridas pela população das periferias. Tanto que, segundo ele, durante as agressões os PMs teriam dito que estava apanhando por causa do que costuma cantar. “Mas não fico com medo, fico é com mais ódio e vontade de relatar nas músicas o que eles fazem.”

    Regina e MC Salvador conversam após o músico deixar a delegacia | Foto: Ponte Jornalismo

    As agressões ocorreram na rua onde o funkeiro passou boa parte da sua vida e tem as amizades de infância. Vários celulares filmaram o momento em que os PMs estrangularam Salvador, infringindo uma ordem interna da corporação de 31 de julho, que proibiu a prática do mata-leão. A proibição veio após o escândalo provocado por vídeos que mostravam o estrangulamento de pessoas negras por policiais, incluindo a morte de George Floyd, nos EUA, e o sufomento de um rapaz até desmaiar, em Carapicuíba (Grande SP).

    José Iranildo disse que Salvador “é um menino muito bom” e que só foi agredido por causa de sua música. Sua esposa, Regina, conta que segue muito abalada pelas cenas que presenciou. “O Salvador estava me cumprimentando, e do nada os policiais viram ele e agarrou pela camisa. Ele tentou entrar aqui em casa, que ele sempre é bem-vindo, e os policiais invadiram e começaram a agredir. Foi horrível ver ele apanhar daquele jeito”, conta.

    MC Salvador conta chegou a temer pelo pior: “pensei que seria morto”. A situação só amenizou quando chegou na delegacia da Polícia Civil, onde viu que “os caras estavam fazendo o trabalho melhor”. Antes de ser levado para o DP, a PM conduziu Salvador até um pronto-socorro. “Também não tenho o que falar dos policiais que me levaram, o problema foram só os dois que me agrediram aqui [na rua] e porque todos foram coniventes com a mentira depois.”

    No 67º DP, onde o caso foi registrado, o delegado Sandro Tavora ignorou as evidências de agressão contra Salvador e a invasão sem mandado judicial feita pelos PMs, preferindo autuar apenas o músico — pelo crime de desacatar funcionário público no exercício da função, que prevê detenção de seis meses a dois anos, ou multa.

    O mesmo delegado também ignorou um áudio captado por um celular e postado nas redes sociais que supostamente revelaria uma conversa em que os PMs combinam ferir a si mesmos para acusar o funkeiro de agressão. Segundo testemunhas, os policiais teriam feito a combinação sem perceber que um dos celulares que haviam apreendido estava ligado e transmitindo ao vivo no Instagram. No áudio, é possível ouvi-los dizendo “machuca a mão, aí, negão, o rosto”, “bato a testa aqui já, ó” e “tem que apresentar nós como vítima, mesmo”. 

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    Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) não desmentiu que as falas tenham sido ditas pelos policiais, mas declarou que o áudio seria “improcedente” porque os PMs não falaram desses ferimentos quando foram à delegacia.

    Na mesma nota, o governo afirma que MC Salvador foi preso por “hostilizar” os PMs e que vai investigar a conduta dos policiais, mas já concluiu que são inocentes. “Não houve ilegalidade na ação dos policiais, no entanto, os procedimentos serão analisados do ponto de vista técnico-operacional e administrativo”, afirma.

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