Letalidade policial segue elevada, de 27 para 50 vítimas no oitavo mês de 2023; para especialista, números mostram que governo paulista tem “incentivado” policiais a matarem
“Só escutava ele gritar ‘socorro’”. Foi essa a última vez que uma adolescente de 14 anos ouviu a voz do pai, o encanador Willians Santana, 36, ao ser abordado e morto por policiais militares no Guarujá, no litoral paulista, segundo uma parente ouvida pela Ponte. Ele é uma das 50 vítimas do braço armado do estado de São Paulo no mês de agosto, durante a Operação Escudo, que foi deflagrada em 28 de julho após o assassinato de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa de elite da PM paulista.
Willians é uma das vidas por trás dos números da letalidade policial em São Paulo, que segue em alta pelo oitavo mês seguido. Só em agosto, o aumento foi de 85%, comparando com o mesmo período de 2022, quando foram contabilizadas 27 vítimas. De janeiro a agosto, as polícias Civil e Militar mataram 327 pessoas, ou seja, quase 25% a mais do que no mesmo intervalo do ano passado, de acordo com os microdados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) e que podem ser baixados aqui.
Apesar de o programa de câmeras nas fardas estar em funcionamento desde 2020 e alcançado uma redução histórica no indicador de mortes decorrentes de intervenção policial, as ocorrências em serviço, nas duas corporações, subiu 40%, enquanto os casos na folga caíram 6,9% nos oito primeiros meses de 2023 em relação ao ano passado. Só na PM, que é quem usa os equipamentos, a alta foi de quase 37% (165 para 226 casos em serviço).
Para o coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, a primeira fase da Operação Escudo consolida uma postura de “incentivo” às mortes que a gestão sob o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite vem tomando desde o início do ano.
“O que a gente tem discutido é o efeito na ponta. O efeito nos policiais que fazem o patrulhamento cotidiano, mesmo fora da Baixada [Santista], sabendo que 28 pessoas foram mortas em um pouco mais de 40 dias, não tem imagem de câmera, e o próprio governador falou que foi uma operação exemplar. É como se a Operação Escudo fosse um exemplo da política de segurança do atual governo e, ao mesmo tempo, um incentivo para que o uso da força continue”, analisa.
Em meio a denúncias de execuções, tortura, ameaças, feridos e invasões e derrubada de casas relatadas por moradores de cidades do litoral paulista e também apresentadas em relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que é vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, denúncia internacional de organizações ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), celebração de policiais pelas mortes, protestos encabeçados por movimentos sociais pedindo o fim da operação e prisões de pessoas majoritariamente negras sem antecedentes que não cometeram crimes violentos, Derrite anunciou o encerramento da Escudo em 5 de setembro.
Contudo, três dias depois, o secretário determinou o início da segunda fase da operação, também após o assassinato de um policial militar. Desde então, as ações da PM mataram oficialmente duas pessoas na região e outras sete foram baleadas por homens em motocicletas que a população suspeita que possam fazer parte de um grupo de extermínio, conforme a Ponte noticiou em 17 de setembro.
Rafael Rocha avalia que a gestão enfraqueceu os mecanismos de controle do uso da força policial. Um deles é o programa de câmeras nas fardas, já que, como a Ponte revelou em janeiro, havia previsão de R$ 152 milhões para o orçamento de 2023 a ser aplicado no projeto, mas não foi o que aconteceu. A pasta chegou a anunciar que dois batalhões de trânsito usariam equipamentos, mas tratava-se de um remanejamento dos aparelhos existentes e não de novas aquisições.
“Apesar de ter o orçamento para isso, já ter tido a liberação dessa verba, você começa a ter uma remoção de parte dessa verba na transferência para diárias de policiais justamente que estavam atuando em operações, como a Operação Escudo. Então, o primeiro ponto que a gente tem é uma não expansão, é quase que o congelamento do programa”, pontua.
Além disso, o anúncio de que ao menos três câmeras usadas por PMs nas operações estariam sem bateria, a ausência de utilização por todos os policiais envolvidos na operação e a falta de transparência sobre sobre o emprego dos aparelhos suscitou ações judiciais em que a ONG Conectas Direitos Humanos e a Defensoria Pública requisitaram que todos os policiais usassem os equipamentos. O TJSP acatou um pedido liminar (de urgência), mas a decisão só durou um dia após o governo paulista recorrer à presidência do tribunal, que a derrubou.
Outro exemplo são as Comissões de Mitigação de Risco e não Conformidades, criadas dentro da PM ainda em 2020, a fim de avaliar policiais envolvidos em mortes. “A gente tenta identificar se tem sido mantida aquela revisão aleatória de vídeos [das câmeras das fardas] que os sargentos e tenentes têm que fazer todo mês das equipes. A gente não tem conseguido esse dado da Secretaria da Segurança Pública, a gente já fez pedido de LAI [Lei de Acesso à Informação], alguns jornalistas perguntaram para a secretaria e esse dado não aparece. A gente suspeita que essas Comissões de Mitigação de Risco e Não Conformidades, que a revisão de vídeos dos policiais, têm sido enfraquecidas ou até paralisadas. Isso também é incentivo para o aumento da letalidade”, conta Rafael Rocha.
A Ponte também fez pedidos de LAI neste ano sobre a atuação da Comissão ao requisitar, por exemplo, o número de policiais que passaram por avaliações, atendimento psicológico, por reciclagem de treinamento, batalhões onde a Comissão atuou e afins. A PM já negou duas vezes o envio de dados ao alegar que “se tratam de informações estratégicas de emprego Operacional e meios da Polícia Militar do Estado de São Paulo” que não podem ser fornecidos e que os documentos contém “dados e informações cuja preservação de sigilo e restrição de acesso ao conhecimento formulado, DEVE SER (sic) rigorosamente cumprida por caracterizarem informações, identificadas como um conhecimento da categoria de informações pessoais”. Contudo, a reportagem não solicitou documentos e sim números, sem identificação pessoal, e ainda está recorrendo.
O pesquisador também sinaliza que os discursos de autoridades corroboram essa legitimação da letalidade, como o governador ter chamado as mortes na operação de “efeito colateral”, de alegar que denúncias de violações de direitos humanos são “narrativas”, o que foi repetido pelo secretário, além de o próprio comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, ter gravado vídeo em que orienta a tropa a não hesitar “em utilizar legítima defesa”.
Mortes pelas polícias em alta, homicídios em queda
Uma das formas de verificar se o uso da força pelas polícias é abusivo é a comparação das mortes praticadas pelas polícias com o número de vítimas de homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.
De janeiro a agosto deste ano, esse índice ficou em 15,6%. No mesmo período do ano passado, estava em 11,8%. Só em agosto, as mortes pelas polícias representaram 19% dos homicídios dolosos. No mesmo mês de 2022, eram 10%.
Outra forma de medir o uso da força é pela relação das mortes pelas polícias com o número de policiais mortos. Porém, esse dado costuma ser divulgado pelas corregedorias, o que, até a publicação deste texto, ainda não havia acontecido em relação ao mês de agosto.
Além disso, o número de vítimas de homicídios dolosos no estado de São Paulo vem decrescendo ano a ano. A queda foi de 10% nos primeiros oito meses de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado. Só em agosto, foi 11,6%, o que para o pesquisador do Sou da Paz reflete uma dinâmica diferente das mortes pelas polícias, já que diversos estudos, inclusive conduzidos pelo instituto, demonstram que não há correlação direta em aumento da letalidade policial com redução de homicídios.
“A partir de uma série de análises, de morte decorrente de intervenção policial, a gente encontra que, muitas vezes, sejam policiais em serviço ou policiais de folga, são ocorrências que, pelo menos no histórico dos boletins, constam uma perseguição a um veículo roubado, ou uma reação a uma tentativa de um roubo, num momento de folga, muito mais esse tipo de crime do que os crimes de homicídio”, explica. “São dinâmicas completamente distintas, que não necessariamente se relacionam. Acho que fazia até mais sentido a gente comparar e fazer essa discussão de roubo. Claro, tem que ser uma discussão mais sofisticada, não é só falar que o roubo caiu e a letalidade aumentou”, pondera.
Rafael Rocha sustenta que existe uma “lógica de vingança” na Operação Escudo. “Se a gente olhar no contexto da Operação Escudo, que essas pessoas que foram mortas inicialmente, para além das dezenas de denúncias de abusos, de violações, de pessoas que foram executadas, são pessoas que tinham passagens por crimes de menor potencial ofensivo. Além disso tudo, ainda eram pessoas que estavam há muito tempo fora da prisão, com passagens por roubo, por tráfico, o que deixa muito mais explícito uma lógica de vingança do que uma lógica de confrontos ou mesmo de uma busca por eventuais supostos matadores que estariam naquelas comunidades”, critica.
Para ele, a gestão atual não apresentou nenhuma iniciativa que tenha provocado a redução dos homicídios, já que o foco, desde o início do mandato, tem sido na diminuição de crimes patrimoniais, como roubos e furtos, e pasta da Segurança Pública não tem um indicador de elucidação de homicídios. “A gente pode colocar em três grandes grupos de dinâmicas que afetam os homicídios. Uma é a própria dinâmica da segurança pública: se a gente tem uma melhoria de investigação, enfim, nesse sentido de um maior investimento para tirar das ruas pessoas que cometem uma série de homicídios, que estão envolvidos em dinâmicas como autores e, eventualmente, até como vítimas de homicídio, tirar essas pessoas de circulação, levarem para serem responsabilizadas e, eventualmente, presas”, explica.
“Tem também a própria dinâmica do crime organizado e um terceiro fator, que é um elemento demográfico, uma discussão que as ciências sociais e a demografia têm de variações que são de mais longo prazo, acho que não cabe aqui, porque a gente está falando de um pequeno período de tempo, mas tem a dinâmica do próprio crime que tem pouca influência das ações da Segurança Pública”, afirma.
O pesquisador salienta que “não teve nenhum avanço na segurança pública com a Operação Escudo”, já que reportagem da Agência Pública mostrou que o número de apreensão de armas e drogas não teve diferença significativa ao comparar os indicadores antes e depois das ações policiais, que é o que o governo justifica como êxito da ação na Baixada Santista.
“A operação deixou 28 pessoas mortas naquele período ali, já aumentou esse número agora porque tem essa fase dois, apreendeu o mesmo tanto de armas, o mesmo tanto de drogas, cometeu uma série de violações. A gente não está falando só de mortes, mas as pessoas que foram baleadas, que foram torturadas, ameaçadas, enfim, é uma tragédia”, critica. “É um giro de 180 graus na política de Segurança Pública do estado de São Paulo que vinha no processo de profissionalização do uso da força.”
Rafael Rocha ainda aponta que o Ministério Público, que tem o papel constitucional de controle externo da atividade policial, precisa atuar com mais força, inclusive já com a questão de falta de imagens das câmeras. “A gente entende que no momento em que a Operação Escudo começa, em um final de semana que deixa 11 mortos, a gente precisava de uma atuação mais firme do Ministério Público Estadual e isso demorou a acontecer”, avalia. “No nosso entendimento, o Ministério Público do Estado de São Paulo, o Gaesp [Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial], tinha que ter entrado com mais força, porque se abre o precedente.”
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre os indicadores e ações tomadas pela gestão. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:
A SSP investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas para reduzir as mortes em confronto, com o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo. Uma Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.
Os números de mortes decorrente de intervenção policial (MDIP) indicam que a causa não é a atuação da polícia, mas sim a ação dos criminosos que optam pelo confronto, colocando em risco tanto a população quanto os participantes da ação. O trabalho das forças policiais nos sete primeiros meses no Estado, resultou na detenção de 126.982 infratores, 5,8% a mais que no mesmo período de 2022.
Todos os casos dessa natureza são investigados, encaminhados para análise do Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário, inclusive, os casos relacionados à Operação Escudo, deflagrada para sufocar o tráfico de drogas na Baixada Santista. Em 40 dias, a ação foi encerrada com 976 criminosos presos, dos quais 388 eram procurados da Justiça. Outros 71 adolescentes infratores foram apreendidos. No período, as forças de segurança apreenderam 119 armas e 966,5 kg de entorpecentes, causando um prejuízo de mais de R$ 2 milhões ao crime organizado.
Com relação aos homicídios dolosos, a pasta esclarece que a variação desses indicadores é alvo de análise permanente. Em fevereiro foi lançado o Sistema de Informação e Prevenção aos Crimes Contra a Vida (SPVida), que contribui na elaboração de diagnósticos e planos de ação visando à redução dos índices de mortes.
O que diz o Ministério Público
A reportagem pediu entrevista com os promotores responsáveis pelo Gaesp e pelo monitoramento dos dados de letalidade policial, mas até a publicação não houve resposta.